AS DIFICULDADES DE
EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA NO BRASIL: RECONSTRUINDO O DEBATE INTELECTUAL E
POLÍTICO PROPOSTO POR CELSO FURTADO
Maria José
de Rezende
Compreender as razões das dificuldades econômicas,
políticas e sociais brasileiras no que tange à superação das múltiplas
exclusões foi um dos principais desafios enfrentados por Celso Furtado em sua
obra. Essa temática perpassou, ao longo
dos anos, suas principais reflexões. Os
desvendamentos das condições históricas, nas quais as desigualdades e o
autoritarismo foram produzidos e dilatados através das ações dos setores
preponderantes, esclarecem os desafios que a sociedade brasileira teria que
enfrentar para superar os seus descompassos num mundo em que era visível, ele
afirma isso em 1946, uma concentração extrema do poder econômico e uma
diminuição paulatina “do espaço em que se move o indivíduo” acarretando “uma
atrofia da vida política” (FURTADO, 1997, p.97).
O desafio estava posto, já que, em sua visão, a
possibilidade de mudança passava pelo aumento dos espaços políticos nos quais
os indivíduos e os grupos deveriam mover-se para combater as resistências à
mudança que se eternizaram, por parte dos setores arcaicos da economia e da
política brasileira. De que maneira, numa sociedade oligárquica como a
brasileira, repercutiria a concentração de poder econômico e político que se
delineava, no mundo, após a segunda guerra? Que formas assumiriam as
indisponibilidades, por parte dos setores preponderantes, para o enfrentamento
das diferenças na arena política numa situação de recrudescimento autoritário
mundial que tomava forma em virtude das políticas autoritárias embaladas pelas
ações das duas potências bélicas (EUA e Rússia) dos anos 50s do século XX?
A análise das condições sociais que refutavam
continuamente o florescimento de uma sociedade democrática remetia à
necessidade de pensar o indivíduo e a sociedade ao mesmo tempo. Esse caminho
levaria a decifrar as ações sociais dos diversos grupos diante dos desafios
colocados interna e externamente por uma determinada conjuntura. “A resistência das classes dominantes a toda
mudança capaz de pôr em risco seus privilégios“ (FURTADO, 1979, p.1), teria que
ser detalhadamente estudada para se compreenderem as (im)possibilidades de
mudança social no país.
Na sociedade brasileira, por exemplo, a produção de
mudanças significativas nos diversos planos da vida social, na década de 1950,
exigiria a sedimentação de canais de embates no plano político e social. Esses enfrentamentos de interesses é que
impulsionariam a sociedade brasileira a uma crescente diferenciação do sistema produtivo
e a um desenvolvimento das instituições políticas. Somente dessa maneira “o
motor do processo histórico deixa de ser os conflitos entre facções da classe
dirigente para ser os conflitos engendrados pela própria organização social”
(FURTADO, 1997a, p.281).
No início da década de 1950 era visível que se
gestavam no Brasil expectativas positivas quanto às possibilidades de mudanças
significativas. Essas, em que bases se assentavam? Para Celso Furtado, as
possibilidades de reversão da exclusão social e política se situavam na
indicação de que estava havendo uma evolução da democracia brasileira rumo ao
rompimento com a tutela populista que se estabeleceu desde 1930. A partir de meados do século XX,
delineava-se no horizonte a constituição de autênticas instituições
democráticas. Eram visíveis mudanças políticas que desafiavam o padrão de
domínio vigente propenso fundamentalmente à “busca de um compromisso entre a
democracia formal (exigida pela classe média) e um controle suficientemente
amplo do poder pela oligarquia de base latifundiária” (FURTADO, 1979, p.
10).
A abertura
do processo político aos setores populares urbanos se revelava como um desafio
significativo a esse padrão de domínio que se perturbava com o modo pelo qual
as massas passam a ter um papel relevante nas eleições. Nos anos 50s, do século
passado, isso passava a ser visto, principalmente pelos setores arcaicos da
economia, a oligarquia latifundiária, por exemplo, como uma afronta a ser
contida a todo e qualquer custo. As condições de atraso econômico e político
estavam sendo postas em questão a um só tempo. A industrialização e a
urbanização eram, então, a seu ver, processos de diferenciação social que
moviam significativamente “o eixo central da política brasileira” (FURTADO,
1979, p. 11).
Em que instância poderia verificar-se claramente uma
expressiva resistência à mudança política na década de 1950? Celso Furtado
afirma que bastava verificar o embate
que a oligarquia travava no parlamento brasileiro para impedir toda e
qualquer reforma, inclusive a institucional. Essa atitude dos congressistas
revelava que, em regiões dominadas pelo arcaísmo, “os efeitos das mudanças
políticas em curso eram imperceptíveis, e as velhas estruturas sociais
continuavam tão visíveis quanto as ossaturas dos organismos esquálidos” (FURTADO,
1997, p.128).
O processo
de mudança derivado da industrialização e da urbanização punha em evidência os
problemas econômicos, sociais e políticos sedimentados em inúmeras camadas que
se foram superpondo através dos tempos.
