O DICIONÁRIO E A PRÁTICA PEDAGÓGICA:
UNIDADE E DIVERSIDADE
Mariza Vieira da Silva
Universidade Católica
de Brasília
Esta
comunicação inscreve-se em um projeto mais amplo denominado História das Idéias
Lingüísticas no Brasil (acordo CAPES/COFECUB),
desenvolvido entre duas instituições brasileiras, a Universidade Estadual de
Campinas e a Universidade Estadual de São Paulo, e uma instituição francesa, a École Normale Supérieure
Lettres et Sciences Humaines de Lyon. Nela,
busco refletir e sistematizar um trabalho desenvolvido em sala de aula, no
Curso de Letras, com o aporte teórico da Análise de Discurso, centrado no
dicionário enquanto um saber histórico e um objeto discursivo, buscando
analisar os efeitos de sentido que se produzem ao alterar as condições de
produção dos trabalhos acadêmicos, em um curso que forma professores para a
Educação Básica, criando possibilidades de uma apropriação outra deste
instrumento lingüístico. Trata-se, pois, de questionar a evidência do saber
construído no e pelo dicionário, abrindo espaço para a interpretação, bem como
para deslocamentos na posição sujeito do conhecimento que habita o discurso
pedagógico. Trata-se, ainda, de refletir sobre a língua como uma questão do
Estado (cf. Gadet e Pêcheux, 1981), em que se
administra a diversidade face à necessidade de se ensinar e aprender uma língua
nacional, e da relação entre filiações teóricas e práticas pedagógicas,
enquanto uma questão ética das políticas de língua.
Uma prática
pedagógica ao colocar em movimento a historicidade dos dicionários, enquanto
estrutura e acontecimento (cf. Pêcheux, 1990), cria condições para a historicização da posição do sujeito escolarizado na
articulação do conhecimento escolarizado ao conhecimento científico de produção
de um saber lexical, de um instrumento tecnológico referido a uma exterioridade
lingüística e histórica. No trabalho realizado com os dicionários – análise de
verbetes, de prefácios, de tipos de dicionários -, os alunos puderam observar
esse trabalho de mão dupla dos dicionários ao construir um imaginário para o
sujeito habitar: criando uma relação específica entre as palavras e as coisas,
e usar essa relação, tornada naturalizada, para o sujeito se significar e
significar o mundo, ou melhor, criar certos percursos para o deslizamento de
sentido na produção de efeitos metafóricos (cf. Pêcheux, 1969). Pode-se, então,
observar como funciona essa administração dos sentidos no interior de uma mesma
língua, pela seleção, organização, distribuição e controle das formas
significantes, considerando a estruturação dos verbetes e do próprio
dicionário, evidenciando que a unidade imaginária que o dicionário do português
no Brasil constrói se dá pelo apagamento de uma série de relações – de
inclusão, de exclusão, de conflito, de confronto, de filiação, de opacidade -
entre as línguas.
Essa historicização do dicionário nas práticas pedagógica e
acadêmico-científica passa necessariamente pela desconstrução
e compreensão do efeito da representação de completude de uma língua, que o
dicionário produz (cf. Orlandi, 2002), ao explicitar
e analisar as relações intertextuais e interdiscursivas ali presentes, mas
apagadas, criando condições para o deslocamento deste imaginário e seus
efeitos, do trabalho da memória e do funcionamento da ideologia. Nesse trabalho
de desconstrução, o aluno face à
incompletude constitutiva do dicionário só podia
creditá-la a algo que escapara ao autor do dicionário ou a sua capacidade de
compreensão: um problema do e para o sujeito. O apagamento das relações entre
verbetes – intertextuais – e entre línguas – interdiscursivas -, cuja
explicitação e análise trazia para o espaço escolar o jogo e movimento da
língua, par aquele que a fala, da história, para aquele que a faz, causava
surpresa, estranhamento, denegação do que observava por parte do sujeito, uma
experiência que fascinava e provocava medo. Um mundo de certeza e de completude
se diluía no achar-e-perder dos elos de suas cadeias ilusoriamente objetivas e
seguras (cf. Silva, 1996). O dicionário adquiria, assim, como diz Orlandi (2002), o
sentido de uma tecnologia própria à configuração de relações sociais
específicas e entre seus sujeitos, na história. Ele é, desse modo, constitutivo
da formação social, e de produção de uma subjetividade.
Saber que o
dicionário não é um monumento à língua, mas um instrumento tecnológico
construído pelo homem em momentos históricos determinados, sendo a neutralidade
e objetividade efeitos ideológicos, pelo apagamento da interpretação ali
presente, foi uma dos maiores ganhos nesta análise discursiva feita pelos
alunos; poder observar e compreender como ali o saber a língua e o saber sobre
a língua andam juntos, como a unidade se produziu pelo apagamento, pelo silenciamento, pelo esquecimento, mas também pelo
repetível, pela presença constante de um memorável, tornado nacional, oficial.
A posição sujeito-usuário de dicionário é de identificação com esse efeito
ideológico de unidade e de universalidade da língua, da língua de todos os
brasileiros.
Este
trabalho permitiu colocar em questão também a relação entre língua e
literatura, em sua opacidade, que na prática escolar aparecem como campos
distintos, sendo o primeiro o espaço da coerção e, o segundo, o da liberdade,
esquecendo-se de que os dicionários, enquanto instrumentos lingüísticos de
criação e estabilização de referentes e sentidos, e os textos literários que aí
são usados, como exemplos, para instituir e legitimar o modo adequado e
correto, ajudam a construir esse imaginário de que falamos.
Mas não há uma única mão nesse
processo de produção do conhecimento sobre o português como língua nacional em
sua relação com as obras e autores da literatura, pois nem todos os autores são
“escolhidos” pelos gramáticos e dicionaristas. Agustini
(2004) lembra que Lima Barreto, um autor
do modernismo, ‘subversivo’ em relação à língua, dificilmente será referido
para legitimar uma regra gramatical. E falando dessa mão dupla, dessa circularidade existente entre a norma e o cânone, esta
autora lembra também que a gramática (e
o dicionário, acrescentaríamos) tem uma certa
importância na consagração de um autor, já que o põe na condição de modelo de
comportamento lingüístico correto e, mais que isso, estilístico.
Os resultados obtidos pelos alunos, decorrentes de se criarem condições na prática pedagógica para uma nova relação do sujeito com o dicionário, apontam para outras formas de apropriação de um objeto cultural pelo trabalho de re-significação, de memória, evidenciando que o conhecimento dicionarizado não é só um conjunto de informações corretas e unívocas sobre a língua, mas um elemento estruturante do sujeito em uma sociedade capitalista letrada como a nossa. Desenvolver uma prática pedagógica na instância da formulação do sentido, da produção do imaginário é trabalhar o logicamente estabilizado de forma a produzir rupturas, é situar o sujeito nessa rede discursiva, que produz o efeito de completude, de estabilidade, de imobilidade das línguas.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |