ETNODESENVOLVIMENTO: A "PEDRA DE TOQUE" NO NEO-INDIGENISMO?

 

Ricardo Verdum

Instituto de Estudos Socioeconômicos

 

Minha exposição versará sobre a idéia de "etnodesenvolvimento" - ou "desenvolvimento com identidade cultural" -, e sobre como ela vem sendo incorporada e utilizada por agentes sociais e agências governamentais e não-governamentais na definição e implementação de políticas públicas específicas para os povos indígenas no Brasil, especialmente nos últimos anos. Será feito um esforço no sentido de resgatar o processo social - os atores e relações sociais - por intermédio do qual o "etnodesenvolvimento" vem sendo criativamente trabalhado e disseminado de forma associada com a idéia de promoção da "segurança alimentar" indígena, bem como e em que medida os discursos e contextos onde ele surge evidenciam e alimentam práticas, relações e processos sociais de poder.

            Se originalmente o conceito de “etnodesenvolvimento” foi concebido como uma alternativa ao pensamento desenvolvimentista e a visão de que os índios seriam um obstáculo ao “progresso” ou “desenvolvimento nacional”, o que se observa nos dois últimos governos federais – ao menos até o momento - é que ele foi incorporado ao léxico governamental mais como uma peça de discurso. Ou seja, ele aparece no discurso e na ação governamental esvaziado do seu significado e poder original, que se propunha a ser marcadamente contra-hegemônico e voltado para a transformação das relações sociais, das estruturas políticas e das instituições públicas. Em 2004, ao mesmo tempo em que se perpetua a falta de articulação e coordenação da política indigenista oficial, continua sem resposta a reivindicação do "movimento indígena" por maior participação e protagonismo na definição das políticas públicas específicas e naquelas que impactam seus territórios e na qualidade de vida das comunidades locais.

            Em linhas gerais se pode dizer que ao longo do século XX as políticas indigenistas dos Estados nacionais na América Latina transitaram de uma perspectiva de negação do Ser Índio e da promoção do Índio Genérico para, no último quarto de século, uma concepção que se apresenta como sendo mais favorável às manifestações culturais e à organização política e econômica dos povos índios. Esta mudança no discurso oficial aparece refletida nos textos constitucionais recentes da maioria dos países da região, onde de diferentes maneiras é expresso o “reconhecimento” da diferença e as especificidades dos povos indígenas em termos de direitos. De obstáculo ao chamado progresso e desenvolvimento econômico, os povos indígenas vêm aparecendo no discurso indigenista oficial – e já de há muito no discurso indigenista “alternativo” – como sujeitos de direitos. Sujeitos que devem ser incorporados nas políticas de promoção da cidadania e do desenvolvimento sócio-econômico, a partir de uma perspectiva que considere suas especificidades étnicas e culturais.

Quanto ao papel do Estado, enquanto agência articuladora e ordenadora da vida social, passamos no último quarto de século de uma concepção concentradora das funções destinadas à promoção do chamado desenvolvimento econômico e da integração dos índios neste processo (o “Estado Desenvolvimentista Burocrático”), para outra onde este aparece em cena como uma instância política e institucional que deve ter um papel mais de regulador das políticas públicas. Associado a isto aparece a idéia de que as agências não-governamentais - incluídas ai as "organizações indígenas" - devem assumir maior responsabilidade na gestão das políticas públicas, como alternativa necessária à crise de eficiência e de eficácia do modelo anterior. Associado a esta visão são propostos e implementados novos arranjos institucionais de caráter consultivo e deliberativo com a “participação” indígena.[1]

A história do conceito de etnodesenvolvimento está marcada por três eventos principais: a Primeira Reunião de Barbados, realizada na Ilha de Barbados em 1971, que produziu o documento conhecido como Declaração de Barbados; a Segunda Reunião de Barbados, realizada em 1977; e a reunião internacional patrocinada pela FLACSO e UNESCO, realizada em São José da Costa Rica em 1981, que produziu a Declaración de San José. Nesta última, além de ser denunciado o etnocídio a que estavam sendo submetidos os povos indígenas da América Latina, se reivindica uma modalidade “alternativa” de desenvolvimento, o etnodesenvolvimento, como um “direito dos povos indígenas”.

Um dos pressupostos deste trabalho é de que as diversas mudanças nas formas de reprodução da vida política, econômica, social e cultural, associadas com o aumento no fluxo intercultural de informações, idéias e conceitos decorrente dos avanços tecnológicos e da expansão das redes transporte e de comunicação (estradas, rádio, televisão, telefonia, internet, etc.), têm levado a reformas na noção de desenvolvimento e na visão do papel do Estado e do lugar dos índios neste processo. A contestação do modelo econômico de desenvolvimento verificado no último quarto de século tem ocasionado uma busca de novas alternativas conceituais, discursivas e políticas que reordenem e re-legitimem o processo de acumulação de capital em curso. O “etnodesenvolvimento” ou “desenvolvimento com identidade cultural” são tentativas de reforma/reformulação da ideologia/utopia do desenvolvimento, especialmente da conotação “economicista” que a impregnou de forma acentuada no pós-Segunda Guerra. São manifestações culturais à semelhança de outros “processos geradores (...) de uma modernidade híbrida caracterizada por contínuos intentos de renovação, por parte de múltiplos grupos que representam a heterogeneidade cultural de cada setor e cada país” (Escobar 1998: 409).

O chamado “etnodesenvolvimento” é entendido aqui como um sistema de significados criado como o objetivo de facilitar a inserção dos povos indígenas no marco das idéias, práticas e políticas desenvolvimentistas. Não é por acaso que Rodolfo Stavenhagen (1985) vai denominá-lo de “uma dimensão ignorada no pensamento desenvolvimentista”. O conceito de etnodesenvolvimento ou de “desenvolvimento com identidade” está inclusive no discurso e na agenda das agências bilaterais e multilaterais de desenvolvimento internacional, como é o caso do Banco Mundial (BIRD) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O conceito de etnodesenvolvimento aparece entre estes atores como sendo a idéia mais adequado do ponto de vista social e cultural de solucionar a “pobreza vivida pelos povos indígenas da região” e de como melhor inseri-los nas relações de mercado e de mercantilização das relações.[2]

            No Brasil, a população indígena é estimada em 410 mil pessoas, o equivalente a aproximadamente 0,2% da população total do país. São 291 povos indígenas, totalizando 180 línguas classificadas em 35 famílias lingüísticas. Eles estão presentes em todos os estados da Federação, à exceção do Piauí e do Rio Grande do Norte, vivendo em 579 terras indígenas, que somam aproximadamente 104 milhões de hectares – o equivalente a 12% do território nacional.

 Em especial a partir de meados da década dos noventa, assistimos a uma certa “flexibilização” na forma de gestão da política indigenista governamental, fruto da pressão do movimento indígena, mas também das ONGs indigenistas e das agências internacionais de cooperação - com um destaque para o Banco Mundial. No nível federal, de um órgão único - a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) –, temos hoje vários órgãos governamentais ligados aos Ministérios da Justiça, Agricultura, Saúde, Educação, Desenvolvimento Social, Desenvolvimento Agrário e Meio Ambiente atuando junto aos povos indígenas. Ao longo dos últimos anos foram criados vários fóruns e conselhos, alguns mais “participativos” outros menos, envolvendo comunidades locais, entidades indígenas e ONGs. Em vários casos, estas organizações indígenas e indigenistas passaram a assumir a gestão local das políticas públicas destinadas aos índios.

Atualmente, em decorrência da mudança no governo federal, o movimento indígena reivindica maior participação nos fóruns de decisão e, inclusive, o controle da gestão do órgão indigenista federal responsável pela demarcação e proteção dos territórios indígenas, a FUNAI. Chama a atenção o grande número de “lideranças” ou “intelectuais orgânicos indígenas” que tem surgido especialmente na última década. Se nos anos setenta e oitenta era um pequeno número de indivíduos os que obtinham alguma projeção nacional ou mesmo regional, o processo de organização do movimento indígena e sua crescente demanda por inserção e participação em instâncias de planejamento e gestão de políticas públicas setoriais e intersetoriais, em diferentes níveis (federal, regional e local), tem gerado a necessidade de uma crescente formação de novos quadros cada vez mais qualificados.



[1] Peter Schröder (1999: 233-234) observa que “Embora ‘participação’ seja um dos conceitos-chave dos atuais discursos e políticas desenvolvimentistas, atribui-se a ele importância especial para projetos entre povos indígenas. Não só nas diretrizes de instituições e órgãos de desenvolvimento, mas também nos textos programáticos de muitas ONGs, essa importância é realçada de uma forma genérica, nem sempre deixando claro se a participação indígena é uma meta dos projetos ou um meio para alcançar as metas”. Com base na sua experiência no Nepal, Linda Stone (1989) questiona a possibilidade da aplicação do conceito de “participação comunitária” em contextos culturais diferenciados, haja visto as pressuposições culturais que ele carrega.

[2] O Banco Mundial estabelece pela primeira vez uma política especial para povos indígenas em 1982, na Declaração de Manual Operacional 2.34 “Povos Tribais em Projetos Financiados pelo Banco”. Esta "diretriz operacional" foca sua atenção na necessidade de proteção das denominadas "sociedades tribais pequenas e relativamente isoladas em bosques úmidos tropicais da América do Sul", que estavam sendo afetadas pela construção de rodovias e projetos de colonização financiados pelo Banco. Ao revisar sua política, o Banco aprova em 1992 a Diretriz Operativa 4.20 (“Povos Indígenas”), que amplia e inclui procedimentos sobre a necessidade de consultas e participação indígena nos benefícios dos projetos de desenvolvimento financiados pelo Banco. Com a DO-4.20 passamos de um enfoque mais “preservacionista” (1982) para uma abordagem mais desenvolvimentista (ou “etnodesenvolvimentista”) em relação aos povos indígenas do continente, em especial aqueles situados nas áreas de florestas.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004