Tanto a ação política quanto o pensamento progressistas deviam
identificar tais sobreposições para formular planos de intervenção
eficazes. Para isso era necessário
“pensar a longo prazo e armar-se de meios para a luta de uma vida” (FURTADO, 1997,
p. 128).
Um traço definidor das dificuldades políticas
brasileiras estava, para Celso Furtado, no modo dos setores preponderantes
lidarem com as heterogeneidades e com as exclusões sociais que se cristalizaram
ao longo dos séculos no país. O emperramento das atividades político-partidárias
- as quais acabavam por ter pouco ou nenhum significado para a maioria das
pessoas – tinha suas raízes na naturalização das extremas desigualdades. Até
mesmo a construção de ações progressistas colidia com a precariedade
político-institucional brasileira e isso exigia - daqueles indivíduos e/ou
grupos que enveredassem pelo caminho do combate à exclusão social e política -
enfrentamentos na esfera da política institucional, da sociedade civil, dos
partidos, dos governos, das instituições, da burocracia, entre outras.
Celso Furtado recusava, assim, explicações
generalistas sobre as (im)possibilidades de mudança social da América Latina.
Era necessário, segundo ele, esmiuçar as atuações singulares dos setores
dirigentes em cada nação especificamente. Nas obras Formação econômica do
Brasil, A fantasia organizada, A fantasia desfeita e Brasil:
a construção interrompida ele destacou que existiam espaços, nos países
periféricos, para a atuação política dos setores dirigentes no combate às
condições de desigualdade. Discordava
ele, então, de todas as análises que insistiam deverem-se as dificuldades
latino-americanas à não-existência de meios de enfrentar as imposições dos
países industrializados. “A percepção da CEPAL era a de que a problemática do
desenvolvimento abarca todo processo social e político, razão pela qual a
política de desenvolvimento ter (ia) que ser inventada localmente” (FURTADO,
1997, p.277).
Em sua perspectiva era possível criar, na América
Latina, meios de enfrentamento da servidão imposta pelos países centrais à
periferia. Mas para isso era necessário que os setores preponderantes modernos,
ou seja, vinculados à urbanização e à industrialização se sobrepusessem, no
campo da própria política institucional, aos interesses dos setores arcaicos
vinculados ao latifúndio. Mas para que isso ocorresse era necessário que fossem
abertos canais de participação para os demais setores tornarem públicas também
as suas demandas na arena política. A industrialização deveria significar,
afirmava ele, o encerramento do período colonial e o cimento da própria
nacionalidade à medida que fosse colocada em questão a possibilidade tanto de
emergência de um confronto (entre os próprios setores dirigentes) que poria em
xeque as forças reacionárias (FURTADO, 1997, p. 166) quanto de uma redefinição
de todo processo político em vista da pressão das massas urbanas[1]
(FURTADO, 1979, p.12).
Ao lidar com
a problemática do desenvolvimento social, a Cepal trazia à tona o fato de que
todo processo de mudança estaria repleto de conflitos que tendiam a se expandir
continuamente. Os desafios a serem enfrentados dilatavam-se à medida que se
fazia necessário “criar instrumentos que dessem ao mesmo tempo eficácia e
transparência ao poder” (FURTADO, 1997, p.239). Se as condições de organização
do poder na América Latina iam inteiramente no sentido oposto da democratização
social e política, era evidente que as reações contrárias às idéias da CEPAL[2]
não tardariam a surgir tanto interna quanto externamente[3].
Numa situação em que se recusa taxativamente a
importância do conflito, do embate, como forma de mudança social e política,
eterniza-se a indisponibilidade para enfrentar os vários custos que o processo
de transmutação envolve, afirmava Celso Furtado. A questão essencial era a
seguinte: Estariam as classes dirigentes e dominantes, no Brasil especialmente,
dispostas a lidar com a ampliação da área de conflitos que o processo de
desenvolvimento industrial tendia a desencadear? O que a década de 1950
demonstrava sobre isso?
Nos livros Dialética do desenvolvimento e A
fantasia desfeita, há respostas a essas perguntas. Naquele primeiro,
publicado em janeiro de 1964, poucos meses antes do golpe militar, ele
argumentava que o conflito entre as diversas forças sociais era impulsionador
de mudanças sociais e políticas substantivas no país. Em resposta ao
alinhamento das classes preponderantes a uma constante busca pelo
desmantelamento das ações reivindicativas de reformas de bases, por exemplo,
ele alertava para o fato de que o enfrentamento entre forças sociais opostas
era a única forma de rumar o país para a construção de um padrão de organização
social menos excludente. O embate entre interesses antagônicos, portanto, a
luta de classes, tinha que ser vista como o fundamento das condições de reversão
da exclusão social e política ao qual a nação estava submetida. Ele afirmava
que, sem a valorização dos conflitos sociais, o país não chegaria a lugar
algum. Ou seja, a nação jamais se modernizaria social e politicamente (FURTADO,
1964).
Essas reflexões de Celso Furtado estavam sendo
feitas, tendo como pano de fundo a eminência do golpe militar que efetivamente
ocorreu dentro de alguns meses após a publicação dessas suas análises. O regime
que se instaurou em 31 de março de 1964 deixava claro, desde os seus primeiros
dias, que estaria empenhado no controle de toda espécie de embate,
reivindicação, contestação e antagonismos existentes e que, porventura, viessem
a existir. Consolidava-se, conforme ele demonstra em Brasil: a construção
interrompida (1992, p.75), a paralisação do desenvolvimento político[4]
.
Revelava-se, assim, que os setores preponderantes
não estavam dispostos a lidar com a expansão da área de conflito que o processo
social e político havia detonado. As organizações da sociedade civil, por
exemplo, desenvolviam no início da década de 1960 uma percepção da realidade
que as impulsionavam a reivindicações que tenderiam a desaguar em mudanças
sociais capazes de reverter o subdesenvolvimento ao qual o país estava
submetido. As reformas de base tinham, então, um papel essencial nesse
processo. A recusa, o pavor dos setores preponderantes em lidar com tais
reivindicações revelou muito acerca de suas disposições em “interromper um
processo de mudança social que circunstâncias muito particulares haviam
permitido florescer” (FURTADO, 1997b, p.37).
Observe-se que ao dizer que houve interrupção do
processo de mudança social, Celso Furtado não estava afirmando que cessava o
desenvolvimento econômico do país. Cessavam sim as possibilidades de encaminhar
o mesmo no sentido de um desenvolvimento que fosse também social e político.
Isso porque quando os militares, em 1964, chegam ao poder e através de um
regime autoritário, controlam o Estado e todas as suas instâncias, eles
encontraram um país com uma industrialização já sedimentada. No entanto, ao
amordaçar os agentes sociais que se empenhavam em gerar um desenvolvimento
social (intelectuais, sociedade civil, movimentos sociais, etc.), o regime
militar instrumentalizou um amplo processo de concentração da renda e de
expansão das desigualdades sociais. Implodia-se, assim, a construção dos
caminhos por onde a democracia deveria fluir.
Referências Bibliográficas
BOMFIM, M. A América Latina: males de origem. Rio de janeiro, Topbooks, 1993.
FURTADO, C. A fantasia
organizada. In Obra autobiográfica. São Paulo: Paz e Terra, 1997. p.
87-359. Tomo I
FURTADO, C. Brasil: da
república oligárquica ao Estado militar.
In Brasil: tempos modernos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.
1-23.
FURTADO, C. Aventuras de um
economista brasileiro. In Obra
autobiográfica. São Paulo: Paz e Terra, 1997a. p. 9-26,Tomo II.
FURTADO,
C. Dialética do desenvolvimento.
Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1964.
FURTADO, C. Brasil, a
construção interrompida. São Paulo:
Paz e Terra, 1992
FURTADO, C. A fantasia
desfeita. In Obra autobiográfica. São Paulo: Paz e Terra, 1997b.
p.27-306, Tomo II
FURTADO, C. O desafio do futuro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 ago. 1998.
Caderno 5, p.4 – 5.
[1] Essa tese tinha sido desenvolvida em 1905 por Manoel Bomfim no livro A América Latina: males de origem (1993).
[2] Já no ano de 1950, afirma Furtado em A fantasia organizada, ganhavam corpo várias investidas contra as idéias da CEPAL. Essas se davam tanto na academia quanto em outras instâncias. O governo dos EUA e o FMI faziam, já em 1951, uma oposição cerrada às propostas cepalinas. A Cepal chegou a ser tida como uma instituição que ia contra as determinações da OEA (Organização dos Estados Americanos) e também como defensora de heresias. Após três anos de vigência da Cepal, os EUA recomendavam à ONU que os trabalhos fossem definitivamente encerrados (Furtado, 1997, p.255).
[3] Em 1952, com a criação de um Programa de Treinamento em Desenvolvimento Econômico, a CEPAL alcançou uma ampliação significativa do raio de alcance de suas idéias. Esse tipo de atividade visava formar técnicos que atuassem junto aos governos latino-americanos. Quais eram as principais prioridades desses técnicos? Entre elas estavam: diagnosticar a situação do país, elaborar programas de ação desenvolvimentista, planejar o desenvolvimento (FURTADO, 1997, p. 245).
[4] Celso Furtado, ao longo de sua obra, destacou que os principais desafios que a sociedade brasileira enfrentava eram de caráter político. Em análise, feita em 1998, acerca da globalização ele afirmava: “Os novos desafios, portanto, são de caráter social, e não basicamente econômico, como ocorreu na fase anterior do desenvolvimento do capitalismo. A imaginação política terá assim que passar ao primeiro plano. Equivoca-se quem imagina que já não existe espaço para a utopia. Ao contrário do que profetizou Marx, a administração das coisas será mais e mais substituída pelo governo criativo dos homens” (FURTADO, 1998, p.5).
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |