A LINGUAGEM INCOMUM DO “BUGRE” NA
ESCOLA: MOTIVO DE CHISTE E REPREENSÃO
Leila Salomão Jacob Bisinoto*
UNEMAT
A base teórica disponibilizada pelas
pesquisas sobre atitudes lingüísticas (William Labov,
Joshua Fishman, Brigitte Schlieben-Lange e
outros) e os estudos produzidos na última década pelos pesquisadores do Projeto
História das Idéias Lingüísticas no
Brasil: ética e política das línguas (Unicamp/Usp)
nos permitem estabelecer relações com a linguagem e os processos lingüísticos
no Centro-Oeste do Brasil, tendo como pano de fundo a figura do “bugre”
enquanto falante do português.
A palavra “bugre” designa,
correntemente, o nativo – de descendência indígena ou de família tradicional –
de Mato Grosso. Ao “bugre” se atribui, de forma genérica, o falar incomum que
se ouve na região, um português repleto de resíduos arcaicos
e marcado por termos, construções sintáticas e traços fonéticos flagrantemente
especiais.
O grande afluxo de migrantes internos ao
Centro-Oeste do país na segunda metade do século passado, incentivado e
favorecido pelas políticas federais de expansão das fronteiras agrícolas e
econômicas, estabeleceu o contato entre brasileiros de diferentes origens e
resultou na coexistência das variedades do português no meio social. Em meio a essa espécie de caleidoscópio
lingüístico, a “linguagem do bugre”, de “curiosa” e “pitoresca” em princípio,
passa a receber na escola o estigma do erro, da impropriedade e até da anomalia
lingüística. A noção de “erro” de linguagem que alimenta o mercado editorial
dos manuais corretivos da língua, persistentemente adotada pela escola, muitas
vezes prevalece sobre as observações e considerações mais acuradas dos
processos históricos e políticos, determinantes da imposição de poder que se
oculta sob o manto da “correção” da fala do outro. É sabido que o aplicativo
pedagógico da dicotomia erro/correção tem por base a normatividade da língua, prescrita na gramática;
entretanto, em Mato Grosso acresce-se um novo componente à prática escolar da
“apuração” da linguagem – a estigmatização social do
“linguajar do bugre”, cujos estereótipos agravam o sentido de violação das
regras que pretensamente garantem a unidade lingüística perseguida pela escola.
A censura perpetrada pela instituição tem um
incontestável poder de difusão, produzindo o que SCHLIEBEN-LANGE (in História do falar e história da lingüística . Trad.
Fernando Tarallo et alii,
Campinas, Ed. da Unicamp, 1993) denomina “discurso público sobre a língua”,
cujos argumentos (estereótipos) são facilmente incorporados ao meio social.
Segundo a autora, as avaliações e julgamentos que sustentam esse discurso –
“feio”, “bonito”, “bom”, “ruim”, “certo”, “errado” – quase sempre têm origem
numa situação histórica, com motivação política. Trata-se de lugares-comuns que
se cristalizam indiscriminadamente na comunidade lingüística e, não raras
vezes, constituem uma certa “contradição” discursiva, visto que “há, de um
lado, uma coexistência de diferentes discursos que concorrem entre si e que se
compõem de elementos contraditórios e, de outro, instituições que se esforçam
por impor e transmitir esses discursos para além de todas as experiências e em
oposição a elas” (p.96). Incorporados ao senso comum, os estereótipos
lingüísticos, via de regra, se reforçam no humor no chiste, manifestados no
teatro popular cômico, nos textos e nas músicas de cunho humorístico, nas rodas
de piadas. O sentido produzido pela ridicularização
da forma como se fala é um componente fundamental da pressão social pelo
nivelamento lingüístico e, segundo LABOV (in Sociolinguistic Patterns, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1977), tem o
efeito de apagar as formas lingüísticas afetadas no seu valor social, o que
redunda no desaparecimento das variantes estereotipadas. Quando se esforça para
excluir a variedade nativa, atribuindo-lhe o caráter de anormalidade e erro, a
escola não apenas legitima o preconceito e licencia a pilhéria, mas, sobretudo,
institucionaliza uma espécie de neocolonialismo
lingüístico na região. E ao internalizar (ou dissimular perante) o preconceito
impingido à sua própria fala, conforme pudemos constatar em nossa pesquisa, o
nativo contribui para o enfraquecimento da variedade local e acelera o processo
de alteração de traços constitutivos de sua identidade. Neste particular, os
estudos desenvolvidos pela Etnologia dão conta de que a auto-rejeição da
identidade, os objetivos pluralísticos, a ambivalência de avaliações de sua
própria gente e de seus valores e bens culturais caracterizam os processos de
“assimilação” por que passam as populações nativas do Brasil quando defrontadas com o que genericamente se denomina “progresso”
(cf. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Do
índio ao bugre: o processo de
assimilação dos Terêna. Rio de Janeiro, Francisco
Alves, 1976). A instituição encontra, portanto, nessas relações conflituosas,
um campo fértil para arbitrar o que é “civilizado” e o que é “bárbaro”.
No nosso entendimento, as atitudes
sociolingüísticas presentes nas relações pedagógicas, e, conseqüentemente, na
comunidade lingüística, com profundos reflexos na estrutura social, fundam-se
em pelo menos três fatores: o primeiro, de caráter geolingüístico,
consiste na conservação de traços de um português remoto na região ocupada,
decorrente de seu isolamento secular em relação ao litoral e aos grandes
centros urbanos do país; o segundo, de ordem etnolingüística,
aponta para a figura do índio, historicamente estigmatizado como “pária” e, nesse contexto, o falante legítimo da língua em
questão; finalmente, o fenômeno sociológico da avalanche migratória,
destacando-se a relativa sobreposição socioeconômica do migrante e seu intento,
nem sempre declarado, de colonizar o nativo. Pretendemos refletir sobre alguns
aspectos desse intrincado painel.
* Professora de Língua Portuguesa e
Lingüística na Universidade do Estado de Mato Grosso e doutoranda em História
das Idéias Lingüísticas pela Universidade Estadual de Campinas.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |