TERMINOLOGIA TÉCNICO-CIENTÍFICA: CONFRONTOS ÉTICOS,
CULTURAIS E POLÍTICOS.
Terminologia
técnico-científica: diálogos transdicisciplinares
Maria Aparecida Barbosa (USP)
O
princípio da inter e multidisciplinaridade exige complementarmente o princípio
da especificidade do objeto, campo e métodos das diferentes disciplinas
científicas, correspondentes a recortes observacionais distintos de um
aparentemente mesmo objeto de estudo. Assim como as ciências básicas e
aplicadas, as disciplinas integrantes das ciências da linguagem mantêm processo
de cooperação e, ao mesmo tempo, especificidades epistemológicas. Busca-se
delimitar a identidade científica da Lexicologia, Lexicografia, Terminologia e
Terminografia. A forte relação de cooperação – interdisciplinar entre ciências
básicas ou entre ciências aplicadas e/ou tecnologias; alimentação e
realimentação entre estas e aquelas - tem como condição sine qua non a especificidade epistemológica, no tratamento da
palavra, que lhes assegura autonomia de modelos, métodos e técnicas, pois,
dialeticamente, é preciso distinguir para articular. Lexicologia e Lexicografia
configuram duas atitudes e dois métodos face ao léxico: a Lexicografia, como
técnica dos dicionários; a Lexicologia, como estudo científico do léxico. Dentre
suas tarefas, destacam-se a de abordar a palavra como instrumento de construção
de uma ‘visão de mundo’, de sistemas de valores, como geradora e reflexo de
recortes culturais; analisar a influência do contexto em cada palavra e,
reciprocamente, a determinação e atuação de cada palavras em seus diferentes
contextos possíveis. A complexa questão se estende à multissignificação dessas
disciplinas; os discursos lexicográficos, são, simultaneamente, registro de
palavras e objeto de estudo da Lexicografia, como investigação fundamental;
esta, objeto da Metalexicografia,
enquanto Epistemologia da Ciência Lexicográfica. Semelhantes relações
estabelecem-se entre Terminologia e Terminografia, respectivamente, Ciência da
Palavra Técnico-científica e Tratamento Terminográfico desse tipo de palavra.
Este
trabalho propôs-se a examinar, ainda, relações entre o estatuto do termo, da
linguagem técnico-científica, e o estatuto de vocábulo, na linguagem corrente,
certos aspectos dos processos de terminologização e de banalização, mecanismos
da transferência que se verificam entre as linguagens de especialidade e a
língua geral, para propor uma formalização do eixo entre o caráter técnico e
científico, e as formas ditas ‘banais’:
movimentos de terminologização/banalização, em função dos universos de
discurso e das situações de discurso.
Considerados,
dois universos de discurso, o da língua comum e o das linguagens de
especialidade, dir-se-á que as unidades
lexicais pertencentes ao primeiro conjunto são vocábulos e as pertencentes ao segundo são termos, com os traços específicos que lhes correspondem.
Entretanto, no nível de sistema, os lexemas são plurifuncionais. O estabelecimento preciso da função depende de sua
inserção em uma norma discursiva, que determina, seu estatuto de vocábulo ou de termo.
A
disponibilidade das funções vocábulo/termo
caracteriza, pois, os lexemas no nível do sistema. Essas funções atualizam-se, uma ou outra, quando
circunscritas a uma norma discursiva e a um texto-ocorrência. Assim, em nível
de sistema, a relação entre as funções vocábulo
e termo é [e...e]; em nível de
uma norma e de um discurso-corrência é [ou...ou] (Hjelmslev, 1968).
Retomem-se aqui reflexões sobre os
termos terminologização e metaterminologização (Barbosa, 1998: p.
25-44). Terminologização é um termo
que integra a Terminology work –
Vocabulary. ISO/DIS
1087-1 (p. 11) e que aí é definido como: “Terminologization
– process by wich a general language word or expression is transformed into a
term”. Nesta acepção,
terminologização stricto sensu
refere-se à transposição de uma unidade lexical, da língua geral para uma
linguagem de especialidade, ou seja, a transformação do vocábulo em termo. No
percurso gerativo de enunciação de codificação, trata-se de uma
relação entre normas de um sistema lingüístico, uma relação horizontal,
intra-sistema de significação e inter-universos de discurso. O ponto de
partida, nesse caso, é o nível lingüístico e ponto de chegada é, ainda, o nível
lingüístico.
Entretanto, entende-se terminologização, também, como um
processo que converte um conceito em termo, la mise en terme, expressão esta
comparável à expressão (la mise en lexème),
que subjaz ao processo de lexemização
de Pottier (1992). Aqui, pois, terminologização
é equivalente a lexemização e tem
como ponto de partida, no percurso gerativo da enunciação a própria realidade
fenomênica, em que se tem uma informação virtual, amorfa, que, em outro nível,
o do recorte observacional e cultural, se transforma no conceptus (Rastier, 1991); este, por sua vez, será terminologizado.
Logo, os fatos naturais são conceptus
virtuais. Por outro lado, os conceptus
construídos constituem termos virtuais,
que, no nível metalingüístico da ciência, se tornam termos efetivos.
Nesse segundo sentido, terminologização lato sensu refere-se à
relação entre o nível conceptual e o metalingüístico,
diferente, pois, da primeira acepção aqui exposta – terminologização stricto sensu como transformação de um vocábulo em termo. Nesta concepção, há uma
restrição muito grande no processo de criação de termos, já que prevê apenas o
aproveitamento de vocábulos da língua geral – processo primário –, por meio de
alterações semânticas – processo secundário –.
Dependendo da área técnica ou
científica, os processos de terminologização
lato sensu abrangem: o fonológico, o sintagmático, o semântico. O
empréstimo (de uma língua para outra ou de uma área para outra) é apenas um
dentre os vários processos de terminologização.
Parece-nos, assim, que a definição dada pela norma ISO, anteriormente citada, contempla
apenas um dos conceitos de terminologização,
limitando, pois, a abrangência conceitual do termo.
Os processos possíveis de terminologização e de vocabularização, na dinâmica da relação
inter-universos de discurso, caracterizam-se como semiose ilimitada. No
dinamismo da linguagem, mesmo na linguagem técnico-científica, as constantes de
realizações possibilitam a delimitação de uma tipologia de processos.
Considere-se, primeiramente, a passagem da terminologia para a língua comum,
que transfere um termo do seu universo especializado para o da língua comum. A vocabularização é a transformação do termo em vocábulo (Muller, 1968). Conforme a concepção teórica, esse
processo pode ser chamado de banalização, vulgarização e popularização. Tem-se,
por exemplo, entrar em órbita,
transposto da área técnico-científica para a língua geral, por um processo de metaforização. É o caso, ainda, de paradigma, desconstrução, sintonizar,
dentre outros. A metaforização parece
ser o mecanismo principal desse tipo.
Considere-se o processo inverso, a passagem da língua comum para a
terminologia, mecanismo que converte o vocábulo
em termo: processo de terminologização stricto sensu, segundo
a Norma Iso. Dentro outros, cite-se o exemplo de sintagma, do gr. sintágma,
através do latim sintagma. Na
linguagem comum, significava “ reunião” (neste sentido, existe a praça
Sintagma, em Atenas) e, nas ciências da linguagem, passa a significar “
combinatória intersignos ou inter-palavras”.
Mencione-se, ainda, a passagem da terminologia para a terminologia,
com a manutenção de núcleo sêmico comum
aos termos das diferentes áreas. Denomina-se metaterminologização. Observem-se, por exemplo, os casos de estrutura e de função, em diferentes áreas. Este mecanismo decorre,
freqüentemente, da existência de paradigmas epistemológicos, no processo histórico das ciências; e a transposição
da terminologia para a terminologia, sem
que se conserve núcleo sêmico comum aos termos resultantes nas diferentes
áreas envolvidas. É o caso de arroba,
“medida de peso” e arroba, como
símbolo de endereço eletrônico (@).
Examinem-se,
agora, algumas unidades lexicais de discursos etno-literários.
Tomando-se, por exemplo, o boi no rito do Bumba-meu-boi do Maranhão, no Norte do Brasil, verifica-se que essa
unidade lexical não se refere a um boi, no sentido comum, não se refere ao
animal que encontramos nos campos ou nas fazendas; essa unidade não designa,
também, o boi da biologia, ou da
agro-pecuária. Ela tem uma significação especial, no universo de discurso desse
rito folclórico, em que representa uma entidade mítica, que é morta, para
satisfazer o desejo de uma mulher grávida e que, ao final da narrativa,
ressucita, para a felicidade de todos. Uma das interpretações orrentes é a de
que esse boi representa, nessa história,
a morte e ressurreição do Cristo.
Estudando-se o Romanceiro do Nordeste brasileiro, encontrarem-se numerosos
exemplos. Assim, tem-se o conto do Pavão. Um professor de aldeia tinha um
pavão muito estimado. Um dos seus alunos mata o pavão. O mestre se vinga, mata
a criança. Outro romance conta a história de um nobre, obrigado a disfarçar-se
em mendigo cego, para tomar sua bem amada, prisioneira de sua mãe na floresta
(história medieval). Tem-se, ainda, o romance de Juliana. Um nobre, seu primo, havia prometido casar-se com ela. De
repende, apaixona-se por uma jovem. Vai visitar sua prima e anuncia seu novo
projeto. Juliana finge alegrar-se, felicita-o e, para comemorar, oferece-lhe
uma taça de vinho envenenado (história medieval). Juliana representa, pois, a mulher
ciumenta, o ciúme.
Nesses textos, tem-se grande número
de personagens, Contudo, são muito pobres em sua figurativização. São tipos
humanos, ou tipos sociais,
suportes de temas, encarregados da tematização.
Encontram-se nos romances grandes temas universais, as oposições amor x morte, vida x morte, amor x alma,
riqueza x miséria, bem x mal, poder x fraqueza, fidelidade
x traição, etc.
As
unidades lexicais desses discursos etno-literários têm características
específicas: são vocábulos metassemióticos, pelos motivos acima vistos; são
quase-termos técnicos, pois pertencem à uma linguagem especial/especializada.
Seus sememas não correspondem, pois, nem aos sememas da língua comum, nem aos
sememas das linguagens dos domínios científicos. Essas unidades lexicais
apresentam sememas construídos, em grande parte, com semas específicos do
universo de discurso etno-literário, provenientes das narrativas e
cristalizados, de maneira a tornar-se verdadeiros símbolos dos temas
envolvidos. É preciso estar familiarizado com as histórias, conhecer o
pensamento e o sistema de valores da cultura em questão, para poder
compreende-los bem. De fato, é outra linguagem, que é preciso aprender, para
interpretá-los corretamente.
Nessas
condições, a unidade lexical do universo
de discurso etno-literário tem um estatuto nitidamente diferente. No nível
da norma e do falar concreto, ela subsume as duas funções, vocábulo e termo. Com
efeito, trata-se de um vocábulo, nos seus aspectos referenciais, pragmáticos e
simbólicos, em função semiótica, metassemiótica ou meta-metassemiótica e é um
termo, na medida em que a unidade léxica em questão tem características de uma
linguagem de especialidade. É possível, assim, propor, em semiótica profunda, o
seguinte modelo:
t.d.
unidade
léxica etno-literária
vocábulo termo
língua linguagem
de
geral especialidade
~termo ~vocábulo
Æ
Figura 1: Tensão vocábulo x termo
Sustenta-se uma tensão dialética vocábulo x termo nas unidades lexicais
etno-literárias. Na dêixis positiva, a unidade lexical em função vocábulo é um não-termo. Na dêixis negativa, a unidade lexical em função termo é um não-vocábulo.
De maneira sucinta, pode
dizer-se que as unidades lexicais dos
discursos etno-literários têm um significado
muito especializado, específico do universo de discurso a que pertencem e
que são, ao mesmo tempo, polissêmicas/polissemêmicas.
Noutras palavras, essas unidades léxicas reúnem qualidades das linguagens de
especialidade e qualidades da linguagm literária, conservando um valor
semântico social e concomitantemente permanecendo como documentos do processo
histórico de uma cultura. Acrescente-se que elas resultam, simultaneamente, do
cruzamento de processos de metaterminologização
e de metavocabularização. .
Certos
universos de discurso – e os discursos manifestados neles contidos – suportam
relações intertextuais e interdiscursivas que admitem uma abordagem transdisciplinar; outros há, no entanto, em
que aquelas relações intertextuais e interdiscursivas, por sua natureza, impõem um tratamento transdisciplinar.
A
multifuncionalidade das palavras dos discursos etno-literários conduziu a
Autora a propor a formalização de nova disciplina científica, a
Etno-terminologia.
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