AS FRONTEIRAS DA LÍNGUA NACIONAL: UMA POSIÇÃO DE AUTORIA NAS POLÍTICAS DE INTEGRAÇÃO REGIONAL

 

Mónica Graciela Zoppi Fontana (UNICAMP)

 

 

Abordar discursivamente a questão da cidadania e da (s) identidade (s) nacional (is) em relação à língua leva a um estudo das políticas lingüísticas de Estado e a uma análise dos processos de construção da língua nacional como lugar simbólico de produção imaginária da identidade. A produção histórica de instrumentos lingüísticos que descrevam/normatizem a língua cumpre um papel protagônico nesse processo: a instrumentalização de uma língua (seu processo de gramatização) é condição necessária embora não suficiente para a constituição dessa língua (ou variedade de língua) em língua nacional, isto é, em língua oficial de um Estado.

O processo de gramatização, nas suas diversas instâncias de instrumentalização da língua (produção de gramáticas, dicionários e manuais de redação; currículos/programas de ensino; criação de academias e cursos universitários; institucionalização de disciplinas em colégios; elaboração e aplicação de exames de avaliação de língua) implica, por um lado, a produção de um saber metalingüístico (que constitui a língua como objeto de conhecimento de saberes legitimados historicamente), e por outro lado, a produção de um espaço imaginário de identificação que produz para o sujeito os sentidos de sua relação com a língua do Estado, isto é, a construção da língua nacional como lugar de produção da identidade nacional e atributo da cidadania.

Neste trabalho analisamos a especial posição do Brasil na América Latina no que se refere às políticas lingüísticas e principalmente à construção de uma posição de saber e de autoria em relação à própria língua. Para isso, investigamos o momento atual do processo de gramatização do português no Brasil, que identificamos como um período de instrumentalização do português brasileiro (PB) como língua estrangeira (LE), que se caracteriza pela posição de autoria explicitamente assumida pelo Estado brasileiro através de suas instituições políticas e administrativas (em especial de ensino e pesquisa) e fortalecida através de iniciativas da atividade privada.

O objetivo principal desta apresentação é descrever sumariamente este período específico e compará-lo com o processo correspondente nos países hispano-falantes que integram o Mercosul. Defendemos a hipótese de que o diferencial do processo brasileiro consiste na posição de autoria em que o Estado se situa em relação à própria língua nacional e à produção de um saber metalingüístico (e uma jurisdição lingüística) sobre ela no novo espaço de enunciação constituído pelos tratados do Mercosul a partir das novas territorialidades de cooperação internacional definidas entre os países do Cone Sul.

Neste sentido, observamos que o Brasil se inseriu nesse processo ativamente, tomando medidas a partir do Estado em relação à produção de instrumentos lingüísticos específicos e próprios, como por exemplo o CELPE-BRÁS, o exame de proficiência em língua portuguesa desenvolvido inteiramente por uma comissão de especialistas brasileiros para ser aplicado por instituições oficiais brasileiras. A meados da década dos anos 90, começaram a aparecer iniciativas de ensino formal para a formação de professores em português como língua estrangeira (LE), através do fortalecimento de disciplinas em cursos já existentes, da criação de novas habilitações e cursos de licenciatura e da produção de numerosos trabalhos acadêmicos e projetos de pesquisa sobre o tema. Multiplicaram-se, também, as publicações e eventos científicos focalizados nessa temática, ampliando e fortalecendo, desta maneira, a inserção da discussão do português como LE na comunidade científica nacional.

Pelo contrário, do lado hispano-falante, iniciativas nesse sentido foram mais tardias e desarticuladas, embora elas fossem discutidas e altamente recomendadas em âmbitos especializados como o Mercosul Educativo (MEC) e a Associação de Universidades Grupo Montevideu (AUGM). Esta disparidade no processo de instrumentalização das línguas espanhola e portuguesa enquanto línguas transnacionais/regionais no espaço de enunciação (Guimarães, 1997) do Mercosul já foi apontada por alguns pesquisadores da área e comentada em termos históricos (diferente relação dos territórios colonizados com a metrópole) e/ou geo-lingüísticos (dispersão ou concentração dos centros de produção e difusão das respectivas línguas e culturas em diferentes Estados nacionais da América Latina; maior ou menor grau de diferenciação das variantes latino-americanas dessas línguas em relação às variantes européias).

Prova recente desta dissimilaridade a encontramos no I CONGRESO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS CULTURALES E INTEGRACIÓN REGIONAL, realizado em Buenos Aires de 30 de março a 2 de abril de 2004. Em uma mesa redonda coordenada pela Profa. Lia Varela sobre o tema da comprovação oficial de proficiência nas línguas portuguesa e espanhola, destacou-se a organização e legitimação das ações brasileiras através do Ministério de Educação e a dispersão e falta de iniciativa e/ou apoio oficial das ações realizadas nesse sentido por universidades uruguaias e argentinas.

A partir desses fatos, é possível refletir sobre os efeitos produzidos nos processos de gramatização do português no Brasil a partir da mudança da hiperlíngua brasileira inserida agora de maneira ativa num espaço geopolítico não mais nacional, mas transnacional. Comparando rapidamente com os processos de gramatização do espanhol nesse mesmo espaço/tempo, podemos defender a hipótese de que o que caracterizaria o processo brasileiro é a construção de uma posição de autoria em relação ao saber metalingüístico e a produção de instrumentos lingüísticos da própria língua.

            Esta posição de autoria que estaria significando a relação do brasileiro com sua língua nacional intervém na produção de um imaginário de cidadania afetado fortemente pelos sentidos de autonomia e auto-gestão das questões lingüísticas que reforça o processos discursivos de diferenciação/individualização da língua brasileira em relação ao Portugal.

            Vemos, assim, os efeitos materiais de gestos de interpretação opostos na significação das fronteiras lingüísticas internas e externas entre o português e o espanhol no âmbito do Mercosul e nas relações com as antigas metrópoles coloniais.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004