A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E A CULTURA REGIONAL: CONFRONTOS

 

Profª Drª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista

Universidade Federal da Paraíba

Programa de Pós-Graduação em Letras

Programa de Pesquisa em Literatura Popular

 

 

A publicação em 1993 do Cancioneiro do Norte por José Rodrigues de Carvalho impulsionou os estudos sobre a literatura popular, na Paraíba. Considerada por Câmara Cascudo (1962: p.664) “um clássico da literatura folclórica”, a obra revela-se quer pela riqueza e variedade do material levantado, quer pelo pioneirismo no resgate daquilo que possuímos de mais precioso: a poesia pura que flui espontânea da boca do povo. A poesia que não é de ninguém e que, por isso mesmo, pertence-nos a todos.

A recolha de desafios parece ser a preocupação primeira do autor talvez pelo caráter momentâneo dos mesmos. No entanto, não se prendeu apenas a eles. Na obra, são encontrados os mais variados tipos de textos da Literatura Oral: contos populares, cantigas tradicionais, abecês, benditos de santos rezas e benzeduras. A maioria dos textos vem acompanhada de comentários os mais variados sobre o modo de cantar, os gestos e as danças que acompanham o canto, as influências recebidas etc.

Desde então, inúmeras pesquisas científicas, vêm, entre nós, sendo realizadas sobre o assunto com o intuito de preservar para a prosperidade esse patrimônio cultural, o “tesouro poético dos primitivos” na expressão de Sílvio Romero. que considerou a relevância dos estudos sobre a tradição ao afirmar:

 

Os povos têm dois jazigos de relíquias, um no espaço: o cemitério, o outro no tempo: a tradição. O espaço é precário e tudo que tem nele assento perece. O tempo é perene e eterniza o que recolhe. (apud Santos e Batista, 1993)

 

Projetou-se o estado da Paraíba como um dos principais pontos de irradiação da Literatura Popular. Em Teixeira, no alto Sertão, localizou-se uma das mais antigas e férteis escolas de poesia popular que produziu, entre outros, Leandro Gomes de Barros, um dos maiores poetas populares de nossa História.Este, como ninguém, cantou os sofrimentos de sua gente nas agruras das secas e, a despeito de tudo, descobriu a beleza de sua terra que idolatrou nos seguintes versos do imemorial folheto “Suspiros de um Sertanejo”

 

Não posso deixar

De cantar minha terra

De lá uma serra não deixo

Meu amor, meu passar lar

Meu bem, meu prazer

Para que viver

Estando ausente dela?

Olhando p’ra ela

Queria morrer

 

A Universidade Federal da Paraíba, portanto, desde suas origens em meados do século XX, tornou-se uma instituição capacitada para apoiar e difundir nossas manifestações artísticas. Diversos centros e programas foram criados, entre os quais destacamos o Programa de Pesquisa em Literatura Popular (PPLP) que coordenamos e cujas pesquisas sobre Literatura Popular serão objeto de reflexão neste trabalho.

O PPLP foi fundado em 1977 por uma equipe de professores do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da UFPB, sob a coordenação da Professora Idelette Santos que, também, propôs a inclusão, no então mestrado em Letras, da disciplina Literatura Oral / Popular, hoje campo fecundo para estudos realizados por diversos pesquisadores. Desse núcleo inicial, surgiram importantes trabalhos, como o Cancioneiro da Paraíba, publicado em 1993, precisamente noventa anos depois da publicação do Cancioneiro do Norte de Rodrigues de Carvalho. O novo Cancioneiro reúne os mais variados tipos de cantigas coletadas na tradição oral paraibana. Quinze pesquisadores fizemos o levantamento dos textos em diferentes localidades da Paraíba, do Litoral ao Sertão. Publicado pela Editora Grafset em julho de 1993, sob a organização de Idelette Santos e nossa, privilegia-se sobre outros no gênero (sobre o próprio Cancioneiro do Norte) por conter o registro musical da maioria das cantigas, feito pelas mãos competentes da Professora Maria Alix Nóbrega Ferreira de Melo, da Escola de Música do Estado da Paraíba. Esses registros trazem um comentário de Luís de Oliveira Maia, um musicólogo nosso, que nos exorta a continuar no trabalho de “descobrir as raízes de nossa música popular”. Mas não só descobrir. Descobrir e fecundar.

Durante todos estes anos, o Programa contou com a participação eficiente de Neuma Fechine Borges, grande estudiosa brasileira em Literatura de Cordel que acompanha, orienta e difunde o acervo do PPLP, conhecido no mundo graças a seu empenho.

Vejamos, agora, nosso pequeno contributo que teve início naquele grupo de pesquisadores da Pós-graduação em Letras de que já falamos. Concluído o Mestrado, continuamos, por iniciativa própria, o levantamento e estudo de textos da literatura oral tradicional de que resultou a realização de alguns trabalhos, entre os quais a tese de doutorado intitulada O romanceiro tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem semiótica; o livro A tradição ibérica no romanceiro paraibano, publicado em 2000 pela Editora da UFPB e, em fase de conclusão, o Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco. Na análise dos textos populares, utilizamos a proposta teórica da Sociossemiótica e da Semiótica das Culturas, uma vez que o exame de uma macrossemiótica, segundo Pais (1991: 452-461), permite entender que os recortes culturais produzidos na estrutura fundamental sustentam a visão de mundo e os sistemas de valores da cultura que os produziu, aparecendo subjacentes aos discursos. Consideramos, ainda, na catalogação do acervo popular, as propostas do Seminário Menéndez Pidal (Espanha:1984) e a proposta de Manuel da Costa Fontes (USA: 1997) sobre o Índice Temático e Bibliográfico do Romanceiro Português e Brasileiro.

Temos observado que muitas pessoas procuram o PPLP em busca de material para suas pesquisas, vindas do primeiro grau, do segundo, das universidades (de diferentes cursos) e de outros estados e países. Mais dois pesquisadores doutores engajaram-se ao programa: Ivone Tavares de Lucena que vem trabalhando o discurso da identidade cultural no cordel, com um orientando de iniciação científica, e Evangelina Brito de Faria que tem destacado o conto popular, sob o aspecto da teoria interacional. Além da coordenação do programa, coordenamos ali um projeto de pesquisa O Discurso Semiótico da Poesia Oral Tradicional no Nordeste do Brasil, aprovado pelo PIBIC, do qual participam cinco pesquisadores de iniciação cientifica (bolsistas e voluntários), quatro deles recém ingressos na pós-graduação. Foi criado, também, um projeto de extensão que procura levar às escolas nosso acervo. São tantos os pedidos nesse sentido que tivemos de fazer uma triagem. Um dos momentos mais importantes desse projeto foi a participação no encontro, de amplo alcance, promovido pela UFPB, Paz e Cidadania nas Escolas, onde fizemos uma exposição do material do PPLP e pudemos visitar escolas paupérrimas em bairros periféricos. Foi grande o interesse despertado pelo nosso material, sobretudo nas crianças que cantaram e dançaram, com desenvoltura, os textos do cancioneiro e do romanceiro infantil. Participamos, também, de encontros pedagógicos para professores da Zona Rural que sentiram a necessidade de levar às escolas a cultura popular como forma de inserir o aluno nas questões sobre a sua identidade e diversidade culturais.

Constitui o PPLP um centro de documentação sistematizada das produções populares, sobretudo paraibanas e nordestinas, com o apoio da Biblioteca Central da UFPB que lhe serve de órgão receptor. Engloba uma biblioteca de literatura popular em verso (BLPV) cujo acervo é estimado entre os mais importantes do Brasil e uma biblioteca de obras sobre a literatura popular, como teses, dissertações, monografias e outras obras resultantes de pesquisas sobre as produções populares. A maioria dessas obras foram realizadas por pesquisadores do próprio PPLP, destacando-se, entre elas, o Catálogo de Literatura de Cordel, realizado por um grupo de pesquisadores do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, sob a orientação e organização das professoras Neuma Fechine Borges e Jandira Ramos e publicado em 1998 pela Editora Universitária da UFPB.

A fundação da BLPV foi motivada pela necessidade de fazer conhecer a riqueza da nossa produção literária popular. Serve de fonte de consulta para pesquisadores locais e de outras regiões, no Brasil e no exterior que têm encontrado nela subsídios valiosos para seus estudos sobre as composições populares do Nordeste, deixando suas marcas em encontros científicos, artigos publicados e orientações a pesquisadores.

A Literatura Popular engloba um número vasto de produções literárias, algumas vezes de autoria desconhecida e datando de épocas antigas da nossa língua, o que permite considerar sua tradicionalidade. A distinção do que é popular, nem sempre, é apresentada com clareza ao público que passa a restringir seu significado apenas à cantoria ou ao cordel. Entretanto, trata-se de uma literatura, de formas e gêneros diversos, feita pelo povo e para o povo, na linguagem que ele conhece, do jeito que ele sabe dizer, espontânea e simples, mas muito importante porque traduz seus valores e a sua ideologia. Se quisermos conhecer uma comunidade, comecemos por estudar suas manifestações populares e aí estaremos penetrando em sua alma.

No entanto, muitas são as dificuldades enfrentadas pelos pesquisadores daquele programa. Não possuímos um local adequado à manutenção da obra popular, feita de um material frágil e de difícil conservação. O nosso acervo, constituído, na sua maioria, por textos clássicos da Literatura de Cordel, necessita ser trabalhado com técnicas modernas de conservação e divulgação por meio digital. Considerando os altos custos da empreitada, elaboramos um projeto de digitalização e ampliação do acervo da Biblioteca de Literatura Popular em Verso que se encontra, atualmente, em busca de financiamento.

Por outro lado, enfrentamos uma grande dificuldade para divulgar o material. Não possuímos especialistas para mantê-lo e, nas escolas, nem sempre, existem instrumentos musicais adequados ou professores de música que possam executar as canções, embora o nosso material se deixe acompanhar de registro musical. Vimos, então, a necessidade de colocá-lo em CD ROM, mas, mesmo assim, em muitas escolas, sobretudo das zonas interioranas, não há vídeo ou até mesmo um simples som. São esses os conflitos pelos quais passamos no momento. Esperamos que, num futuro bem próximo, possam ser resolvidos.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. A tradição ibérica no romanceiro paraibano. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2000

_________ O Romanceiro Tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem semiótica. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 1999. 2 vol.

BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita e SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos (orgs). Cancioneiro da Paraíba. João Pessoa: Grafset, 1993.

BORGES, Francisca Neuma Fechine e RAMOS, Jandira. Catálogo de Folhetos de Cordel. João Pessoa: Editora Universitária, 1998.

CARVALHO, José Rodrigues de. Cancioneiro do Norte. 2 ed. Parayba: Livraria São Paulo, 1928. 422 p.

_________ 3 ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1967. 411 p.

_________ 4 ed. (fac-similar) da 3. ed. Apresentação de Iveraldo Lucena da Costa. João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Paraíba, Conselho Estadual de Cultura,1995. 411 p. (Biblioteca Paraibana, 14).

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/MEC, 1962

CATALÁN, Diego: Teoria general y Metodologia Del Romancero Pan-hispánico. Catalogo General Descriptivo. Madrid: Seminario Menéndez Pidal, 1984

FONTES, Manuel da Costa. O Romanceiro Português e Brasileiro: índice temático e bibliográfico. Madison, 1997

NASCIMENTO, Bráulio do. Celso de Magalhães pioneiro dos estudos de cultura popular no Brasil. Congresso Brasileiro de Folclore, 10. São Luís: Comissão Nacional de Folclore, 2002.

___________ Bibliografia do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1971.

PAIS, Cidmar Teodoro. Sociossemiótica, semiótica da cultura e processo histórico: liberdade, civilização e desenvolvimento. In Anais do V Encontro Nacional da Anpoll. Porto Alegre: Anpoll, 1991: 452-461.

—— Sociossemiótica e semiótica da cultura. In Anais do IV Encontro Nacional da Anpoll. Recife: Anpoll, 1989: 795-800.

PIMENTEL, Altimar de Alencar e PIMENTEL, Cleide Rocha da Silva. Esquindô-lê-lê: cantigas de roda. João Pessoa: UFPB, 2003. 266 p.

PIMENTEL, Altimar de Alencar e BORGES, Francisca Neuma Fechine. Bibliografia paraibana de folclore e literatura popular. João Pessoa: A União, Fundação Casa de José Américo, Comissão Paraibana de Folclore, Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba, 2003, 98 p.

ROMERO, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954

SANTOS, Idelette Muzart F. dos. La schedatura del progetto: “Romanceiro Paraibano”. Fonti Orale, Studi e Richerche, Torino. v. 4, n. 2, p. 39-42, Instituto Antonio Gramsci, 1985.

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004