LUGARES SAGRADOS E ENCANTARIAS
MARANHENSE[1].
Mundicarmo
Ferretti[2]
As pessoas
sempre se apegam aos lugares onde nasceram e viveram e, quando precisam se
afastar deles, costumam retratá-los de forma fantasiosa, como se fossem os
melhores lugares do mundo. Na terra natal estão geralmente os seus parentes
mortos, os lugares onde ocorreram milagres que foram contados por seus
antepassados (aparição da imagem ou de um santo), locais de culto a “almas
milagrosas” ou “almas benditas” (de pessoas que viveram ali, a quem se recorre
em momentos de aflição) e se encontram pedras, árvores, lagos, ilhas etc. que
atestam a veracidade de seus mitos. As pessoas, mesmo quando saem de sua terra
natal, costumam voltar a ela periodicamente para rever parentes, amigos e para
visitar àqueles lugares sagrados, como ocorre freqüentemente no Brasil em torno
do dia dois de novembro, data consagrada aos mortos. A fama de alguns daqueles
lugares sagrados às vezes extrapola as fronteiras locais, estaduais, nacionais
e, até mesmo, continentais. É por essa razão que tantos vão a Meca, a
Jerusalém, a Lourdes e, no Brasil, a Aparecida (SP), Juazeiro
(CE), São José de Ribamar (MA).
A
transferência de populações de um território há muito tempo ocupado, costuma
acarretar a elas não apenas perdas econômicas e materiais e desarticular suas
organizações sociais. Pode abalar profundamente suas identidades, causar perdas
de tradições culturais e criar para elas vários problemas religiosos. Murilo
Santos, no vídeo Terra de quilombo – uma dívida histórica (2004), dá
exemplo de um desses problemas, ocorrido com as comunidades negras
remanescentes de quilombos de Alcântara, no Maranhão, transferidas da área hoje
ocupada pela base espacial para agrovilas construídas para elas. Como aquela
população poderia levar para o seu novo local (as agrovilas) o cemitério onde
estão os restos mortais de seus antepassados e transportar para lá encantarias
tão preciosas para ela? Será que na nova localidade a população removida
poderia sentir a proteção espiritual que sentia no seu local de origem? Até que
ponto a população transferida admite que os seres espirituais ligados às
localidades que ela foi obrigada a deixar irão proteger os seus novos ocupantes
(o pessoal da base)? Será que para aquela população os encantados vão se
transformar em “assombrações” e passar a perturbar os que chegaram ali sem ter
ligação com eles e sem a obtenção de sua licença?
Santuários
e encantarias maranhenses.
Quando se
fala em lugares sagrados do Maranhão pensa-se logo na cidade de São José do
Ribamar, que atrai todos os
anos, no mês de setembro, grande número de devotos daquele santo e onde são
encontrados na praia muitos barquinhos trazendo bilhetes, retratos e ex-votos
de pessoas que receberam milagres dele. A cidade de Ribamar é cheia de
mistérios. Conta-se que a igreja construída para São José caiu várias vezes e
só ficou em pé quando foi edificada na posição desejada por ele... Mas existem
no estado outros lugares de atração religiosa. Em Vagem-Grande,
realiza-se uma grande romaria de devotos de São Raimundo e de Raimundo Nonato -
vaqueiro santificado pelo povo que viveu e morreu tragicamente no povoado de
Mulundus -, daí porque a romaria é participada por grande número de vaqueiros
da região. Em Rosário, durante muitos anos, o Sr. José de Paula promoveu
uma grande festa em pagamento de promessa a uma “alma milagrosa” - de pessoa
que morreu ali numa epidemia de peste. A festa daquela alma milagrosa terminava
com um Tambor de Crioula dançado por grupos locais, da capital e de
municípios vizinhos, que se revezavam durante a noite toda. E, em Codó,
na estrada que vai para Santo Antônio dos Pretos, existe o santuário de
Pardinha (garoto pobre e deficiente que morreu atropelado), onde muitos
depositam ex-votos e garrafas d´água, em pagamento de promessa.
Mas os
lugares sagrados do Maranhão não são apenas aqueles onde apareceram imagens de
santos ou onde desencarnou uma alma milagrosa. Várias localidades são
conhecidas como morada de encantados - seres mitológicos que, vez por outra,
aparecem a alguém em sonho ou em vigília e que baixam nos terreiros de mina,
terecô, umbanda e nos salões de curadores e pajés. Esses encantados, recebidos
em transe ritual, são também invocados pela população em momentos de aflição.
Entre os encantados que comandam o Maranhão, citado no livro do pai-de-santo
Jorge Itaci (OLIVEIRA, 1989) podem ser citados:
1) Dom
Luís, que comanda a ilha de São Luís e tem sua corte encantada
na Baia de São Marco e domina de Ponta d´Areia até a Ilha do Medo;
2) Rei
Sebastião cuja encantaria fica na Praia dos Lençóis e que domina do
Boqueirão ao Itaqui;
3) Dom
José Floriano, que domina o Boqueirão e a “cerca” de Alcântara[3];
4) Rei da
Bandeira (João da Mata ou Rei da Boa Esperança), Princesa Doralice,
encantados na pedra de Itacolomi;
5) Dom
João Soeira (Rei de Minas ou Rei do Juncal), que domina a praia do
Calhau;
6) Dom
Pedro Angassu, que comanda as matas do Codó.
Nas letras
de musicas cantadas nos terreiros maranhenses existem muitas referências a eles
e às sua encantarias e também a outros encantados e encantarias do Maranhão. Se
pegarmos um mapa do estado e direcionarmos o nosso olhar para a região
litorânea que vai da ilha de São Luís em direção ao Pará encontramos várias das
localidades referidas nas letras daquelas músicas como locais de encantarias.
Na ilha de São Luís: as praias do Itaqui, de Olho d´Água,
Ponta d´Areia, São José de Ribamar, apresentadas naquelas musicas como
moradas da Princesa Ína, da Rã Preta, da Menina da Ponta d´Areia e de outros
encantados. Depois da ilha de São Luís, no meio do mar: o tão temido Boqueirão,
onde têm ocorrido muitos naufrágios e onde se acredita que muitos se
encantaram, e a pedra de Itacolomi, que pertence a João da Mata, o Rei
da Bandeira. São também conhecidos como lugares de encantarias: a Praia dos
Lençóis, de Rei Sebastião e as pontas de Mangunça e de Caçacueira,
moradas de Mãe d´Água.
Não se
deve pensar que, para o povo maranhense que conhece encantado, só existe
encantaria no litoral ou na água salgada. Uma das encantarias maranhenses mais
conhecidas é a da mata de Codó, no interior de estado, onde reina Dom
Pedro Angasso e Rainha Rosa e onde Légua Boji Boa comanda uma grande linha de
caboclo. Fala-se também que onde tem mata tem Curupira e vários encantados que
assumiram formas de animais: calangos, lagartixas, jacarés, macacos,
borboletas, onça e outros. E, tanto na região litorânea quanto no interior,
existem rios, lagos, poços e nascentes conhecidos como moradas de Mães d´Água e
de encantados que já apareceram a alguém como cobras, peixes, botos e outros
animais.
Os locais
de encantaria são descritos pelos médiuns como lugares de muita energia, de
muito poder, de uma força inexplicável ou como lugares de muito mistério, de
muita “mironga”, de muito segredo. Afirma-se que nos principais passam muitas
correntes espirituais. Em vários deles existem encontros de águas (do mar com
água doce), de rios e matas, e em muitos deles existem pedreiras. Os lugares
mais isolados, intocados, virgens concentram mais força. É por isso que se afirma
que o turismo e o afluxo de pessoas para aqueles locais pode ser prejudicial.
Fala-se que em Alcântara há uma concentração muito grande de forças vindas da
África, pois recebeu grande número de escravos, e de forças de lá mesmo.
Ao
contrário do que ocorre com os locais de santos e almas milagrosas, a
aproximação de encantarias só é permitida a poucas pessoas, as que recebem
encantados de lá e foram autorizados por eles. E quem se aproxima de lugares
encantados (na águas ou na matas) para fazer uma oferenda ou buscar algo
solicitado pelos guias (como pedra, areia etc. para assentar um terreiro),
costuma sair de lá sem olhar para trás, pois fala-se que muitos dos que viram
encantados ficaram doentes ou morreram logo depois. Adverte-se também que
intromissões, curiosidades e profanações de encantarias são severamente
punidas, pois quem não pertence às suas linhas é rejeitado pelos donos do
lugar. Quem não tem vidência não sabe que às vezes uma duna esconde um palácio
e pode querer pisar ou construir uma casa em cima da encantaria, da casa dos
donos do lugar. Quem vai a um lugar de encantaria é porque tem um pedido de
proteção, de saúde, tem um descarrego, uma firmeza a fazer ou uma promessa a
pagar.
As
encantarias são apresentadas por pais-de-santo maranhenses como locais de
reabastecimento de forças, que às vezes estão definhando por causa de
“demandas” ou que precisam ser armazenadas, para que se possam enfrentar as
dificuldades que surgem durante o ano. É por isso que procuram fazer ali lavagens
de cabeça ou de contas. Explicam que, se uma área daquelas for cercada ou
interditada por alguém, há um grande prejuízo para a população e grande risco
de ocorrerem ali muitas mortes, como ocorreu no porto do Itaqui e na base de
Alcântara. Depois do porto, como não se podia mais entrar livremente na área,
os médiuns tiveram que arranjar outros locais para fazer suas obrigações, como
deve estar acontecendo em Alcântara. Em São Luís, terreiros que dependem de
força da pedra de Itacolomi fazem sua obrigação em uma gruta existente na Ilha,
que fica na direção daquela pedra...
Apesar de
nem todos acreditarem e cultuarem santos e encantados, ninguém tem o direito
de, em nome do progresso, da modernidade ou de seja lá do que for, impedir um
povo ou alguém de acreditar neles e de cultuá-los. A identidade de um povo é
assentada em suas tradições e a religião ocupa um lugar especial nessas
tradições.
ANDRADE, Joel Carlos de Sousa. Os
Filhos da Lua: poéticas sebastianistas na Ilha dos Lençóis-MA. Dissertação
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SANTOS, Murilo. Terras de
Quilombo – uma dívida histórica. 2004. Documentário.
[1] Apresentado no Simpósio: Territórios étnicos e conflitos na Base de Lançamento de Alcântara, coordenado pela professora Maristela Andrade (UFMA) - 56ª Reunião Anual da SBPC-Regional. A autora agradece as informações fornecidas pela antropóloga Ivana César e pelo pai-de-santo João Gualberto (Vila Nova – São Luís-MA).
[2] Doutora em Antropologia; professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Políticas Publicas e do mestrado em Ciências Sociais (UFMA).
[3] São também citados entre os encantados que dominam a região de Alcântara: Barão de Guaré, das cercanias de Alcântara até o Boqueirão (ANDRADE, 2002); Dom Manoel; José Raimundo (camaroeiro) e Menino Louro. Fala-se também bastante em Rei Leão, encantado do Boqueirão, e das ligações das ilhas do Caranguejo e do Medo com o Rei Sebastião.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |