MICHÈLE SATO
Grupo Pesquisador em Educação Ambiental - GPEA
Acho que no futuro, o homem vai pedir pelo amor de deus pra
conhecer uma árvore, um passarinho, um cavalo. Tenho medo que a ciência acabe
com o cavalo, com a luz natural, com as fontes do ser (Manoel de Barros).
Situados
em um dos grandes momentos das ciências no Brasil, acreditamos que a Educação
Ambiental (EA) vai tomando contornos próprios, fortalecida pela sua luta e
também incorporada pela 56ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira ao Progresso da
Ciência (SBPC). A Reunião, muito bem organizada, provavelmente espelha debates
revelados pela cultura de uma Nação, na construção da identidade brasileira, reforçando
as ciências que, em amplos sentidos polissêmicos, visam o desenvolvimento das
sociedades. Pela complexidade que abarca estas dimensões, a EA não poderia ser
excluída deste debate, entretanto, este resumo não tem a pretensão de discutir
exaustivamente os campos das múltiplas áreas do conhecimento que envolvem a
própria EA.
Mas
se este pequeno texto permitir, algumas considerações educativas podem ser
tecidas no interior da dinâmica do Pantanal. Na identidade deste habitat,
Manoel de Barros configura-se com um dos grandes poetas representativos da
literatura nacional. Ele também se preocupa com os avanços das ciências com
negligência do potencial ambiental, como revela a epígrafe acima e em outras
inúmeras obras. A sonoridade de suas poesias trança um Pantanal com cores, odores,
sabores e saberes. Seus textos buscam a metamorfose, marca registrada da arte
surrealista, sem se preocupar com a estética. E reivindicam o potencial da
dinâmica cultural e natural expressa pelo conhecimento popular (BHABHA, 1998).
Mitos e lendas perfazem um saber que não poderá ser negado, mas integrado às
ciências. A Ciência na fronteira do
conhecimento, portanto, só consegue ser ética através da textura do jogo de
panos - entre meadas, matizes e emaranhados de fios marcados pela história e
pelo compromisso individual e coletivo da gente pantaneira.
A
EA se situa num plano semelhante - para além da poesia ingênua, rimada em
versos procurados na construção estética da linguagem, busca uma transformação
dos contextos de violência, clamando pela participação capaz de ousar a
metamorfose que inaugure a inclusão social e a proteção ambiental. Insurgente e
transgressora, e simultaneamente apaixonada e flexível, sua luta na América
Latina possui berço nos movimentos sociais da década de 60, onde o mundo
protagonizava as esperanças através da Tropicália, Woodstock, criação da Paris
VIII e demais movimentos contra a ditadura da hegemonia. Transcendendo o slogan
“droga, sexo e rock & roll”, a contracultura possibilitou buscarmos
múltiplos caminhos, contra a padronizante verdade universal.
Mas
a paisagem modificou-se. E transmudou-se também a EA. De um posicionamento
meramente conservacionista dos sistemas naturais, passou a relevar uma dimensão
mais social. E a contemporaneidade oferece outros riscos, como a duvidosa
orientação internacional do decênio (2005-14) “Educação para o Desenvolvimento
Sustentável (EpDS)”, declarado pela Organização das Nações Unidas. A identidade
na Educação Ambiental, para uma vasta maioria das educadoras e educadores
ambientais brasileiros, não qualifica a educação através de um adjetivo neutro,
mas potencializa a educação subjetivando-a com o ambiente na sua identidade
política. Neste contexto, reafirmamos a importância da EA, desenhada na
rebeldia dos movimentos sociais, e que abarca três grandes dimensões: a
percepção do ambiente, a compreensão sobre a sustentabilidade e a
responsabilidade educativa. Em cada uma delas, acreditamos que exista uma
enorme disputa conceitual e política. Os jogos que se posicionam em divergência,
ou consonância, revelam também a violência simbólica e o poder inserido em
qualquer campo epistemológico. De qualquer modo, a compreensão destas três
dimensões evidencia a pluralidade de pontos de vistas que não permitem que o
“desenvolvimento sustentável” seja aceito de forma unânime.
Na
cartografia deste território híbrido, haverá aqueles que compreendem a EA como
uma proteção dos sistemas naturais, na ênfase da ecologia. Evidenciam os
impactos ambientais e buscam a gestão e manejo através da EA. Para outros, os
dilemas sociais são evidenciados, na busca de estratégias que sublinhem a educação
como prioridade da civilização humana. O que se busca, todavia, não é a
aceitação completa de uma ou outra vertente, senão em algo permutado, que
transcendendo as fronteiras das especializações, reivindique por uma EA
metamorfoseada, como na obra surrealista de René Magritte, algo que garanta a
preocupação social aliada aos cuidados ecológicos. Buscamos construir uma EA
sob a noção neologista de “articulamento”, oferecendo a idéia da
“incompletude”, do não finalizada ou ainda por estar descoberta. Alguma coisa
tão original revolucionária que muitos haverão de negar, porque suas
cartesianas visões do mundo não lhes permitem compreender inovações. Ainda que
a luta seja recente, mas como enormes dissabores nas disputas territoriais, o
que interessa é construir uma linguagem comprometida com a postura de com-viver
na diferença, aceitando a existência da pluriculturalidade onde a
biodiversidade é um consenso incondicional.
Situar
a EA nesta complexidade é também assumir os riscos. E provocando algumas
amarras universitárias, um dos maiores desafios é poder reconhecer que todo
conhecimento é igual por direito. Isso implica dizer que a EA não tem a
pretensão de ensinar as pessoas, conscientizá-las ou torná-las aptas e capazes
porque são ignorantes. O valor de quem educa, e de quem é educado, está sempre
na dependência da subjetividade do nosso próprio olhar. O que aceitamos como
verdade determinará o objetivo, o método e a didática da educação. E por isso
mesmo, vale repensar o sistema de ensino modificado para um sistema de
aprendizagem. Esta mudança mudará o foco de produtos por processos, de objeto
por sujeito e, fundamentalmente, de ensinar unilateralmente por aprender coletivamente.
O abandono do “eu-colonial” pelo “nós-solidário” possibilitará que o letramento
ambiental seja assumido como algo ainda não finalizado, e também revelará que
mais do conhecimento científico, as mudanças do mundo podem ser abluídas por
outros saberes populares.
Na
história do Quênia, uma mulher dinamarquesa enfrentou enormes desafios ajudando
uma tribo “Kikuyo”, que trabalhava na colheita do café. Ela acreditava que ao
alfabetizar os nativos, poderia proporcionar empoderamento para controlar as
suas terras. Sua luta contra o tempo, acelerando o processo de alfabetização,
clamava por uma visão iluminista de vencer o medo pelo conhecimento. Os Kikuyos
são gratos pelo letramento, porém já possuíam suas próprias sabedorias, seu
jeito de ver o mundo, lidarem com a terra e sobreviver dignamente, SE o império inglês não tivesse
explorado esta gente de forma tão danosa. Todavia, ao serem colonizados por uma
cultura alienígena, tiveram que obter “informações críticas” para decidir sobre
uma vida nos moldes europeus, gerando relações sociais competitivas de produção
agrícola.
Estranha contradição para aqueles que crêem no tempo - a
história geológica nos mostra que a vida não é mais que um curto episódio entre
duas eternidades de morte e que, neste próximo episódio, o pensamento
consciente não durou e não durará mais que um momento. O pensamento não é mais
que um clarão em meio a uma longa noite (POINCARÉ, 1995, p.173).
Também
no Pantanal, há um rico cardápio de saberes e sabores que derivam de valores subjacentes
que fazem a vida mais prazerosa, vagarosamente pulsante na dinâmica da vida e
da morte. Por isso, há que se pensar em um desenvolvimento transcendente de
valores meramente econômicos ou acadêmicos. A noção de desenvolvimento
necessita ser percebida como algo mais amplo, sem o confinamento mercadológico
e onde o conhecimento assuma magnitude além das ciências, e reconheça que os sujeitos
sem escolarização também possuem seus próprios olhares e conhecimento
diferenciado.
A
paisagem da EA assume seu engajamento pela possibilidade de manutenção da
identidade cultural da comunidade pantaneira, propiciando que as mulheres,
homens e crianças continuem a desenvolver-se com a sabedoria do manejo das
espécies sob um conteúdo de mundividência e significado simbólico que garante a
sobrevivência, a reprodução e conservação, através do manejo artesanal das
espécies que lhes asseguram a sobrevivência. Dessa forma, acreditamos que a
proteção dos ecossistemas naturais implica também em assegurar as identidades sociais
do Pantanal (SATO & PASSOS, 2002).
Na
paisagem das políticas públicas, o Programa Pantanal é coordenado pelo
Ministério do Meio Ambiente, com colaboração do Ministério da Educação, e inauguram
uma orientação à sustentabilidade pantaneira que considere a participação
democrática, justiça social e proteção ambiental, com a dimensão econômica
pautada apenas como fator subjacente à sustentabilidade (LARRAÍN; LEROY &
NANSEN, 2002). Com identidade neste amplo Programa, a Rede Mato-Grossense de Educação
Ambiental (REMTEA-MT) e a Rede Pantanal de Educação Ambiental (AGUAPÉ-MS) abdicam
a idéia de que a sustentabilidade possa ser alcançada somente pelos sujeitos
empresariais, ou pela ciência e técnica, e o sonho é oferecer oportunidades de
empoderamento ao Pantanal e sua gente, que através da participação comunitária,
seja capaz de desenvolver projetos ambientais escolares comunitários,
tornando-os sujeitos responsáveis à construção da sustentabilidade.
Para
nós, a participação ativa da comunidade faz-se fundamental. Para tal envolvimento,
todavia, há que se criarem mecanismos educacionais eficientes que realmente
incentivem o exercício de cidadania da comunidade para a manutenção dos
ambientes de uma forma sustentável. A dimensão política destaca que diferentes
povos têm seus próprios sistemas de valores, conceitos de liberdade, democracia
e direitos. A dimensão econômica dita que cada país ou região define um estilo
econômico adaptado à sua cultura, capacidade científica e tecnológica e escala
de valores. Nesse contexto, a EA deve considerar que a criação de uma sociedade
cidadã requer modificações, não somente no plano ecológico da manutenção dos
ecossistemas, mas também na avaliação dos valores políticos e culturais que
determinam a relação com a natureza.
Algumas
metas e proposições no marco do Programa Pantanal, em convênio com o Centro de
Pesquisa do Pantanal (CPP), estão ancoradas em:
a) Fortalecimento de
políticas públicas, inclusive com intercâmbio constante das redes de EA (local
e nacional), além de diálogos além das fronteiras, com a Bolívia e Paraguai;
b) Construção das utopias
sociais e ecológicas, favorecendo o empoderamento comunitário à conservação
ambiental;
c) Formação inicial e
continuada em EA, em todos os níveis e idades, através da educação presencial,
a distância e difusa;
d) Efetivação da comunicação
circular, com estratégias de capilarização comunicacional através de rádios
comunitárias ou demais alternativas que garantam o envolvimento de um receptor
mais ativo;
e) Produção de materiais educativos
locais, que assegurem a vivência e coerência regional;
f) Formação de um banco de
dados que revele o estado da arte da EA, cientes de que jamais concluiremos uma
fotografia estática desta dinâmica; e
g) Criação de um Observatório
da EA, cuja função não é exercida passivamente, mas ocorre através de uma
avaliação participativa, oferecendo proposições para superar os limites e
favorecendo a sustentabilidade das ações em curso.
Para
o Pantanal, portanto, a EA deve estar inserida na in-completude da proposta, cujas
utopias sociais e ecológicas se entrelaçam em redes de comunicação e diálogos
mutáveis. Em todo momento de nossas vidas, há um duplo fenômeno perceptivo.
Simultaneamente mergulhados e distantes nas paisagens internas e externas - de
estranhamento e também de maravilhamento. Nossa paisagem interior se confunde
com a exterior, interpenetram-se revelando que o estado da alma é passageiro. O
fogo se agita, o lago é ondulado pelo vento buscando a firmeza da terra que nos
dê abrigo, sol ao nosso espírito. Ainda que muitas vezes não saibamos discernir
a paisagem externa da interna, porque a intersecção causa certa cegueira, e
ainda que a esperança pulse forte na construção de nossas utopias, reconhecemos
o caos e a incerteza. Para nós, entretanto, não importa a colheita. Semeamos
sóis e estrelas, e nos momentos de lesões pelos espinhos, aprenderemos retornar
incompletos na dinâmica da seca e da chuva, pois a criação de um vasto Programa
de EA no Pantanal é um exercício da nossa liberdade, que certamente permitirá
ir além de nós mesmos.
BIBLIOGRAFIA
BHABHA, Homi. O
local da cultura. Belo Horizonte: EdUFMG, 1998.
LARRAÍN, Sara;
LEROY, Jean P.; NANSEN, Karin (Eds.) Cono sur sustentable: aporte ciudadano a la
construcción de sociedades sustentables. Berlín: Fundación Heinrich
Böll, 2002.
POINCARÉ, Henri. O
valor da ciência. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995.
SATO, Michèle; PASSOS, Luiz A. Biorregionalismo: identidade
histórica e caminhos para a cidadania. In LOUREIRO, C.F.B.; LAYARGUES, P. &
CASTRO, R.S. (Orgs.) Educação ambiental:
repensando o espaço da cidadania. São Paulo: Cortez, 2002, p.221-252.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |