Caminhos e descaminhos do debate sobre biotecnologia no Brasil

Marcelo Leite

 

            A julgar pelos cursos, mesas-redondas e publicações do gênero, assim como pela proliferação de reportagens com algum substrato científico, nunca a divulgação científica teve tanto respeito no Brasil quanto hoje. Vou me permitir, porém, uma nota de certo pessimismo, pois vejo sinais claros de uma certa falta de capilaridade social nessa tendência de valorização da investigação científica, que põe em risco tudo que se investiu no país, nos últimos anos, para abrir espaços na imprensa e formar jornalistas capazes de retratar com um mínimo de fidelidade não só os resultados da pesquisa, mas também e principalmente seu modo de operação e suas implicações sociais. Nesse sentido, o tema da biotecnologia –e em particular o dos alimentos transgênicos— oferece uma excelente oportunidade para refletir sobre o tema central desta reunião da SBPC, a fronteira entre a ética e o desenvolvimento –a exemplo do que fez minha colega e amiga Mônica Teixeira a propósito da indústria farmacêutica.

 

            Antes de entrar no tema dos transgênicos, porém, gostaria de fixar o que entendo por jornalismo científico, um tipo peculiar de divulgação científica –que também se realiza por meio de documentários, livros, museus e exposições de ciência, planetários etc. Jornalismo implica atualidade, em primeiro lugar: trata-se de dar notícias do mundo da ciência. Implica também interpretação e análise, das quais faz parte, ou deveria fazer, o contraditório, como bem destacou Mônica Teixeira, mas infelizmente muito do jornalismo científico que praticamos ainda carece dessa dimensão crítica, aproximando-se perigosamente de uma apologia da ciência e dos cientistas, como se ela fosse uma empreitada de semideuses. Um esforço desproporcional se tem despendido, porém, em satisfazer outras duas condições necessárias do jornalismo, científico ou qualquer outro, que são as de interesse e utilidade. Na minha opinião, o crescente peso conferido às “notícias que se podem usar” (news you can use), em detrimento desnecessário da análise crítica, é a maior ameaça atual ao jornalismo científico. Ao jornalismo em geral, aliás.

 

            Cheguei anteontem de viagem e me deparei com as seguintes reportagens de capa nas principais revistas nacionais:

·         Veja: “Regras básicas para entender e ajudar os filhos”;

·         Isto É: “Dieta para manter a linha no inverno”;

·         Época: “Síndrome de barriga”.

            Não li nenhuma delas, mas estou certo de que a coincidência e a repetição desses temas e ângulos já dizem muito sobre o que se percebe, socialmente, como a utilidade da ciência: mais um sustentáculo de auto-ajuda, praga que empestou as prateleiras das livrarias com modas descartáveis e hoje se acomoda como doença crônica no caráter já naturalmente perecível dos periódicos não-especializados. Apenas para comparação, cito duas páginas na revista dominical do jornal diário francês Le Monde de mesma data, um misto de mapa-múndi e gráfico intitulado “OGMs em Liberdade”, uma sinopse das áreas plantadas com transgênicos no mundo todo. A apresentação simultânea dos dados resulta eloqüente, pois mostra como é relativa a imagem veiculada como verdade em publicações nacionais de que a resistência aos OGMs seria fruto do atraso cultural do Brasil, que abriga “somente” 4,4% da superfície cultivada, 3 milhões de hectares de um total mundial de 67,7 Mha, o que lhe confere um quarto lugar. Se transgênicos são mesmo coisa de economias modernas e abertas à inovação, só os Estados Unidos, o Canadá e, bem, a Argentina caberiam nessa definição. Fora ficariam a incensada China, toda a Europa e até a Austrália, aliada dos Estados Unidos no Iraque e inteiramente insuspeita de antiamericanismo à francesa.

 

            Outros dados, não mencionados no Le  Monde, mas que podem ser obtidos facilmente na internet:

 

§         O Brasil é o segundo maior produtor de soja do mundo, com 26% do total (perde só para os Estados Unidos);

§         Apenas 4% da área plantada com soja no Brasil é de plantas transgênicas, segundo Clive James, do ISAAA Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações Biotecnológicas, a mesma fonte citada pelo Le Monde;

§         Apesar disso, a produção tem aumentado continuamente no Brasil, assim como na Argentina, onde predominam variedades geneticamente modificadas, e não tão rapidamente nos Estados Unidos.

 

A primeira observação que cabe fazer é que o alegado atraso brasileiro na introdução das biotecnologias de transformação genética de variedades agrícolas não parece até agora ter afetado significativamente o desempenho e a competitividade do país no mercado internacional. Isso obviamente não quer dizer que a demora na regulamentação e na adoção da biotecnologia não venha a ter efeitos econômicos negativos. Mas o caso brasileiro não permite estabelecer uma relação causal direta entre adoção da biotecnologia e aumento da competitividade da cultura de soja.

 

Outra informação importante é que esse plantio hoje de 4% da área teve origem ilegal, pois as culturas transgênicas ainda não se encontram plenamente licenciadas e autorizadas no Brasil. As sementes de soja Roundup Ready, variedade resistente ao herbicida Roundup (glifosato), foram contrabandeadas da Argentina para o sul do Brasil, notadamente para o Estado do Rio Grande do Sul, e clandestinamente multiplicadas, dando origem à variedade popularmente conhecida como Maradona. O processo de regulamentação se arrasta há mais de cinco anos, quando a licença da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para o plantio em escala comercial da soja RR foi questionada na Justiça por ONGs de perfil ambientalista, como o Greenpeace, e de defesa do consumidor, como o Idec, ainda sem decisão final e irrecorrível dos juízes. Além da necessidade de regulamentar a rotulagem de produtos contendo transgênicos, essas ONGs argumentaram na Justiça que a CTNBio não tinha poder para dar autorização ambiental aos transgênicos, prerrogativa que caberia ao Ibama, a agência ambiental federal brasileira.

 

A situação hoje é de anarquia jurídica e regulatória. A administração anterior, do presidente Fernando Henrique Cardoso, tomou posição a favor dos GMOs e tentou, sem sucesso,  resolver o conflito de competência entre agências por meio de decretos. Ao mesmo tempo, seus órgãos de fiscalização permitiam, por omissão, que o plantio ilegal se espalhasse pelo sul do país. A discussão pública se polarizou entre defensores dos OGMs (sobretudo plantadores de soja e cientistas ligados ou próximos à pesquisa biotecnológica) e seus inimigos (ambientalistas e adeptos da agricultura orgânica ou familiar). O impasse entrou pela nova administração, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que vem legalizando a comercialização da soja por meio de decretos. Em paralelo, apresentou ao Congresso um projeto de nova Lei de Biossegurança (a anterior datava de 1995), que teve sua primeira votação na Câmara dos Deputados em 5 de fevereiro, tendo sido aprovado um texto que reserva ao Ibama o poder de exigir estudos de impacto ambiental, mas cria um Conselho Nacional de Biossegurança que pode revisar as decisões das agências, em caso de conflito. A nova legislação está agora no Senado Federal, onde a tramitação pode demorar ainda vários meses e ficar para depois das eleições municipais.

 

É espantoso que uma sociedade democrática como a nossa não consiga decidir, ao longo de cinco anos, se pretende ou não empregar essa tecnologia. Acredito que essa irresolução decorra antes de mais nada da polarização profunda que a questão sofreu no Brasil, como aliás ocorreu em outros países, como o Reino Unido. De um lado, establishment agrícola, tecnocientífico e governamental se convenceu da necessidade estratégica dessa tecnologia e trabalha para que ela seja aprovada e licenciada no Brasil. De outro, as ONGs continuam a encontrar receptividade para sua posição de princípio anti-OGMs em meio a uma desconfiança difusa e pouco informada da população, que associa alimentos transgênicos com a geração de monstros pela engenharia genética. Segundo uma pesquisa de opinião pública com 2.000 pessoas realizada em dezembro de 2002 pelo instituto Ibope, a pedido da Campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos, só 37% tinham ouvido falar em alimentos transgênicos. Após ouvir uma explicação sucinta, 71% disseram preferir não consumi-los e 92%,  que essa informação deveria constar de rótulos.

 

Inúmeras campanhas de publicidade das empresas de biotecnologia e vários seminários para comunicadores foram incapazes de alterar significativamente esse estado de coisas. Uma das razões, talvez a principal, é que essas campanhas e seminários em geral apostam na própria polarização, tentando converter cidadãos e comunicadores para uma das posições excludentes: ou se é a favor da biotecnologia, ou contra, como se não houvesse posições intermediárias possíveis. Ter ou levantar dúvidas sobre OGMs significa automaticamente ser contra eles, e portanto inimigo obscurantista do progresso, alguém que impede os cientistas altruístas de pesquisar as soluções para a fome da humanidade.

 

No campo oposto, a situação não é muito diversa para jornalistas que tentam desenvolver uma óptica independente, com apoio nas pesquisas científicas publicadas sobre as questões de biossegurança. Perguntar, por exemplo, se a insistência na mera possibilidade de riscos teóricos não encobria uma objeção de princípio e fundo éticos, que seria legítima se assim fosse assumida, mas não quando disfarçada de argumento científico. Ou ainda, questionar se não era um erro falar genericamente dos riscos de uma tecnologia como se todos os seus produtos envolvessem riscos similares, por exemplo a soja resistente a herbicida e o milho resistente a insetos, quando se sabe que cada OGM resulta da inserção de um gene diverso, portanto de proteínas diversas, com efeitos diferenciados sobre a saúde das pessoas e do ambiente.

 

É possível ser fundamentalista de muitas maneiras, inclusive de um ponto de vista pró-ciência ou anticiência. Todos eles devem ser combatidos, não numa guerra santa, mas com a uma concepção de esfera pública esclarecida em que, sob condições ideais, cada cidadão ou cidadã pensa e decide com a própria cabeça com base no máximo de informações objetivas que puder obter.

 

É preciso reinventar um terreno comum para o debate desimpedido dessa questão, em que intelectuais cultivadores da independência e da tolerância passem a ponderar os fatos, interpretações e argumentos apresentados por seu valor intrínseco, e não por sua proveniência ou utilidade para este ou aquele campo. Em termos práticos, líderes reconhecidos da comunidade científica brasileira e latino-americana não diretamente comprometidos com a biotecnologia ou com sua contestação deveriam tomar a iniciativa de reunir e de produzir informações aprofundadas e confiáveis sobre biotecnologia, talvez liderando grandes investigações como os experimentos de campo realizados no Reino Unido. Tais informações teriam então de ser levadas ao público de cada país, de preferência na forma de conferências de consenso ou fóruns abertos para atingir as pessoas comuns, mas também de forma dirigida, na forma de seminários ou conferências para legisladores, juristas e comunicadores.

 

 A imprensa leiga teria também, decerto, um papel a desempenhar na divulgação desses resultados. Mais importante ainda seria que se empenhasse em criar as condições para que essa exigência da racionalidade se tornasse patente para todos, cidadãos e tomadores de decisão. Ou seja, como se diz hoje em dia, criar essa agenda, que hoje está dominada pelo maniqueísmo e pelo fundamentalismo. Para isso, no entanto, ela precisaria dedicar-se com um pouco menos de afinco às barrigas.

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004