NOVAS FACES DA EDUCAÇÃO SUPERIOR – CONTINUIDADES E RUPTURAS NA TRANSIÇÃO PARA UM GOVERNO POPULAR DEMOCRÁTICO

 

João dos Reis Silva Júnior (*)

UFSCAR

 

A discussão sobre a esfera educacional no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva reveste-se de enorme complexidade e de imprevisibilidade em face do pouco tempo de Lula à frente da presidência da República do Brasil, tendo, ainda, herdado um complexo jurídico-institucional bastante consolidado e produzido ao longo do governo FHC, no qual se destacam as reformas do Estado e da educação (com destaque para seu nível superior) cujo processo de implementação somente agora, tem início e em seu segundo ano já apresenta suas acentuadas faces. No entanto, apesar dessa limitação, é relevante tornar claro o que parecem ser o lugar e as finalidades da educação superior no Governo de Luis Inácio Lula da Silva, levando em consideração a herança política deixada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e a orientação do atual governo concretizada pelo seu propalado Pacto Social[1] e as bizarras iniciativas que se vem tomando para organizar a universidade no Brasil.

O Governo de Fernando Henrique Cardoso teve no centro de suas propaladas propostas políticas a construção e o fortalecimento da cidadania e o aumento das possibilidades de emprego, projeto tornado público através de discursos dos reformadores ou de seus arautos com grandes espaços e tempos na mídia, mediante o alardear da construção do novo cidadão brasileiro, cujo perfil teria como pilares o modelo de competência, da empregabilidade e da participação política e social nos rumos do país, contraditoriamente em meio a uma intensa mudança institucional e à construção de uma nova organização social, isso induzido por um novo paradigma de Estado, cuja racionalidade encontrava-se vazada por valores mercantis.

Tratava-se, sem dúvida, de um projeto político muito convincente, não fosse a conjuntura mundial e brasileira, neste último caso, com seus traços acentuados na segunda metade da década de 1990: 1) a disseminação do novo paradigma de organização das corporações em nível mundial, 2) a desnacionalização da economia brasileira 3) a desindustrialização brasileira, 4) a transformação da estrutura do mercado de trabalho, 5) a terceirização e a precarização do trabalho em função de sua reestruturação, 6) a reforma do Estado e a restrição do público conjugada com a ampliação do privado, 7) a flexibilização das relações trabalhistas, 8) o enfraquecimento das instituições políticas de mediação entre a sociedade civil e o Estado, especialmente dos sindicatos, centrais sindicais e partidos políticos e 9) trânsito da sociedade do emprego para a sociedade do trabalho, isto é, a tendência ao desaparecimento dos direitos sociais do trabalho e 10) o movimento de transferência dos deveres do Estado e direitos sociais dos cidadãos para a sociedade civil. Fernando Henrique Cardoso, num movimento de atualização de sua Teoria da Dependência, em sua prática política à frente da presidência, governou conforme o capital financeiro internacional, preocupando-se tangencialmente com o capital nacional industrial e com o fortalecimento de um capital produtivo brasileiro, todos eles já articulados entre si.

Por outro lado, face à desmobilização da sociedade civil ocorrida na década de 1980, gerenciou (mais do que governou) o país desconsiderando aquela, ou a considerando ao menos de forma parcial em face de sua frágil organização, além de incentivar a emergência das organizações não governamentais (ONGs). Neste mesmo movimento consolidou o hiperpresidencialismo, como forma de governo, isto é, uma hipertrofia do Executivo em detrimento dos demais poderes da República. Com isso tornou frágil ao máximo o capital nacional, destacadamente o industrial, redesenhou a sociedade civil, instituindo as ONGs como interlocutoras principais, transferindo deveres do Estado e direitos sociais subjetivos do cidadão para a sociedade civil, porém, sob seu controle. Um movimento que produziu um novo paradigma de políticas públicas: as políticas públicas de oferta a serem executadas na sociedade civil em geral por ONGs, movimento que ao lado das reformas institucionais executadas, redesenhou nossa sociabilidade, e criou condições para a produção de um novo paradigma político orientado pela instrumentalidade, a adaptação e a busca do consenso (traço político assumido pela atual cultura política defendida pelo presidente Lula por meio de seu Pacto Social). Este quadro se completa quando se observa a sua submissão às agências multilaterais, a ponto de chegarmos ao final do primeiro semestre de 2002 gastando vários salários mínimos de R$200,00 por segundo para pagar, com o superávit primário, somente os juros de nossa política e impagável dívida externa. E, em 2003, segundo o diretor do Banco Central, encaminhamos para o FMI R$147 bilhões.

Lula assume a presidência da República do Brasil em tal contexto com esmagadora maioria de votos e a confiança de todo um povo e das agências multilaterais que tanto influenciaram seu antecessor tendo como plataforma eleitoral o já referido pacto social. Nesse quadro conjuntural indaga-se: como as rupturas e continuidades dessa proposta política nos ajudam a compreender a vitória da coligação centrada em Lula na mais importante eleição presidencial brasileira? E, como tais respostas nos auxiliam no entendimento da lógica que orienta a esfera educacional brasileira?

Lula, em face de sua própria trajetória, desde sindicalista a atual presidente da República do Brasil, sempre esteve próximo da sociedade civil organizada por meio de movimentos sociais, que procuravam estabelecer condições para um paradigma de políticas públicas de demandas sociais. Basta analisarmos seu itinerário desde a emergência do Novo Sindicalismo no final da década de 1970, passando pela criação do Partido dos Trabalhadores até 1998, quando é derrotado em primeiro turno por Fernando Henrique Cardoso. Este é o momento em que o Partido dos Trabalhadores parece redesenhar-se numa direção mais pragmática no jogo político eleitoral brasileiro, como indica, por exemplo, a sua aproximação com Pensamento Nacional das Bases Empresais, registrado na primeira nota deste texto. Qual parecia ser, então, a nova equação política do partido que viria proporcionar-lhe a vitória nas eleições presidenciais de 2002?

Tal equação parece centrar-se na continuidade dos mesmos padrões de FHC no que se refere ao capital financeiro nacional e internacional, daí porque lermos reiteradamente na mídia os elogios das agências multilaterais à política econômica do governo Lula, bem como em relação aos expedientes utilizados para a contenção da inflação, especialmente o aumento da taxa básica dos juros. Por outro lado, ainda que com uma redesenhada sociedade civil, Lula procura diálogo para governar, mostrando, neste caso, uma ruptura com FHC. Nesse mesmo movimento aproxima-se do capital nacional, buscando, de um lado, o fortalecimento do capital produtivo industrial, de outro, e, com isso, o crescimento econômico brasileiro. Isto para, com base num status político e econômico mais forte, buscar reverter o quadro de submissão ao capital financeiro nacional e internacional produzido pelo monetarismo de Pedro Malan. Nessa base parece residir a lógica do Pacto Social de Lula, com conseqüências para a política de ciência, tecnologia e inovação tecnológica e para a esfera educacional.

É interessante analisar as continuidades e rupturas que se apresentam nesse processo que buscam orientar a governabilidade do presidente Lula para, então, entender o lugar e as finalidades reais da educação brasileira. Algumas questões são básicas e relevantes: a importância da ciência, da cultura, da educação e o papel das instituições que as produzem. No entanto, se levarmos em consideração a articulação política de Lula entre capital nacional e trabalho, buscando produzir uma cultura política de negociação em direção ao consenso, do qual emergiria o crescimento econômico e um maior cacife para o embate com o capital financeiro nacional e internacional, as assertivas tornam-se pólos opostos de uma contradição.

A produção da ciência, da tecnologia e da inovação é posta como centro da dinâmica para o crescimento econômico, e todo o sistema educacional é subordinado à economia por mediação das políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação Tecnológica, enquanto a cultura e a educação como elementos civilizadores são colocadas em segundo plano por força das alianças realizadas para a eleição, de um lado, e o jugo do capital financeiro internacional, de outro. Há aqui uma atualização da Teoria do Capital Humano com rasgados traços de neopragmatismo na formação humana pretendida nessas complexas relações sócio-econômicas. Isso mostra desde pronto pelo menos duas características das políticas públicas para a esfera educacional: o maior investimento em pesquisas com resultados imediatos e uma necessária eficácia na aplicação dos recursos voltados predominantemente para o fortalecimento do capital nacional industrial e agropecuário, o que privilegiaria as “áreas duras” em detrimento das ciências humanas, dentre elas a educação. Ainda exigiria um sistema de pós-graduação com respostas eficazes e rápidas dada a natureza imposta pela necessária competitividade no mercado mundial. Por outro lado, tal lugar e finalidades da educação brasileira afetariam de chofre todas as áreas independentemente de suas especificidades, pondo como vilã da história as ciências humanas que não apresentarem resultados imediatamente aplicáveis à realidade, com o objetivo de realizar o projeto político nacional proposto pela coligação centrada em Luiz Inácio Lula da Silva.

Internamente esse processo acentua o caráter mercantil e econômico que orienta as reformas educacionais no Brasil, enfaticamente,  a da educação superior. Contudo, há tempos discute-se nos acordos comerciais multilaterais a transformação da educação de direto social em mercadoria. Há dez anos tem sido discutido o Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços e dentre os países envolvidos nas muitas rodadas já havidas, o Brasil é um país dos países envolvidos nessa negociação. Há uma rígida agenda para cada setor comercial e em janeiro próximo vence o prazo referente à educação, especialmente a superior e nada mais sólido se tem visto para manter a educação um bem público, salvo iniciativas como a do ANDES-SN e seu abaixo-assinado contra a mercantilização educacional no Brasil. Com a criação da Organização Mundial do Comércio estes acordos ganharam a guarida institucional do estatuto do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, o que nos leva a crer que brevemente teremos uma “Harvard University of São Paulo”.

 

 

(*) Professor da UFSCar – e-mail: joresiju@uol.com.br



[1] UM PACTO PELA CIDADANIA

Oded Grajew

No momento em que o pacto social volta à agenda do país, recordo-me da viagem que organizei para Israel, em 1997, pelo PNBE, Pensamento Nacional das Bases Empresariais. Reunimos, de forma absolutamente inimaginável para a época, dez empresários, o presidente e o secretário-geral da CUT, Jair Meneguelli e Gilmar Carneiro, e Luiz Antonio de Medeiros, presidente de uma central sindical rival. Fomos para conhecer o pacto social israelense que acabou com a inflação de 30% ao mês. Lembro-me do papel fundamental de Lula, que, apostando desde aquela época na construção de um pacto social, empenhou-se comigo para quebrar resistências e preconceitos. Se olharmos a relação dos países com os melhores indicadores sociais, econômicos e de desenvolvimento humano, percebemos que todos têm em comum uma longa tradição democrática.  A democracia desses países mais desenvolvidos passou do estágio de representativa, em que os cidadãos apenas votam e transferem aos eleitos a total responsabilidade pelos destinos da comunidade, para uma democracia participativa, na qual os eleitos e os cidadãos compartilham dessa responsabilidade. Portanto, quando falamos de um processo permanente que envolve toda a sociedade numa série de negociações e acordos sobre assuntos que interessam à comunidade. É uma cultura política que acredita na participação da sociedade e na negociação como formas de lidar com os conflitos, construir a paz social, consolidar a democracia e produzir melhores resultados a curto e longo prazos. (...) (Folha de São Paulo, nov., 2002, p.A3)

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004