TERMINOLOGIA TÉCNICO-CIENTÍFICA DO
CÓDIGO PENAL BRASILEIRO E DO PORTUGUÊS: ÉTICA E LEGALIDADE
Marieta Prata de Lima
Dias - UFMT/UNEMAT
Neste artigo, o
objetivo é comparar alguns termos do Código Penal brasileiro (Parte Geral) – CPb - e do Novo
Código Penal português (Parte Geral) – Novo CPp - , suscitando reflexões sobre ética e
legalidade na diversidade cultural.
Nos tempos primitivos, os fenômenos
naturais maléficos eram sentidos como ira das forças divinas encolerizadas pela
prática de determinados fatos. Para aplacar sua ira, criaram-se proibições,
conhecidas como tabus, que deveriam
ser obedecidas. A infração aos tótens e a
desobediência aos tabus geravam o crime
e o castigo, ou seja, a pena. Quando
o infrator fosse membro do grupo, punia-se com a perda da paz pelo banimento da
tribo e, quando estrangeiro, pela vingança com sangue. Era a fase da vingança privada.
Como avanço penal, surgiram outras
penas como o talião, que considerava olho por olho e dente por dente, a composição, a multa, os agravos físicos,
a pena de morte e a prisão perpétua.
No período clássico do Direito
Romano, a conquista do poder em todo o Mediterrâneo exigiu a adaptação e a
criação de novas normas no campo jurídico. Foram publicados o
Codex
(coletânea das leis emanadas pelos imperadores), o Digesto
ou Pandectas (obras dos jurisconsultos), o Institutione
(manual de direito para estudantes) e a Novellae (leis editadas). Estes quatro volumes
encarregaram-se de preservar o Direito Romano para a posteridade.
A influência crescente da Igreja
sobre os governantes expandiu a aplicação do Direito Canônico à população em
geral, com penas mais suaves, objetivando o arrependimento do réu, proclamando
a igualdade entre os homens e acentuando o aspecto subjetivo do crime e a
responsabilidade penal. Havia penas espirituais (penitências e excomunhão) e
temporais (penas carcerárias). A noção de pena com a finalidade de expiação,
regeneração do criminoso e purificação da culpa levou ao excesso da Inquisição.
No fim do século XVIII, como reflexo
do Iluminismo, iniciou-se a humanização do Direito Penal, cujas idéias
produziram a Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa.
No século XIX, a preocupação em
estudar o homem delinqüente, explicar a causa do delito e a necessidade de se
tratar o Direito como ciência deram origem à discussão doutrinária e motivaram
o surgimento das chamadas Escolas Penais. A história da evolução do Direito
Penal ainda está por ser contada; porém, a falência completa dos sistemas
clássicos de medidas penais em geral e o alarmante crescimento da criminalidade
violenta são constatados.
Os costumes penais dos indígenas
brasileiros, que habitavam o Brasil antes de 1500, compreendiam a entrega do
criminoso à vítima ou a seus familiares, no caso de homicído,
e a conversão em crime de Estado, quando o delinqüente pertencia a outra tribo. Na Península Ibérica, após a queda do Império
Romano do Ocidente e a invasão bárbara, o Código Visigótico e os cânones
vigoraram do século V à independência de Portugal, no século XII, quando
adotaram as leis das diversas regiões do Reino, baseadas nos usos e costumes
locais. Posteriormente, foram aplicadas as primeiras Leis Gerais (em 1211 e
1251), o Direito da Igreja e o Direito Romano revitalizado. Em 1446, as Ordenações Afonsinas,
com as características da Idade Média anteriormente descritas, consistiram no primeiro código completo
surgido na Europa e fixaram a decisão punitiva nas mãos do Estado. Com poucas
correções, foram revistas e promulgadas em 1521, sob a denominação de Ordenações Manuelinas e, alguns anos
mais tarde, acrescidas de novas leis relacionadas ao comércio, sob o título de Compilação. Ao passar para o domínio
espanhol, Portugal foi regido pelas Ordenações
Filipinas, promulgadas em 1603 e que permaneceram após a reaquisição da
independência, em 1643.
As Ordenações Filipinas constituíram
o primeiro Código brasileiro e o de mais longa vigência, 1603 a 1830. Refletiam
o Direito Penal dos tempos medievais, confundindo o crime com o pecado e com a
ofensa moral. Tiradentes, o mártir da independência, foi julgado por estas
Ordenações, em 1792. Após o Código Criminal brasileiro de 1830, seguiu-se o
Código Penal de 1890.
Na história do CPp,
até início do século XIX o livro 5º das Ordenações Filipinas servia como CP,
além de outros documentos. De 1778 a 1837, houve várias tentativas de redação e
aplicação de código criminal. O governo editou uma publicação oficial do Código
Penal em1886.
Analisando o CPb
e o Novo CPp, constata-se que ambos traçam regras
básicas na Parte Geral, aplicáveis aos <tipos legais de crime>
descritos na Parte Especial,
o que demonstra a mesma filiação ao Direito Romano.
O CPb data
de 1940, período da ditadura do Estado Novo derrubada em 1945. Sua Parte Geral
foi alterada pela Lei nº 7.209 de 11 de julho de 1984. O Novo CPp data de 1994, período democrático iniciado em 1974 e
acompanhado de desenvolvimento econômico, florescimento cultural e maior
afirmação no campo das novas tecnologias. As marcas destes regimes são
observadas no enunciado do ato performativo da autoridade legalmente
constituída constante no CPb - além da informação
legal Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro
de 1940, há “O Presidente da República, usando da atribuição que lhe
confere o art. 180 da Constituição, decreta a seguinte Lei:” e, no final, a
data (“Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1940; 119º da Independência e 52º da
República.”) e assinatura (“Getúlio Campos Francisco Campos”, Presidente da
República e Ministro da Justiça, respectivamente, na ocasião.) – enunciado não
presente no Novo CPp - “Aprovado pelo Decreto-Lei nº
48/94 de 15 de março e Decreto-Lei nº 48/95 de 15 de março”, sem a assinatura
do Presidente ao final (Aprovação do Novo
Código Penal).
.O Direito Penal tem como função
proteger os bens ou interesses jurídicos e manter a paz social. Compreendendo
por bem tudo que possa satisfazer uma
necessidade humana e, por interesse,
a relação estabelecida entre o indivíduo e o bem, foram examinados os bens
jurídicos protegidos pelos CPs alvos. No CPb, são onze: a pessoa, patrimônio, organização do
trabalho, sentimento religioso e respeito aos mortos, costumes, família,
incolumidade pública, paz pública, fé pública e documentação pública e
particular. No Novo CPp são cinco: as pessoas,
patrimônio, paz e humanidade, vida em sociedade e Estado. A titularidade
escolhida por ambos os códigos são bastante coincidentes e demonstram traços
éticos comuns entre as duas nações, ao terem como centro o homem - sua pessoa,
o limite de seu patrimônio e a harmonia de sua organização familiar, social e
política.
No CPb, a
Parte Geral é composta por oito Títulos (Artigo 1º ao Art. 120) e a Parte
Especial por onze (Artigo 121 ao Art. 361). Relacionando-se os Títulos da Parte
Geral, fica bem evidente a remissão à pena
pelo CPb, à exceção do Título II (que fala de
<crime>) e IV (que diz sobre o <agente>), e ao crime, pelo Novo CPp, à exceção do Título
III (que diz das penas) e IV (que se posiciona ao lado da <vítima>). Há Da aplicação da Lei Penal, Do crime,
Da imputabilidade penal, Do concurso de pessoas, Das penas, Das
medidas de segurança, Da ação penal
e Da ação penal, no CPb, e Da Lei Criminal, Do facto, Das conseqüências jurídicas, Queixa e
acusação particular, Extinção da responsabilidade criminal e indemnização de perdas e danos por crime.
O resgate dos
respectivos regimes políticos – ditadura e democracia – explicita a opção de cada texto. Esta opção
por penalidade, no CPb, é reforçada e de certo modo “impessoalizada” pelo uso do verbo na 3ª pessoa do singular
com a partícula se, enquanto no Novo CPp há maior constância do sujeito gramatical Lei Penal, como se lê ao tratarem de
<tempo do crime> e <momento da prática do facto>,
respectivamente – “Considera-se praticado o crime (...)” (Art.
4º CPb) e “O facto
considera-se praticado (...).” (Art. 3º Novo CPp).
A observação dos valores
ético-culturais por meio de termos só é possível por
meio de sua reinserção no contexto discursivo e, no
caso do texto legislativo, no sistema temático.
