MEDIDAS DE NÃO-PROLIFERAÇÃO DE ARMAS NUCLEARES

E O IMPACTO NA CIÊNCIA

 

Laércio A. Vinhas

Comissão Nacional de Energia Nuclear

 

O período das atividades secretas

 

            Até a década de 40, a divulgação dos resultados das pesquisas e a publicação de trabalhos científicos processava-se de uma maneira muito mais livre que hoje. Com o advento da segunda guerra mundial e o esforço para desenvolver armas e equipamentos de guerra mais poderosos e sofisticados, tomou-se consciência da importância estratégica, e comercial, dos resultados de certas pesquisas, em particular na área de energia nuclear.

 

            Com uma série de eventos que se seguiu à descoberta da fissão nuclear, como as experiências bem sucedidas sobre reações de fissão nuclear em cadeia e a fabricação das primeiras bombas atômicas pelos Estados Unidos, os cientistas constataram o poder da energia nuclear e anteviram suas múltiplas aplicações tanto em armas nucleares, as bombas atômicas, como em reatores para a geração de energia elétrica e demais aplicações na saúde, agricultura e indústria.

 

            Diante disso, as autoridades americanas com o objetivo de manter a exclusividade na posse de armas nucleares e o monopólio no uso da energia nuclear para a geração de energia elétrica adotaram a política de considerar as atividades desenvolvidas sobre esse tema e os trabalhos resultantes destas como secretos. Essa mesma política passou ser adotada por outros países.

 

 

Átomos para a Paz

 

            Essa política de segredos não atingiu seus objetivos, pois a União Soviética explodiu sua primeira bomba atômica em 1949 e a Inglaterra em 1952. Ao mesmo tempo, alguns países avançavam rapidamente no desenvolvimento de reatores geradores de energia elétrica. Com receio da ocorrência de um aumento no número de países nuclearmente armados e com a pressão da indústria americana para participar do mercado interno de construção de reatores geradores de energia elétrica e buscar assumir a posição de liderança nesse promissor mercado a nível mundial, o governo americano resolveu, em 1953, mudar sua política. Nesse ano, o Presidente Eisenhower lançou o programa Átomos para a Paz em  discurso perante a Assembléia Geral das Nações Unidas.

 

            Esse programa previa a transferência de conhecimento e materiais relativos aos usos pacíficos da energia nuclear mediante acordos de cooperação com o país recebedor, ficando os Estados Unidos com o direito de verificar se os bens transferidos estavam sendo usados exclusivamente para esses fins. Era o início das salvaguardas nucleares.

 

 

A Agência Internacional de Energia Atômica

 

            Como conseqüência do Programa Átomos para a Paz, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) foi criada em 1957, com sede em Viena, Áustria, com os objetivos de promover os usos pacíficos da energia nuclear por meio da cooperação entre os países e de criar um sistema de salvaguardas nucleares para verificar que os materiais transferidos no âmbito dessa cooperação não estavam sendo desviados para fins proscritos, como a produção de armas nucleares, ou não declarados.

 

            De acordo com o Estatuto da Agência e os compromissos assumidos pelos países nos acordos de cooperação, os materiais nucleares recebidos no âmbito desses acordos, e indiretamente os equipamentos e tecnologias, estariam sujeitos às salvaguardas da AIEA e seriam inspecionados periodicamente para assegurar que estavam sendo usados nas atividades declaradas.

 

 

O Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares

 

            O Programa Átomos para a Paz e o regime de salvaguardas a ele associado não pareciam suficientes para conter a corrida armamentista, pois alguns países com recursos próprios estavam desenvolvendo atividades visando produzir armas nucleares. Como essas atividades não envolviam a colaboração de terceiros países, não eram obrigadas a estar sob salvaguardas internacionais,. De fato, a França explodiu sua primeira bomba atômica em 1960 e a China em 1964.

 

            Preocupada com a escalada da proliferação e pressionada pelos cinco países possuidores de armas nucleares, a comunidade internacional iniciou as negociações do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) que foi aberto para assinaturas em 1968 e entrou em vigor em 1970. Por esse tratado, Artigo III, os países não possuidores de armas renunciam à busca e posse dessas armas e são obrigados a assinar um acordo abrangente de salvaguardas com a AIEA, pelo qual o país coloca sob salvaguardas da Agência todos os materiais nucleares presentes em todas as instalações nucleares, incluindo laboratórios. Desse modo, todas as atividades nucleares do país, independentemente se desenvolvidas de maneira autóctone ou em cooperação com outros países, estão sob salvaguardas internacionais da AIEA e, portanto, a Agência e a comunidade internacional tem conhecimento de todas as atividades nucleares do país, inclusive as referentes às pesquisas que envolvam o uso de materiais nucleares.

 

            O tratado é discriminatório, pois congela a divisão em países nuclearmente armados e não nuclearmente armados. São considerados países possuidores de armas nucleares pelo tratado aqueles que explodiram bombas atômicas antes de 1967 (Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França e China). Estes se comprometem a fazer os melhores esforços na direção da redução do número de armas nucleares e de um eventual desarmamento sob restrito e efetivo controle internacional. Enquanto, os outros estão impedidos de se armarem e são obrigados a colocar todas as suas instalações nucleares sob salvaguardas da AIEA.

 

            Embora o Artigo IV do TNP afirme ser um direito inalienável das Partes desenvolver pesquisa, produção e uso da energia nuclear para fins pacíficos sem discriminação, os conhecimento das atividades nucleares do país pela comunidade internacional pode propiciar o surgimento de pressões contrarias a certas atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica com base em interesses estratégicos e comerciais de terceiras partes.

 

 

O Grupo de Supridores Nucleares - NSG

 

            Em 1974, em decorrência da explosão da primeira bomba atômica pela Índia, certos países fornecedores de bens nucleares resolveram criar o Grupo de Supridores Nucleares visando contribuir para a não-proliferação de armas nucleares por meio da implementação de regras para controlar a exportação de materiais e equipamentos de uso nuclear e de materiais, equipamentos e tecnologias de uso duplo, isto é ítens que possam contribuir para atividades nucleares não-declaradas ou na produção de explosivos nucleares, mas que são também usados em atividades não nucleares como na indústria (por exemplo, osciloscópios de alta freqüência, máquinas operatrizes de alta precisão com controle numérico).

 

            A condição básica de suprimento é que o país receptor seja signatário de um acordo para aplicação de salvaguardas abrangentes da AIEA. Além da declaração de usuário final emitida pela instituição responsável pela importação, o governo deverá emitir um certificado de garantias ao governo do país exportador assegurando que o usuário final cumprirá com as obrigações expressas em sua declaração, os materiais, equipamentos e tecnologias importados não serão usados na fabricação de artefatos nucleares e o material nuclear estará sob salvaguardas da AIEA. Depois de examinar esse certificado de garantias, o país exportador poderá autorizar a transferência somente se estiver convencido que esta não contribuirá para a proliferação de armas nucleares.

 

            Considerando o poder de decisão do exportador e o grande número de ítens de uso duplo controlados, os mecanismos de controle de exportação se não aplicados de forma isenta e não-discriminatória poderão dificultar ou mesmo impedir o desenvolvimento de pesquisas nas áreas nuclear e não-nuclear, criando barreiras à importação de materiais e equipamentos essenciais para o desenvolvimento dessas pesquisas.

 

 

O Protocolo Adicional aos Acordos de Salvaguardas

 

            No início da década de 90, as injunções do cenário internacional decorrentes da descoberta de que o Iraque, antes da primeira Guerra do Golfo, desenvolvera atividades clandestinas em violação ao TNP, levaram a comunidade internacional a considerar que o sistema de salvaguardas da Agência era eficiente no controle de material nuclear declarado, portanto o sistema poderia verificar e assegurar que as declarações prestadas pelos países eram corretas, não podendo afirmar que eram completas.

 

            De modo a dotar a AIEA com instrumentos adicionais para ampliar sua capacidade de detectar materiais e atividades nucleares não-declarados, foi negociado um novo instrumento legal adicional, um Protocolo Adicional, aos acordos de salvaguardas existentes.

 

            Pelo Protocolo Adicional, a AIEA terá acesso a um grande volume de informações sobre o país e terá direito a acessos físicos mais amplos, portanto ampliando a extensão e a intrusividade das ações de controle com o objetivo de poder assegurar que a declaração apresentada pelo país está correta e completa e, indiretamente, assegurar que não há no país materiais, instalações e atividades não-declaradas.

 

            O Protocolo Adicional contempla significativo aumento de medidas intrusivas:

 

            Quanto às informações: exige a prestação de informações sobre todas as atividades de pesquisa ou desenvolvimento na área nuclear e em outras áreas relacionadas, ainda que de forma indireta, com atividades nucleares; sobre as instalações que produzem materiais e componentes não-nucleares, porém essenciais para a operação das instalações nucleares; sobre todos os edifícios existentes na área circunvizinha de cada instalação nuclear; sobre a produção das minas e das plantas de beneficiamento de concentrados de urânio e tório; e sobre as operações de exportação de materiais e equipamentos não-nucleares de uso na área nuclear.

 

            Quanto ao acesso dos inspetores: prevê o mecanismo de acesso complementar que pode propiciar a entrada de inspetores da Agência em qualquer parte do território nacional, inclusive universidades e instalações industriais, num prazo de 24 horas, e em qualquer local onde haja instalações nucleares num prazo máximo de duas horas.

 

            Como mencionado, devem ser enviadas à AIEA informações sobre todas as pesquisas em andamento que embora não envolvam o manuseio de material nuclear, estejam relacionadas com as atividades do ciclo do combustível nuclear ou reatores, e os inspetores deverão ter acesso aos laboratórios onde essas pesquisas estão sendo desenvolvidas, com grande impacto em sua confidencialidade.

 

 

Plano Bush

 

            Alguns países, os Estados Unidos em particular, consideram que projetos com objetivo de dominar a tecnologia de enriquecimento e reprocessamento representam riscos de proliferação, apesar da existência de todos esses mecanismos de não-proliferação.

 

            O Presidente Bush, em discurso pronunciado em fevereiro deste ano, propôs uma serie de medidas, entre elas a restrição aos países terem acesso às tecnologias de enriquecimento e reprocessamento. Nessa direção, propôs que os países que hoje são detentores dessas tecnologias poderiam continuar a tê-las, mas se inibiria o acesso dos demais países a essas tecnologias. O critério sugerido foi que seriam considerados detentores da tecnologia, os países que em 31 de dezembro de 2003 tivessem instalações de enriquecimento e /ou reprocessamento em operação e sob salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica. No caso de enriquecimento, seriam 10 países, entre eles o Brasil, e no caso de reprocessamento, seis países.

 

            Essa proposta, além de discriminatória, contraria o Artigo IV do TNP.

 

 

Plano ElBaradei

 

            De outra parte, o Diretor-Geral da AIEA, Mohamed ElBaradei, considera que o risco de proliferação devido às plantas de enriquecimento e reprocessamento seria diminuído se essas plantas fossem operadas em conjunto por dois ou mais países. Esta proposta está sendo discutida por um grupo de representantes de vários países, inclusive do Brasil. Esse grupo irá analisar a viabilidade dessa proposta quanto aos aspectos políticos, econômicos, estratégicos e legais. Antevêem-se grandes dificuldades em todas essas áreas.

 

 

Conclusões

 

 

            As medidas de não-proliferação apresentam sempre certo grau de intrusividade. Essas medidas em si não restringem ou impedem o desenvolvimento de pesquisa e projetos. Entretanto, como elas estão, em geral, baseadas na apresentação de declaração elaboradas pelos estados, contendo grande número de informações, aos órgãos controladores, as informações sobre as atividades nucleares do país passam a ser de conhecimento da comunidade internacional.

 

            Desse modo, podem surgir, devido a interesses estratégicos ou comerciais de terceiras partes, pressões políticas para inibir certas atividades ou projetos, ou mesmo podem ser levantadas barreiras tecnológicas como a negativa de exportar materiais ou equipamentos essenciais para o desenvolvimento dessas atividades ou projetos. Por outro lado, as medidas de não-proliferação podem dificultar a preservação de segredos estratégicos quer sejam tecnológicos ou comerciais.

 

            Concluindo, as medidas de não-proliferação contribuem efetivamente para evitar a dispersão de armas nucleares, entretanto na sua aplicação deve ser buscado o ponto de equilíbrio entre as agências controladoras disporem dos meios para cumprir seu mandato e os países os meios para preservarem seus interesses estratégicos e comerciais.

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004