O ESTADO E O
MULTICULTURALISMO: UMA REFLEXÃO SOBRE ALGUNS PAÍSES NORTE-EUROPEUS E O BRASIL
(Centro de Estudos
Afro-Orientais, Universidade Federal da Bahia
No Brasil, o debate sobre o
fenômeno do multiculturalismo tem sido o palco de distância entre discurso e
prática social. Precisamos contextualizar tal discurso, histórica e
sociologicamente. Uma forma de fazer isso é analisar como este fenômeno surgiu
enquanto ideal de sociedade em alguns países europeus que há muito tempo estão
tentando lidar com a diferença étnica, racial e cultural, a partir de um
conjunto de medidas públicas. Em tecendo
considerações sobre o multiculturalismo e o Brasil, saliento a
importância de aproveitar tanto o debate como o olhar “de fora”, evitando,
porém, reduzir a reflexão comparativa unicamente ao eixo Estados Unidos-Brasil.
Por isso é interessante enfocar os países europeus que receberam uma forte
imigração, sobretudo a partir do segundo pós-guerra, as assim chamadas
sociedades multiculturais, nas quais existe uma relação orgânica entre
discursos, leis e práticas multiculturais. Refiro-me concretamente a Alemanha,
França, Bélgica, Holanda e Inglaterra. Nestes países, na base do
multiculturalismo, encontram-se três fontes clássicas.
Em primeiro lugar, há o
pacto social - o compromisso do Estado e parte das elites de cuidar dos
excluídos e dos pobres. Neste sentido, pensa-se os pobres — as categorias de
excluídos — como passíveis de medidas legislativas particulares, como
redistribuindo, de certa forma, a renda. Claro que se trata de um processo de
incorporação seletiva de uma parte dos pobres. Nem todos os pobres podem e
devem ser ajudados, somente aqueles que se submetem às regras do convívio
estabelecidas pelo pacto social. Na Holanda, o primeiro seguro-desemprego foi
instituído em 1522 e logo foi preciso definir quem era digno de recebê-lo (de
Swaan, 1988; de Regt, 1978). Para isso, instituíram-se direitos especiais,
mesmo dentro do contexto da legislação universalista. O objetivo substancial
era — e ainda é — prevenir ou, pelo menos, administrar o conflito.
A segunda fonte
importante é o passado colonial, quer dizer, a forma pela qual se procederam
nas colônias a organização e, às vezes, até a militarização do confronto diante
da diversidade cultural. Neste sentido, pode-se falar de diferentes estilos de
colonialismo: a) o sistema britânico do indirect
rule, ou governo indireto; b) o sistema das sociedades plurais como, por
exemplo, a do Império holandês, que se baseia na existência de um direito
étnico. Assim, no Suriname, até os anos 1930, o direito civil e, em alguns
casos, o penal variavam segundo o grupo étnico. Existia o direito de
propriedade para os javaneses, que era diferente daquele aplicado aos hindustanos,
que, por sua vez, diferia da forma jurídica (ocidental) pela qual eram julgados
os negros e mestiços. Um sistema não muito diferente valia na África do Sul sob
o regime do apartheid — não por
acaso, uma palavra holandesa; e c) no extremo oposto, existia a versão do
colonialismo do Império francês, que era baseada na noção de francité, de universalismo na “boca do
fuzil” e na atratividade de uma ocidentalização possível, embora a altos custos
(ou duras penas), para uma parcela da população “nativa” (Diouf, 1999). Com
efeito, práticas e teorias divergiam em muitos casos e todo colonialismo, pelo
menos na África, em algum momento lançou mão de ambos os tipos de domínio, o
direto e o indireto.
Todos estes estilos de
colonialismo previam a institucionalização de algum tipo de etnicidade dos
direitos e deveres, embora muitas vezes associados a um discurso de igualdade e
de respeito à diferença. De qualquer forma, os três estilos levaram a hábitos
étnicos e culturais, e a consensos que se mostraram tenazes e capazes de
influenciar bastante a época pós-colonial. Nos últimos anos, porém, estes
sistemas estão sendo colocados em discussão pelo contexto de
internacionalização que altera a relação entre colônia e metrópole a partir das
grandes migrações e da globalização das culturas. Depois da Segunda Guerra
Mundial e, com mais intensidade, nas últimas duas ou três décadas, é a colônia
que vem à metrópole, enquanto, ao mesmo tempo, a metrópole permanece na
colônia, até se enraizando nela mais ainda. Nunca se falou tanto o holandês no
Suriname e o francês no Mali como hoje em dia.
A terceira fonte clássica,
depois do pacto social e do passado colonial, é a tradição que diz respeito às
formas de se lidar com as diferenças étnicas e regionais internas destes países
europeus (Penninx en Willemsen, 1996). Trata-se do assim dito “regionalismo” de
alguns países que se afirmam como Estados-nação na Europa a partir de um
compromisso com as diferenças culturais regionalizadas, redistribuindo recursos
e poder político para minorias e “colônias” internas. Refiro-me aos catalães,
bascos, bretões, galeses, sardos, corsos, etc.
É evidente que nem todo
país da Europa é atingido da mesma forma por esses três fenômenos: pacto
social, passado colonial e regionalismo. Um determinado país pode dar prova de
generosidade e tolerância com relação ao pacto social, mas não ao regionalismo.
E vice-versa. Há numerosas tentativas de entender essas variedades dividindo a
Europa em modelos. Castles e Miller (1993), importantes sociólogos das migrações,
muito presentes no debate sobre o multiculturalismo e inspirados por Dumont,
tentaram classificar os cinco países europeus que mencionei, uns como mais,
outros como menos multiculturalistas. Essencialmente, eles insistiram no fato
de que os princípios da jus sanguinis,
que estariam na base das Kulturnazion, e
da jus soli, que estariam na base da Staatnazion, ainda são os verdadeiros
inspiradores das formas de lidar com a diferença étnica. Castles e Miller
dividiram os países europeus de grande migração em modelo de exclusão
diferencial - a Alemanha -; modelo de assimilação - a França -; e modelo de
multiculturalismo - a Grã-Bretanha. Vou argumentar que a situação européia é
mais complexa que isso.
O Conselho da Europa, num
esforço de pragmatismo e postura ecumênica, optou por dividir, de outra forma,
os países europeus com relação à multiculturalidade, salientando o fator
variedade. Por um lado, haveria os países nos quais a nacionalidade é vista
como o começo da integração, como a França e, por outro lado, países, como a
Alemanha, onde a nacionalidade é vista como o resultado final do processo de
integração. Na Alemanha, Suíça e França, a ênfase seria na cidadania, enquanto
na Holanda, Suécia, Noruega e Dinamarca, no pluralismo cultural. A Inglaterra é
um caso à parte, pois a ênfase não é no pluralismo cultural, mas na luta contra
o racismo. Neste sentido, a Inglaterra é o único país europeu onde as agências
governamentais falam de relações raciais, em lugar de relações interétnicas.
De qualquer forma, em todos
estes países, a diversidade étnica, resultado da imigração, apresentou-se como
um choque porque colocou em discussão o pacto social. Uma coisa seria aceitar
pagar impostos para que se providenciasse um subsídio para os desempregados e
os pobres nativos; outra coisa seria quando, como na Inglaterra, os claimants, aqueles que têm direito à
seguridade social, são paquistaneses que sequer falam inglês corretamente, ou
são muçulmanos, que lidam de forma “diferente” com as tradições culturais
britânicas. A imigração de massa também coloca em discussão tanto os
equilíbrios internos de um país com relação às minorias regionais, por exemplo,
alterando delicados equilíbrios demográficos e eleitorais entre flamengos e
valões na Bélgica, como em relação às imagens destes outros (“não-brancos”)
construídas ao longo da experiência colonial: os que antes eram os sujeitos
coloniais, os selvagens, incivilizados, agora moram e até trabalham conosco. Neste
sentido, a imigração tem tido um efeito quase revolucionário sobre a realidade
social dos países em questão. Uma série de variáveis contribui para diferenças
na aplicação concreta de medidas multiculturalistas. Primeiro há a diferença
entre discursos e práticas; segundo, a imigração manifesta-se em épocas e
dimensões diferentes; terceiro, os efeitos reais dessas medidas são
diferenciados.
Depois da Segunda Guerra
Mundial, nos países analisados, a Inglaterra foi a que primeiro recebeu uma
imigração maciça, já a partir dos anos 40 e 50. Nesse país, já no final dos anos
60 chega à idade adulta a “segunda geração” de descendentes de imigrantes do
pós-guerra — os filhos dos trabalhadores contratados no Caribe anglófono. Na
Holanda, somente em 1978 o governo reconhece, pela primeira vez, que o país é
de imigração. Na França, isso se dá nos anos 80, com Mitterand. E, no final dos
anos 90, na Alemanha, finalmente, a legislação é alterada para permitir a dupla
nacionalidade.
Além de se tratar de países
com culturas distintas, é preciso acrescentar que hoje as políticas que dizem
respeito à diferença etnocultural mostram, em cada país, com relação ao passado
e às três fontes clássicas mencionadas antes, tanto continuidade como
descontinuidade. Um forte elemento de continuidade depende do “enraizamento” do
multiculturalismo na história do estado social e do ensino obrigatório. Se o
serviço público é o âmbito em que se experimentam medidas em prol de minorias,
como quotas, programas de treinamento e planos de carreira, a escola pública é
o palco principal do discurso pró-diversidade do multiculturalismo. Sobretudo
na Holanda, na Alemanha e na Inglaterra, os respectivos ministérios da educação
investiram muito dinheiro e recursos na implementação de medidas
multiculturalistas, implementando políticas afins nas escolas e estimulando os
professores a formarem uma visão de mundo um pouco mais tolerante e cosmopolita
do que antes (embora segundo princípios que já critiquei antes, através dos
quais as culturas de maioria e minoria coexistem em estilo mosaico ou patchwork)[i]. Na maior parte dos casos, trata-se de um esforço
feito com grande seriedade. Nestes cinco países — Holanda, França, Alemanha,
Inglaterra e Bélgica, o Estado gerencia as medidas e articula os discursos
acerca do multiculturalismo. De fato, este surge como vontade e resposta do
Estado, muitas vezes até contra os interesses da iniciativa privada — que chega
a boicotar medidas como a contract
compliance (a obrigação, por parte das empresas contratadas pelo Estado, de
efetivar programas de ação afirmativa para determinadas minorias). Neste
sentido, hoje, a efetivação do multiculturalismo está, muitas vezes, colocada
em discussão pela própria crise da máquina estatal, característica desta época
nos cinco países mencionados. Embora, neles, o Estado continue muito presente
nas políticas sociais e não pareça estar transformando-se em uma máquina
punitiva com relação à pobreza — ao contrário do que parece acontecer nos
Estados Unidos (Wacquant 1998) —, seu poder de intervenção é severamente
afetado pelos cortes dos gastos públicos e a privatização de serviços.
Os efeitos das medidas e
práticas multiculturalistas, ademais, são diferenciados. O efeito destas
práticas pode ser um, com relação aos trabalhadores imigrados, outro, com
relação às minorias originárias das ex-colônias - que, na maioria dos casos,
estão mais familiarizadas com a língua, a religião e a cultura da metrópole - e
ainda um terceiro, no caso das minorias regionais. Assim, um país pode ser
generosamente multicultural com uma minoria e pouco tolerante com uma outra.
Ademais,
as medidas inspiradas pelo multiculturalismo podem não ter a mesma aceitação
entre todos os grupos para os quais elas são destinadas. Trata-se, em
substância, de quatro grupos com características, às vezes, bastante
diferentes: 1. os imigrantes das ex-colônias e seus descendentes, em particular
originários do Caribe ou de outros lugares onde a língua e a religião da
metrópole já eram enraizadas. Na maioria dos casos, trata-se de pessoas que
dispõem da cidadania do país hóspede ou que têm relativa facilidade em
adquiri-la; 2. os imigrantes de outros países da União Européia e seus
descendentes (por exemplo, os italianos na Bélgica). 3. há também outros
imigrantes e seus descendentes (por exemplo, os turcos na Alemanha, Suécia e
Holanda); 4. os integrantes das minorias “regionais” (por exemplo, os alemães
de origem russa ou romena e os irlandeses na Inglaterra). Cada um destes grupos
manifesta demandas e se relaciona com o multiculturalismo de forma diferente. Um
exemplo neste sentido é o debate em torno da disciplina escolar chamada “ensino
na própria língua e cultura”.
Finalizando, hoje a
integração dos “estrangeiros” nestes países se dá em um contexto mais fluido
com relação ao passado, definido por cidades e regiões mais do que por Estados,
e caracterizado tanto pela hetero quanto pela homogeneização cultural.
NB: Este
texto é um visão resumida do artigo de Livio Sansone “Multiculturalismo, Estado
e modernidade - As nuanças em alguns países europeus e o debate no Brasil”
publicado na revista Dados, 46, 3:535-555 (2003).
[i] Ver meu comentário ao
relatório de Perez de Cuellar para as Nações Unidas intitulado “Our Creative
Diversity” na homepage www.http://kvc.minbuza.nl/uk/archive/commentary/sansone.html
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |