DEMOCRACIA, CIDADANIA E POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA

 

Marcos César Alvarez (UNESP/Marília)

 

Nas sociedades contemporâneas, as percepções e as práticas sociais voltadas para os fenômenos da violência e da criminalidade têm sofrido significativas transformações. Quer como resposta às mudanças colocadas pelo capitalismo tardio ou pela assim chamada globalização (cf. Bauman, 1999), quer como aspectos de um novo paradigma da violência que caracterizaria o mundo contemporâneo (cf. Wieviorka, 1997), as políticas criminais ou de segurança pública e as teorias e práticas penais na atualidade parecem distanciar-se significativamente do legado utópico da modernidade ao tornarem-se paulatinamente mais repressivas e discriminatórias. Substituição do Estado Social pelo Estado Penal (cf. Wacquant, 2002), nova cultura do controle do crime e da justiça criminal (cf. Garland, 2001), tais transformações são ainda mais significativas pois não se limitam ao campo da violência e da criminalidade mas incidem sobre as formas mais gerais de assujeitamento dos indivíduos em sociedade. Como afirma Adorno (1998), o esgotamento dos modelos convencionais de controle da violência e do crime na atualidade aponta para transformações mais amplas nos diferentes modos como os indivíduos governam a si mesmos e aos outros na vida social contemporânea.

Diante de tais transformações, e no âmbito das políticas de segurança e das práticas penais, o desafio maior consiste em buscar formas alternativas de contenção da violência, formas essas compatíveis com a manutenção do Estado de Direito, com a afirmação dos valores democráticos e com a expansão da cidadania, em contraposição à nova “férrea prisão” da cultura contemporânea do controle do crime (Garland, 2001).

Tais questões se colocam ainda de forma mais aguda na América Latina e, particularmente, no Brasil, pois a violência, nas suas mais diversas formas, continua sendo um dos principais desafios colocados para as sociedades latino-americanas. A brutal desigualdade na distribuição da renda, a dificuldade das populações pobres de terem acesso à justiça, a tortura aplicada habitualmente para obter a confissão de supostos criminosos, o tratamento desumano dado aos condenados nas prisões, a discriminação daqueles que são considerados – pela sua cor ou por outros atributos – como moralmente inferiores, o crescimento do assim chamado crime organizado, enfim, a não consolidação do Estado de Direito e da Cidadania plena parecem unir toda a América Latina, mesmo respeitando-se as particularidades históricas dos diferentes países que a compõem, sob um horizonte comum de injustiça e insegurança. A esperança de que, com o fim dos regimes autoritários em diversos países da região, esse quadro iria se reverter foi frustrada pela constatação de que os regimes democráticos não foram ainda capazes de conter eficazmente essa violência multifacetada.

Esse é o paradoxo singular da América Latina: como é possível que inúmeras formas de violência, de discriminação e de privação efetiva de direitos permaneçam e se reproduzam apesar da transição, ocorrida na maior parte dos países da América Latina, dos regimes autoritários para os regimes democráticos? Se a nova cultura do controle do crime já começa a se fazer presente também nessa região, ela pode ser ainda mais perversa devido à ausência de uma sólida cultura dos Direitos Humanos e de arranjos institucionais que efetivamente contenham a violência.

Na verdade, a situação singular da América Latina mostra que o legado histórico deixado pelo autoritarismo na região parece ter sido subestimado, ao mesmo tempo em que foi superestimada a capacidade dos movimentos da sociedade civil de superar os obstáculos efetivos que se colocam para a democratização plena da região. O resultado a que se chega é que as sociedades latino-americanas, ao excluírem a maior parte de suas populações do pleno exercício dos direitos civis e sociais, acabam se constituindo em “democracias sem cidadania” (Pinheiro, 2000).

Apesar do quadro pouco animador anteriormente descrito, no que diz respeito à contenção da violência e da criminalidade e à consolidação do Estado de Direito no país, nas últimas décadas as Ciências Sociais no Brasil têm buscado contribuir para uma melhor compreensão das manifestações complexas e multifacetadas da violência, do crime e da criminalidade no Brasil. Inúmeras pesquisas têm contribuído para constituir as questões da violência, da criminalidade e do não-estado de Direito no Brasil como objetos de estudos, conformando assim um campo de investigação com relativa autonomia, embora freqüentemente a relação entre o campo intelectual e o campo político seja também nesse assunto bastante complexa.

Diversos balanços bibliográficos têm sido produzidos sobre os estudos acerca da violência, do crime e da criminalidade nas Ciências Sociais (Adorno, 1993; Misse, 2000;  Zaluar, 1999). Em linhas muito gerais, podemos apontar o significativo avanço das pesquisas na área, quer em termos de estudos quantitativos, voltados para a caracterização do movimento mais geral da criminalidade e para a contabilização das vítimas e dos crimes, quer em termos de estudos qualitativos, voltados para as imagens, discursos ou representações sobre a violência, o crime e o medo da população, quer ainda em termos de pesquisas que combinam diversas metodologias para estudar instituições como a polícia, o sistema de justiça criminal, as políticas de segurança ou a organização social da violência, como o crime organizado ou o tráfico de drogas.

Por exemplo, estudos quantitativos têm se voltado com freqüência para as chamadas pesquisas de vitimização como uma forma alternativa para o problema da cifra negra das estatísticas policiais (cf. Carneiro, 1999). Sabe-se que as estatísticas do sistema judicial e policial expressam mais a lógica operacional do sistema de segurança e justiça e os valores dos operadores desse sistema do que propriamente os movimentos da criminalidade. Esse problema é ainda mais grave no Brasil, dada a histórica deficiência das estatísticas criminais produzidas. Para alguns autores, essas deficiências decorrem tanto da resistência do aparelho policial e militar em encarar as informações sobre as ocorrências policiais como públicas quanto da falta de competência técnica e das resistências metodológicas por parte das correntes dominantes nas Ciências Sociais e jurídicas no país (cf. Carneiro, 1999). De qualquer modo, uma agenda de pesquisa sobre a violência e a criminalidade de caráter quantitativo vem ganhando força. Outras pesquisas têm se voltado para as implicações do estudo da distribuição espacial dos crimes para a Sociologia (Beato, 1998). De modo bastante interessante, a confecção de mapas de criminalidade desloca a análise do criminoso para a análise do delito propriamente dito, podendo romper assim com a antiga tradição dos estudos criminológicos voltada para o indivíduo criminoso.

As pesquisas qualitativas, em contrapartida, voltam-se com maior freqüência para o estudos das imagens, discursos ou representações socialmente produzidas acerca da violência e da criminalidade, propiciando um debate teórico mais amplo, ao mobilizar autores como Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Norbert Elias, entre muitos outros.

Se as políticas penais e de segurança pública estão firmemente enraizadas na história do país, um outro campo de estudos que pode avançar na compreensão dos fenômenos da violência e da criminalidade deve aliar análise sociológica e histórica. Em estudo atualmente em desenvolvimento, acerca da história das políticas públicas de segurança no estado de São Paulo, realizado junto ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, busca-se justamente vislumbrar as continuidades e descontinuidades das políticas de controle da violência e da criminalidade no estado, com o projeto denominado Construção das Políticas de Segurança Pública e o Sentido da Punição, São Paulo (1822-2000), que tem o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Dada a amplitude do período estudado, envolvendo quase duzentos anos de história, e face à diversidade dos contextos históricos que ele encerra, no ano de 2003 o projeto concentrou-se sobre três momentos relevantes da história política, econômica e social do país e do estado de São Paulo - de 1880 a 1900, de 1937 a 1950 e de 1960 a 1974. Esses recortes cronológicos, reconhecidos como períodos de densas transições, foram objeto de aprofundados estudos teóricos e de detalhadas pesquisas documentais[1].

Essa pesquisa em curso, que tem previsão de desenvolvimento por quase uma década, busca, deste modo, elucidar os mecanismos que permitem a reprodução da violência e do arbítrio ao longo da história das políticas de segurança pública no estado de São Paulo. Se tal empreendimento não se volta imediatamente para as questões mais emergenciais acerca da segurança pública na atualidade, permite, em contrapartida, que tomemos as políticas atuais como produtos históricos complexos, enraizadas nas estruturas políticas, sociais e culturais do país e que, justamente por serem históricas, podem vir a ser modificadas.

 

Referências Bibliográficas

ADORNO, Sérgio. (1993) A Criminalidade urbana violenta no Brasil: um recorte temático. BIB. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais.35, Segundo Semestre.

________. (1998) Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social, São Paulo, vol.10, n.1, maio, p.19-47.

BEATO F., C.C. (1998) Determinantes da criminalidade em Minas Gerais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.13, n.37, junho, p.74-87.

BAUMAN, Zygmunt. (1999) Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro : Jorge Zahar.

CARNEIRO, Leandro Piquet Carneiro. (1999) Para medir a violência. In: CARVALHO, J. M., CARNEIRO, L.P., GRYNSPAN, M., PANDOLFI, D. C. (orgs.). Cidadania, Justiça e Violência. Rio de Janeiro : Fundação Getulio Vargas, p.165-178.

GARLAND, David. (2001) The Culture of Control: crime and social order in contemporary society. Chicago : University of Chicago Press.

MISSE, Michel, LIMA, Kant de, MIRANDA, Ana Paula Mendes de. (2000) Violência, Criminalidade, Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: uma bibliografia. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, BIB, Rio de Janeiro, n.50, 2. Semestre, p.45-123.

PINHEIRO, P.S., MÉNDEZ, J. E., O’DONNEL, G. (2000) Democracia, Violência e Injustiça: o Não-Estado de Direito na América Latina. São Paulo : Paz e Terra, 389 p.

WACQUANT, Loïc. (1998) A ascensão do Estado penal nos EUA. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, ano 7, n.11, p.13-39, 1.o semestre.

WIEVIORKA, Michel. (1997) O novo paradigma da violência. Tempo Social, São Paulo, vol.9, n.1, p.5-41, maio.

ZALUAR, Alba. (1999) “Violência e crime” in MICELI, Sérgio (org) O que ler na Ciência Social Brasileira (1970-1995), vol. 1. Antropologia. São Paulo, Sumaré/Anpocs.



[1] Além de contar com um trabalho de reflexão acerca da bibliografia específica sobre temas relevantes para a segurança pública, uma volumosa massa de informações foi obtida a partir de levantamentos realizados, dentro do projeto, sobre as seguintes fontes documentais: a legislação relativa à área de segurança-justiça, os debates parlamentares, as mensagens do chefe do executivo para as casas legislativas, os relatórios dos secretários de Justiça ou de Segurança, bem como os relatórios internos do chefe de polícia, de órgãos policiais especializados, de diretores de presídios e ainda os documentos internos de instituições como livro de controle de movimentação de presos, a correspondência oficial, os prontuários de internos em instituições de controle. Ainda que, em cada período trabalhado pelo projeto, tais fontes apresentem consideráveis variações quanto às informações apresentadas, elas foram consideradas essenciais para a construção de um quadro básico sobre a concepção das políticas públicas, sobre as formas de sua implementação e sobre os resultados ou impactos causados.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004