No Título I, o CPb
refere-se à <territorialidade>, sem referência à naturalidade do agente
(Afinal, trata-se um povo formado por tantas naturalidades!) e o Novo CPp, de <Lei Penal no espaço> e <território
português>. O sufixo –dade, adicionado ao adjetivo territorial forma o substantivo territorialidade,
indicativo de quantidade. São, pois, os 8.511.996 Km2
brasileiros em vista dos 92.152 km2
portugueses. Por isso, também o CPb diz
<território nacional> e o Novo CPp,
<território português>. Segundo Cernicchiaro (1974), “o conceito de
território para o Direito Penal é eminentemente jurídico, não se confundindo
com a definição geográfica do termo. Território é todo o espaço em que Estado
exerce a soberania, isto é, onde o seu ordenamento jurídico tem eficácia e
validade. (...)”. Portanto, a diferença entre os termos dos Códigos permanece
quanto ao uso de nação e de português. Pode-se dizer que o primeiro
representa, no contexto de produção – 1940 -, o imaginário de um povo há pouco
mais de um século reconhecido como nação e não mais colônia portuguesa.
Na seqüência de Títulos, a análise
apresenta termos equivalentes e termos específicos de cada CP. Como exemplos de
termos equivalentes citam-se: <crime>, <pena>, <lei>,
<agente>, <omissão>, <tipo legal de crime>,
<resultado>, <lesado> e outros como CPb Novo CPp
<erro sobre a
ilicitude do facto, se o erro não lhe for
censurável> |
<erro sobre a
ilicitude do fato inevitável> |
<<erro sobre a
ilicitude do facto, se [o erro] lhe for
censurável> |
<erro sobre a ilicitude
do fato evitável> |
<excesso de
legítima defesa> |
<excesso
punível> |
<liberdade
condicional> |
<livramento
condicional> |
<liberdade para
prova> |
<liberação
condicional> |
<título de
condução> |
<carteira de
motorista> |
afastar um perigo actual |
[salvar] perigo atual |
<regime de semidentenção> |
<regime aberto> |
No CPb,
são listadas 44 <circunstâncias agravantes>, diferentemente do Novo CPp, que menciona o termo <circuntâncias
agravantes>, mas não as enumera, embora a <reicidência>
seja considerada. Os termos da listagem brasileira demonstram valores culturais
peculiares, principalmente quando se referem a laços afetivos. Já quanto às
<circunstâncias atenuantes>, no CPb são treze
e, no Novo CPp, enumeram-se dez. A
diferença quantitativa entre as < circunstâncias agravantes> e as
<atenuantes> evidencia mais uma vez o enfoque no penalizar, no
agravamento da sanção presente no CPb; agir que não
se diferencia tanto, quando se trata de diminuir a pena.
A tematização na penalidade também
se faz constante em outros sentimentos — <emoção> e<paixão>,
no CPb, são causas não excludentes da imputabilidade
penal, que se referem a estado afetivo de momentânea perturbação na maneira de
pensar e agir, sem retirar, todavia, a capacidade de entendimento da ilicitude
do fato e de autodeterminação (Dias, 2002:317). Diferentemente, <perturbação
[não censurável]>, <medo [não censurável]> e <susto [não
censurável]>, no Novo CPp, possibilitam ao agente
não ser punido caso haja <excesso de legítima defesa> (Art. 33º).
Quanto à <pena de multa>, a diferença é que, em Portugal, é fixada em euros e, no Brasil, pelo maior salário mínimo vigente ao
tempo do fato. Percebe-se que a representação social de salário mínimo
apresenta-se como índice de cálculo de pagamento inclusive no CPb, enquanto a opção pelo euro
significa a presença de Portugal na Comunidade Européia.
No capítulo II – Penas -, do Título
II, do Novo CPp, consta <admoestação>, que
“consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal” (Art. 60º). Esta pena não consta no CPb
e isso leva a refletir sobre seus efeitos numa cultura em que a “esperteza é tomada como
qualidade do ‘caráter’ brasileiro: indivíduos e grupos que se sustentam nessa
posição consideram-se plenamente inseridos no processo, de acordo com a
identidade cultural, tal como construída no imaginário coletivo. (Pais, 1999:
155).
Por
este breve estudo, confirma-se que os textos legais são
repositório de uma evolução histórica determinada e de um conjunto de
necessidades reveladoras das tendências espirituais de uma época e de um povo.
Atualmente, um grupo de juristas representantes de quase
todos os membros da Comunidade Européia estudam em conjunto novo sistema
normativo jurídico para maior aproximação convergente do Direito. Como ficará o
Novo CPp em relação ao CPb,
daqui uns tempos?
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |