AVALIAÇÃO DAS POLÍTICAS DE DESCENTRALIZAÇÃO E DESIGUALDADE EM SAÚDE
João
Henrique Gurtler Scatena (Instituto de Saúde Coletiva da UFMT)
Tendo o Sistema Único de Saúde como pano de fundo
dessa fala, são abordados aspectos da descentralização implementada desde 1990
e apresentados alguns exemplos da desigualdade em saúde que vigora no
país.
Igualdade
e eqüidade são princípios relacionados com a idéia de igualdade de direitos,
diferenciando-se na forma com esses direitos são adquiridos (Machado, Fortes e
Somarriba, 2002). O acesso à saúde, por exemplo, tem múltiplos determinantes,
alguns dos quais são inevitáveis e podem ser considerados aceitáveis
(configurando desigualdade); outros são desnecessários e evitáveis, portanto
injustos (configurando Iniqüidade). Os recursos para a saúde podem ser
distribuídos de forma homogênea para todos
(igualdade) ou podem ser diferenciados de acordo com as distintas
necessidades (eqüidade). Duarte e col. (2002) definem Desigualdade em saúde como “a
distribuição desigual dos fatores de exposição, dos riscos de adoecer ou de
morrer e do acesso a bens e serviços de saúde entre grupos populacionais
distintos”. Iniqüidade, por sua
vez, envolve um ajuizamento sobre o que gerou a desigualdade, ou seja “refere-se às diferenças nos grupos
socioeconômicos distintos, consideradas injustas, com base em um julgamento
detalhado de suas causas” (Kunt & Mackenbach, 1994).
A concepção de Descentralização tem sido
bastante discutida por inúmeros autores, sendo conformada a partir de categorias
como Centralização, Desconcentração, Privatização, Devolução, Delegação,
Democracia, Autonomia, Princípio Federativo entre outras possibilidades
(Arretche, 1996; Bobbio et al., 1993, Junqueira, 1996; 1997; Médici, 1994;
1995; Mendes, 1998; 2002; Teixeira, 1990; Tobar, 1991; Ugá, 1991). Entende-se Descentralização,
como uma estratégia – de ordem gerencial – de reestruturação do Estado, e como
a define Bobbio, a partir da Centralização, tendo-se
“...centralização quando a
quantidade de poderes das entidades locais e dos órgãos periféricos é reduzida
ao mínimo indispensável, a fim de que possam ser considerados como entidades
subjetivas de administração. (Tem-se) ...ao contrário, descentralização quando
os órgãos centrais do estado possuem o mínimo de poder indispensável para
desenvolver as próprias atividades” (Bobbio et al. 1993: 330).
O poder
emerge como elemento chave para a caracterização da descentralização (e da
centralização), entendendo-se “poder” num sentido amplo, que engloba, em maior ou menor escala, as dimensões
política, técnico-administrativa, financeira e fiscal. A descentralização,
neste sentido, implica em transferência (ou alocação) de poder para o exercício
dos respectivos papéis.
No caso da
saúde, a descentralização visa a constituição de Sistemas Locais de Saúde que
respondam adequadamente às demandas e necessidades da população adscrita, mas
que ao invés de se caracterizarem como
sistemas isolados e autônomos, sejam elementos e elos dinâmicos de
Sistemas Estaduais, que conformam um Sistema Nacional. Neste sentido, a
descentralização - e a centralização - têm que coexistir, de forma pactuada,
para garantir o fortalecimento do Sistema Nacional de Saúde e não a atomização
dos Sistemas Locais (Scatena, 2000).
No SUS, os
instrumentos que promoveram a descentralização foram Normas Operacionais
(Básicas e da Assistência à Saúde: NOB e NOAS), editadas em 1991, 1992, 1993,
1996, 2001 e 2002, além da Emenda Constitucional nº 29/2000, que regulamenta o
financiamento e a co-participação de cada esfera de governo.
O primeiro
recorte que se faz, na análise da descentralização no SUS, refere-se ao seu
avanço, em termos de habilitação dos municípios às NOB. Em que pesem as
limitações das NOB 91 e 92, observou-se, desde 1991, um gradual aumento no
número de municípios brasileiros que se organizaram para o cumprimento dos
critérios por ela definidos. Estes municípios habilitados passaram – ainda que
de forma bastante limitada – a ter algum poder (ou pelo menos algum controle)
sobre os seus sistemas locais de saúde.
Em relação
à NOB-93, o percentual de adesão era superior a 60,0% em 1996. Este percentual,
no entanto, não era homogêneo para todo o país e respeita a heterogeneidade de
porte, organização e complexidade de municípios, sistemas e serviços de saúde,
ou seja, enquanto nas regiões Sudeste e Sul por volta de 70,0% dos municípios
estavam habilitados, nas regiões Centro-Oeste e Nordeste este percentual era
próximo a 50,0% e na região Norte não atingia 10,0% (Almeida, 1995).
O fato de a NOB-96 ter sido publicada em 11/96 e o processo de
habilitação pela mesma somente ter se
iniciado no início de 1998 é uma evidência da dificuldade de estados e
principalmente municípios cumprirem o que este instrumento prescrevia. Apesar
disto, em menos de 24 meses, 97,0% dos municípios brasileiros encontravam-se
habilitados a esta norma, a grande
maioria na Gestão Plena da Atenção Básica.
Ainda que
entre alguns poucos estados se observassem variações no percentual de
municípios habilitados, essas foram pequenas e os percentuais de municípios
habilitados sempre estiveram acima de 80,0%. Esta generalizada adesão à NOB-96
em todas as regiões do país, em princípio informa que a grande maioria dos
municípios preenchem os requisitos para a habilitação, minimamente à Gestão
Plena da Atenção Básica, mesmo face aos 10 requisitos necessários, que não
podem ser considerados simples para grande parte desses municípios.
Acredita-se, que muitos deles (entre os quais, os menores e mais carentes)
criaram as condições necessárias à habilitação motivados principalmente pela
possibilidade de repasse financeiro fundo a fundo e pela exigência normativa. A
grande maioria das habilitações deu-se até 1999, ampliando-se pouco até 2001,
ano em que os municípios em Gestão Plena do Sistema Municipal passam a
representar 10,14% das habilitações.
Salienta-se também, como
importante instrumento normativo, a Portaria 1882 (Brasil, 1997), editada no
final de 1997 e que modifica a NOB-96, introduzindo o Piso da Atenção Básica
(com suas frações fixa e variável), mudando a lógica de transferências de
recursos para a Atenção Básica, que deixa de ser por produção e passa a ser automática, fundo a fundo,
diretamente aos municípios, num mínimo de R$ 10,00 per capita/ano (PAB fixo) ou vinculada (PAB variável) à
adesão/implantação de programas prioritários definidos no nível federal (Negri,
2002).
Volume expressivo das
transferências a municípios, principalmente após 1998, foi resultado da
instituição do PAB, mas parte significativa dessas transferências foi
decorrente da habilitação de um número crescente de municípios à Gestão Plena
do Sistema, recebendo fundo a fundo recursos que anteriormente eram repassados
diretamente aos provedores, como “Pagamento por Produção de Serviços”.
O PAB acaba se caracterizando
também como um instrumento de redução das desigualdades, ainda que restrito às
transferências federais para a Atenção Básica. Alguns estudos têm mostrado
isso, salientando-se o de Machado, Fortes e Somarriba (2004). Analisando
municípios de Minas Gerais, os autores referem a elevação dos recursos para a
Atenção Básica, e a distribuição desigual desses recursos entre os municípios.
O PAB favoreceu municípios com menor capacidade de gasto e produção de
serviços, mas com maiores necessidades em saúde. Ao funcionar como fator de
estímulo para a reversão de uma situação que privilegiava municípios com maior
capacidade instalada e de gasto e ao mesmo tempo beneficiar os municípios com
maiores necessidades em saúde, as mudanças advindas com o PAB podem ser
consideradas pró-eqüidade.
Os maiores valores médios per capita transferidos para a Atenção
Básica, em 2001, foram para o Nordeste (23,9), o Norte (22,9) e o Centro-Oeste
(21,1), enquanto Sul (16,9) e Sudeste (15,6) receberam menos. As variações
observadas favoreceram mais Norte e Nordeste, sendo que, quando o incremento
foi alto para estados de outras regiões, tal magnitude foi decorrente dos
baixos valores repassados em 1997. Parte importante do incremento dos valores
transferidos para a Atenção Básica é relativa à ampliação do número de equipes do PSF e conseqüente aumento da
cobertura desse programa, evidenciada principalmente nos estados do Nordeste,
cuja média de cobertura, em 2003, chega quase a 50,0%.
No Estado de Mato Grosso,
16 municípios têm sido monitorizados desde 1998, retrospectivamente a partir de
1995. Além da capital foram contemplados municípios de distintos portes
(pequenos, médios e grandes), níveis sócio-sanitários e tempo de habilitação às
NOB (Scatena, 2000; 2004).
A análise dos gastos
efetuados com saúde, até 2002, revelou o aumento generalizado das três fontes
estudadas, de forma diferenciada segundo os distintos portes dos municípios.
O
incremento absoluto no valor gasto com internações acompanhou-se de elevação
muito maior dos outros dois componentes, destacando-se o importante incremento
no volume de recursos que os municípios alocaram em saúde, de seus próprios
orçamentos (Contrapartida Municipal) e também da expressiva elevação das
transferências federais para custeio da Assistência Ambulatorial,
principalmente após a instituição do Piso da Atenção Básica, em 1998.
Os
resultados observados apontam que até o momento, a descentralização
implementada após a edição da NOB-93 tem tido grande impacto (pelo menos em
termos de financiamento) sobre o conjunto dos municípios mato-grossenses, nos
quais a contrapartida financeira municipal quase triplicou, sendo responsável,
em 2002, por cerca de 60,0% do total de recursos gastos com saúde. Além disso, as transferências para a
Assistência Ambulatorial mais que dobrou nos municípios médios e grandes e
quadruplicou nos pequenos, enquanto as transferências para a Assistência
Hospitalar tiveram aumento médio de 70,0%. A descentralização, neste caso, vem
orientando condutas e promovendo desempenhos desiguais frente às distintas
realidades, o que vem ao encontro dos princípios que orientam a própria
descentralização.
Uma
análise mais detalhada do financiamento da saúde nestes municípios, no entanto,
oferece elementos que suscitam preocupações, uma vez que revelam a manutenção
de um modelo de atenção voltado para a assistência médica, individual,
curativa, com crescente incorporação tecnológica e dependência do setor
privado, mais evidente na capital e nos municípios maiores.
Institucionalmente,
principalmente no Ministério da Saúde, as desigualdades (e as iniqüidades) em
saúde têm merecido grande destaque nos últimos anos. No campo do conhecimento,
principalmente da epidemiologia, tal abordagem sempre esteve presente, posto
que a identificação de situações desigualdade e a sua determinação são objetos
da epidemiologia e elementos constitucionais de sua definição.
O Brasil é um país de
desigualdades, muitas delas aceitáveis e valorizadas, e que fazem dele o país
diverso e belo que admiramos. Mas é também o país desigual e iníquo que
gostaríamos de mudar, com ações diretas
ou com reprodução ou produção de conhecimento. Esse é o grande desafio que nos
é posto deste sempre, reduzir as desigualdades injustas: a aviltante
concentração de renda, as situações de miséria e fome, a dificuldade de acesso
a bens e serviços básicos, a exploração do trabalho adulto e infantil, as
condições desumanas de moradia, entre inúmeras outras mazelas nacionais.
Um dos retratos possíveis
da desigualdade no Brasil é representado pelo Índice de Desenvolvimento Humano,
indicador composto que congrega renda, escolaridade e expectativa de vida. A
apresentação cartográfica do Brasil, segundo o IDH dos municípios, mostra os
muitos brasis que ele comporta, salientando-se num extremo o Brasil gaúcho e
catarinense, e no outro, o Brasil amazônico e nordestino.
Com maiores e menores
variações, a desagregação desse indicador no interior dos municípios,
principalmente os metropolitanos e de maior porte, vai mostrar outras
micro-situações de desigualdade e iniqüidade, não detectadas quando o município
é a unidade de análise. Inúmeros trabalhos têm abordado os problemas de saúde
tendo os diferenciais espaciais como referência para a identificação de
desigualdades (Carvalho, Cruz &
Nobre, 1997; Freitas et al., 2000;
Drachler et al., 2003; Ishitani & França, 2000, Macedo et al. 2001;
Paes-Souza, 2002; Szwarcwald et al., 1999).
Recente
publicação da Secretaria de Vigilância em Saúde/MS (Brasil 2004) também
apresenta, no nível macro (regiões geográficas ou estados como unidades de
análise) uma série de indicadores que permitem evidenciar as desigualdades em
saúde ou nos determinantes e condicionantes do processo saúde-doença, ainda que
externos ao setor saúde. A publicação salienta as desigualdades na estrutura
demográfica, no saneamento básico, na disponibilidade de serviços de saúde e de
recursos humanos, nos riscos de adoecer e morrer. Um extenso conjunto de
indicadores que dá uma pequena amostra das desigualdades existentes entre as regiões
brasileiras, cujos determinantes, na maioria das vezes são indesejáveis,
injustos e muitas vezes evitáveis, caracterizando tais desigualdades como
iniqüidades.
O que queríamos mostrar nesta breve explanação era um panorama geral e não muito aprofundado acerca da descentralização da saúde no SUS, no Brasil (com algum detalhamento em Mato Grosso) e das desigualdades em saúde.
Será que o SUS vai conseguir diminuir essas desigualdades? Certamente não, posto que grande parte delas tem origem que transcende o setor saúde. Na base das desigualdades há uma estrutura e um sistema econômico e social, historicamente “construído”, cuja mudança é lenta e exige uma participação e um envolvimento do conjunto da sociedade que ainda são incipientes no país.
Obviamente houve um avanço enorme com o SUS, como evidenciaram muitos dos dados e indicadores apresentados. A descentralização foi um dos elementos que auxiliaram a viabilização dessas mudanças, embora conceitualmente se possa questionar se é de fato descentralização o que vem sendo implementado.
Ainda que o SUS ofereça um quadro de grandes possibilidades, pontos frágeis têm sido levantados por muitos autores e necessitam ser equacionados, alguns deles aqui expostos, no sentido de socialização e orientação do debate:
- A necessidade
de incorporar (ou ampliar) iniciativas de intersetorialidade;
- Ampliação das
formas de gestão mais avançadas, que têm propiciado maior aprendizado
institucional;
- Enfrentamento
de vários dilemas, salientando-se entre eles: universalização X focalização;
integralidade X universalidade;
- Ampliação da
base financeira de sustentação do Sistema;
- Cumprimento,
em todos os níveis, dos princípios da descentralização, principalmente a
flexibilidade, a transparência no processo decisório e o controle social;
- Respeito à
Emenda Constitucional 29/2000 e fiscalização do seu cumprimento.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |