O VÍDEO TERRAS DE QUILOMBO – UMA DÍVIDA HISTÓRICA E A SITUAÇÃO DOS REMANESCENTES DE QUILOMBOS DE ALCÂNTARA, NO MARANHÃO

 

Maristela de Paula Andrade, antropóloga

Universidade Federal do Maranhão

Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais

 

O vídeo Terras de Quilombo – uma dívida histórica, de autoria de Murilo Santos e realizado pela Associação Brasileira de Antropologia, trata do tema remanescentes de quilombos, focalizando a situação dos grupos atingidos pela implantação do Centro de Lançamento de Alcântara. O vídeo se inicia mostrando cenas da passeata dos orixás, acontecimento relativamente recente, conduzido por pais de santo de São Luís que são também políticos. O vídeo procura mostrar a passeata, a concentração de vários terreiros de religião afro-brasileira, justamente em uma das áreas mais centrais da cidade, um dos locais sobre o qual se sustenta o mito da fundação francesa da cidade de São Luís do Maranhão. Os descendentes dos escravos negros, as peças, como eram chamados, reúnem-se onde hoje se encontra a estátua de Daniel de la Touche, o chamado Senhor de la Ravardière,  suposto fundador de São Luís, símbolo de um presumido passado francês da Ilha de S. Luís, mito tão bem desmontado pela historiadora Lourdes Lacroix.  O vídeo já se inicia, portanto, chamando a atenção para o contraste entre uma sociedade branca, de senhores, e os negros escravizados.

Fechando o vídeo, e esse é um dos pontos altos do trabalho, Dona Margarida, caixeira mor da festa do Divino Espírito Santo de Alcântara, diz que reconhece estar na hora de ser substituída, de promover a iniciação (“estou pelejando lá com a menina, com a Romana, para ver se eu aprumo ela”) de uma nova caixeira que possa substituí-la. A escolhida é sua sobrinha, moradora da Ilha do Cajual. A Ilha do Cajual é bastante distante da agrovila Cajueiro, onde reside D. Margarida, não estando afetada diretamente pelas expropriações para implantação do CLA . Cajual e Cajueiro podem ser considerados pontos opostos desse grande território étnico a que o filme alude. No entanto, a distância geográfica não é importante. Os vínculos de parentesco, os vínculos culturais, ligam esses dois pontos de tal modo que D. Romana está sendo preparada para substituir D. Margarida. Dona Romana é o que os maranhenses chamam de brincante do tambor de crioula. Ela é uma das chamadas coureiras, uma das figuras que participa dessa dança e dizem que também participa também de terreiro de mina. Dona Romana reúne, portanto, segundo as normas do grupo, os atributos para substituir D. Margarida. Ela é, digamos assim, um “produto cultural” completo. Não é todos os dias que se forma uma caixeira. Não é qualquer pessoa que pode substituir uma caixeira mor.

Quando D. Margarida diz que reconhece que sua voz já não estão como dantes e que há que existir alguém para substituí-la, está afirmando a necessidade imperiosa de reprodução de uma prática cultural. Ela reconhece que é a portadora (enquanto existência física, temporal) de uma prática cultural que já encontrou (os trabalhadores maranhenses dizem quando me entendi, já achei... quanto tomei entendimento de gente, já encontrei...) e que deve permanecer após ela. Ela é a portadora de um patrimônio que transcende sua vida enquanto ser individual ou sua alocação em determinado ponto do território étnico. Um patrimônio que a vincula a um tempo transcendental, digamos assim, um tempo que transcende aquele tempo cronológico. Ela se retira, ela sabe o momento de fazê-lo, mas tem consciência de que uma de suas tarefas, antes de retirar-se, é formar uma pessoa para substituí-la, é repassar  o modo de cantar, é transmitir os cânticos e as complexas regras que regem a participação das caixeiras nesse ritual. E as caixeiras, como os DJ do reggae em São Luís, também são oriundas dessas comunidades negras, dessas terras que atualmente conceituamos como de remanescentes de quilombos.

Quando o Estado realiza qualquer intervenção, principalmente esta para implantação do centro de lançamento de foguetes, brutal em todos os sentidos,  é completamente cego para esses aspectos, subvertendo toda uma cadeia de eventos, de rituais, de relações entre povoados, próprios de uma certa maneira de pensar o tempo e o espaço. D. Margarida cumpre o seu papel em determinado período de tempo da história do grupo e então percebe que o ciclo deve continuar, que o ritual tem que se reproduzir. Acontece o mesmo com D. Maria do Carmo, outra trabalhadora que aparece no vídeo, quando diz que as festas ocorrem na agrovila, apesar de todos estarem empobrecidos, porque não podem parar, porque são festas que chama de obrigação. Há compromissos entre os vivos e os santos que não podem ser quebrados, geração após geração. E o Centro de Lançamento  interrompe brutalmente esses ciclos, subvertendo o espaço, subvertendo o tempo, subvertendo as formas de relação com os recursos da natureza, subvertendo a ordem regida por laços de parentesco, pelo reconhecimento daqueles que compartilham uma história, que adotam os mesmos sistemas de crenças.

Quando o vídeo exibe as festas, a de São Benedito, no Cajual e a de N.Sra do Carmo, na agrovila Marudá, percebe-se a diferença, a pobreza da festa na agrovila, onde o deslocamento compulsório das famílias misturou dezessete povoados, com seus santos, seus grupos de parentes, seus cemitérios, suas regras próprias de relação com os recursos naturais. Assim, com sua cegueira peculiar, os aparelhos de estado (sejam quais forem – no caso é a Aeronáutica) pensam poder indenizar as famílias. E vemos uma senhora negra, descendente de escravos, dizendo o que pode comprar com os 400 reais que recebeu – um guarda roupa, uma cama, um radio... Assim como não é possível repor aquele cajueiro, aquele cajazeiro, as famílias da agrovila não conseguiram restaurar seus fundos cerimoniais, mas não podem interromper as relações com os santos e lá estão as duas crianças presentes na pobre procissão, atravessando o espaço exíguo da agrovila e cuja presença no ritual, certamente, é o resultado de promessas feitas por seus pais e avós. E estão vestidas de branco, com apuro, com esmero, indicando que as famílias retiraram recursos da manutenção para arcar com os compromissos religiosos.

Dona Margarida fecha o vídeo, chamando a atenção para o mapa desse grande território étnico, demonstrando que é indiferente estar dentro ou fora da área do Decreto (Cajual não se encontra dentro da área do Decreto), pois todos serão afetados por essa intervenção. Neste sentido um outro aspecto que se ressalta no vídeo é o momento em que Dona Romana, a caixeira que está sendo iniciada, se prepara, na casa de seu filho, na periferia da cidade, para participar, pela primeira vez, como caixeira do Divino. E aqui um aspecto muito importante da conformação desses territórios étnicos aparece – os membros desses grupos estão na periferia de Alcântara, estão na periferia de São Luís, estão em diferentes povoados. Há elos invisíveis ligando-os. Há invisíveis redes ligando os terreiros de São Luís e  os invisíveis (os encantados, seres sobrenaturais) que acreditam habitar dentro dos povoados atingidos pelo Decreto de expropriação das famílias. A chamada Pedra de Itacolomi está nesse território, mas o culto aos seres sobrenaturais que, segundo os remanescentes de quilombos a povoam, ocorre em São Luís e outros municípios do Maranhão.

Todos esses aspectos são desprezados pelos planejadores e pelos militares que administram o Centro de Lançamento. Para eles, os remanescentes de quilombo nada mais são do que simplesmente peças, cidadãos de segunda categoria a quem o Estado pode expropriar, ainda que a Constituição de 1988 lhes garanta o direito de terem reconhecidos e titulados seus territórios.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004