EXPANSÃO E DIVERSIFICAÇÃO DOS ESPAÇOS MINERADORES E AGROPECUÁRIOS NO ÚLTIMO QUARTEL DO SÉCULO XVIII.

 

João Pinto Furtado

(Departamento de História/ UFMG)

 

Profundamente marcada pela atividade mineratória que, embora não sendo atividade econômica exclusiva, foi um dos principais conformadores da estrutura sócio-econômica regional, a região central do país, sobretudo o trecho que se estende das Capitanias de Minas Gerais a Mato Grosso, passando por Goiás, passou a ocupar, crescentemente, lugar central nas articulações político-econômicas do mundo luso-brasileiro setecentista. Tendo atraído grandes contingentes populacionais, aventureiros de várias partes do reino e também de outras partes da própria América Portuguesa, as capitanias citadas tiveram que se adaptar, através de rápido processo de diferenciação sócio-econômica, para receber e abrigar um grande volume de recém-chegados.

 

Nas primeiras décadas do século XVIII, é exemplar o caso das Minas Gerais, que passaram por um processo de urbanização considerável e, possivelmente, sem par na história da colonização portuguesa até então conhecida. Um ambiente assim constituído seguramente não era dos mais pacíficos e ordeiros do ponto de vista político. Considerando os depoimentos contemporâneos, poder-se-ia inferir que o cenário dominante nas capitanias do ouro era de um permanente confronto dos novos habitantes – desejosos de enriquecer rapidamente e, portanto, tentando fugir a ação limitadora (e arrecadadora) do Estado – com as autoridades designadas para controlar o território, estas últimas prontas a se utilizar dos instrumentos de poder que a coroa lhes conferira.

 

O trabalho procura examinar algumas destas tensões à luz de exemplos de agentes econômicos que pareceram migrar em direção ao “sertão”, espaço que na definição setecentista significa exatamente a ausência ou impossibilidade de instalação do estado, criando, no mínimo, novas aglomerações humanas que se tornariam, posteriormente, vilas e cidades expressivas e importantes. No plano da historiografia, a economia mineira vinha sendo, do século XIX até praticamente os anos 70 do século XX, pensada quase que exclusivamente sob o signo da mineração, que tudo explicava, desde as revoltas antifiscais do início do século XVIII, até o confronto final expresso no projeto “libertário” e “nacionalista” dos Inconfidentes de 1789.

 

Tomando como referência inicial o trabalho de Kenneth Maxwell (1973), diríamos que o quadro delineado no plano da historiografia contemporânea recente é bastante diverso e aponta para outras possibilidades de rediscussão do tema das sedições mineiras do XVIII. À luz das novas tendências da historiografia econômica de Minas Gerais e a par de maior volume de informações e evidências sobre como se dão e se realizam as atividades de produção, administração, comércio e abastecimento nas Minas é possível identificar quais seriam, em fins do século XVIII, as principais tendências econômicas da região, os principais eixos de articulação das atividades produtivas e de circulação e serviços em suas ligações com as estratégias e práticas de divulgação do levante final.

 

Diferentes inserções no contexto econômico das Minas geraram diferentes percepções da viabilidade e diferentes concepções sobre a natureza dos levantes, bem como sobre seus desdobramentos possíveis. A premissa da qual partimos é a de que as diferenças de concepções econômicas e desacordos estratégicos entre os inconfidentes de 1789, por exemplo, são um dos elementos centrais do enfraquecimento e fracasso do movimento e estavam referidas ao processo de diferenciação econômica regional que, desde as décadas de 1750 e 1760, as Minas experimentavam, o que acabou resultando em projetos de “inconfidência” relativamente irreconciliáveis. Ainda tomando como referência os rebeldes de 1789, é possível afirmar que o que, às vezes, poderia parecer um confronto irreconciliável de opiniões e de “posições de classe antagônicas”, na Inconfidência Mineira é, na verdade, um fato concreto e relativamente inteligível a partir do exame do contexto de transição entre, de um lado, uma sociedade marcada pelo conteúdo estamental, mas já introduzindo alguns valores típicos de uma sociedade de classes e, de outro, uma região que experimentava acentuado processo de diferenciação regional. É nesse sentido que deveríamos melhor compreender todo o processo de diversificação produtiva e o deslocamento do eixo econômico que se verificou nas Minas a partir do segundo quartel do século XVIII como um dos componentes centrais explicativos do sentido e objetivos do levante que se projetava, bem como das razões de sua fragilidade e dissensões internas.

 

No que diz respeito à estruturação do sistema produtivo em Minas Gerais, autores como Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Virgílio Noya Pinto, Fernando Antônio Novais e Jacob Gorender entre outros já haviam insistido, seja em trabalhos de natureza ensaística ou grandes sínteses teóricas, na existência de um certo grau de especialização produtiva no contexto das Minas Gerais durante todo o período em que a região esteve em destaque no contexto da economia colonial. Também esse é o caso de Waldemar de Almeida Barbosa que, em estudo pioneiro, já havia apontado importantes tendências de ocupação populacional nas comarcas do Rio das Velhas e Rio das Mortes sem, no entanto, atribuir-lhes o devido impacto no conjunto da economia mineira setecentista.

 

Após descrever vários casos de homens, escravos e famílias que se deslocavam, pelo menos desde 1742, em direção a outras zonas da capitania, sempre em busca de terras férteis para cultura, o autor alerta: “Não se pense, porém, que a fuga da mineração para a lavoura e a criação tenha sido da massa, do povo; não. A maioria teimava em manter a esperança no ouro. Eram famílias isoladas ou pequenos grupos que iam tentar nova experiência. Mesmo porque, os que o faziam, arcavam com dificuldades de toda espécie, com a má vontade do Governo, com a mentalidade reinante de que constituía uma espécie de traição ao estado retirar escravos da mineração.” O autor parece acertar parte do diagnóstico no que se refere à identificação de uma tendência de movimento populacional efetivamente existente no sentido de ocupação das áreas de lavoura e pecuária. Erra, no entanto, precisamente na quantificação, ao dizer que era ínfimo, coisa de “famílias isoladas” o volume de deslocamentos, e na interpretação dos dados que encontra, ao identificar apenas esforços individuais de deslocamento.

 

As tendências de que nos ocupamos não tratam, segundo nosso entendimento, de uma “fuga da mineração” que mantenha o núcleo minerador como eixo organizador de toda a vida econômica da capitania. Há um efetivo deslocamento dos eixos de vitalidade e crescimento econômicos. É largamente perceptível um movimento demográfico (e financeiro) partindo das regiões de mineração, predominantemente situadas na Comarca de Vila Rica, em direção às terras agricultáveis e pastoris, as quais encontravam melhores condições de implantação e crescimento na Comarca do Rio das Mortes e na região mais a oeste, futura Comarca do Paracatu, em direção a Goiás.

 

Também Kenneth Maxwell alude ao mesmo problema avançando, em nossa perspectiva, um pouco mais no que respeita à avaliação das tendências econômicas da capitania. Escreve o autor em 1973: “A mudança da população para o sul indicava profunda alteração das funções e da economia de Minas Gerais, após a década de 1760. O declínio de Vila Rica e ascensão do sul refletiam a queda do papel dominante da mineração e a crescente importância das atividades agrícolas e pastoris. A mudança era gradual e a transformação de uma economia predominantemente mineira em uma de supremacia agrícola não significava que qualquer uma delas, a primeira ou a última, jamais tivesse sido excludente em relação a outra. Em verdade, o próprio processo de mudança, especialmente no decênio de 1780, tinha gerado notável diversificação da economia regional e, embora isto pudesse não ser um fenômeno persistente, durante o último quartel do século XVIII, tinha grande importância”.

 

Em primeiro lugar, é conveniente destacar que o fenômeno do deslocamento em direção ao sul e a redefinição da posição central ocupada pelas atividades agropecuárias era persistente, de fato, e foi um dos principais responsáveis pela configuração do espaço político e econômico das Minas o que se refletiria, ainda no século XIX, na posição de destaque ocupada por seus moradores na política e economia nacionais. Alem disso, interesses econômicos fortemente enraizados em diferentes setores da economia e de diferentes comarcas geraram diferenciadas percepções e intensidades de envolvimento na Inconfidência pelos diversos protagonistas.

 

O horizonte de “radicalismo político” dos moradores da Comarca do Rio das Mortes era diferente dos da Comarca de Vila Rica e, mais importante, fortemente calcado na prosperidade advinda de uma nova inserção no cenário econômico regional em relação ao qual a política do ministro Martinho de Melo e Castro, Secretário de Negócios Ultramarinos que dava o tom às relações metrópole/colônia após Pombal, era especialmente danosa. Embora, já nos anos 50 e 60, autores como Mafalda Zemella e Sérgio Buarque de Holanda nos alertassem quanto às transformações por que passaria a economia mineira na segunda metade do século XVIII, foi a partir dos anos 80 que se consolidou toda uma gama de trabalhos que demonstram a existência de forte diversidade na economia mineira do século XVIII.

 

Alguns destes trabalhos, que se propõem a estudar a região mineradora sob os mais diversos aspectos, apresentam ainda a idéia de que, assim como há diversificação e crescimento, há também limites quanto à natureza do crescimento econômico das Minas, os quais se impõem também aos seus moradores, sobretudo no que diz respeito às possibilidades de ação autônoma e mobilidade social. Por outro lado, o desenvolvimento de produção local de gêneros alimentícios, como sugerem análises recentes, contribuiu para diminuir consideravelmente os preços de alguns itens. Hábitos alimentares como o consumo de macacos ou formigas denotam sensível influência de costumes extrativistas herdados às comunidades indígenas autóctones. Vão se tornando, no entanto, menos freqüentes com o avançar do século XVIII, na proporção direta em que a economia e a sociedade mineiras se tornam mais complexas e consolidam, no plano das práticas alimentares e de sociabilidade, seu processo produtivo e civilizatório.

 

Nesse sentido, diria que o movimento de diversificação econômica e consolidação de algumas áreas agrícolas contíguas às Minas, embora insuficiente nos primeiros anos, já é perceptível nas primeiras décadas do século XVIII e nos dá preciosas pistas do processo de diferenciação econômica que as Minas continuariam experimentando até o final do século. Ao mesmo tempo, é preciso continuar pesquisando a possibilidade de identificação, já no século XVIII, de um processo sensível de diferenciação regional no interior da capitania, no sentido da consolidação de uma economia agropecuária relativamente auto-suficiente, como importante condicionante do movimento de que nos ocupamos.

 

De fato, não obstante o reconhecimento da aridez dos terrenos contíguos às Minas, podemos perceber que os próprios inconfidentes que possuíam terras de lavoura, conforme demonstra a análise do volume 6 dos ADIM, referente aos Autos de Seqüestro, diversificaram em muito suas atividades, sendo raros os que não se dedicavam, em algum grau, à exploração de suas fazendas. A partir da avaliação da estrutura de posses de cada inconfidente, situado em relação às suas respectivas comarcas de moradia e atividade econômica principal, pode-se afirmar a tese da profunda heterogeneidade, em termos econômicos, dos inconfidentes mineiros de 1789.

 

Embora a historiografia de referência sempre tenha destacado que entre os inconfidentes mineiros de 1789 estavam alguns dos homens mais ricos e poderosos da capitania, a questão não é simples e não pode ser tão facilmente resolvida, bastando lembrar o fato de que numa sociedade híbrida, como a mineira do fim do setecentos, prestígio e riqueza nem sempre estão estreitamente associados.

 

Precisamos tentar, para melhor identificar a viabilidade e natureza do levante, compreender quem eram, dentre os inconfidentes de 1789, os agentes e controladores de algumas das variáveis da economia mineira, bem como a que tipo de interesses poderiam estar associados. Nesse sentido, para melhor compreender o contexto em que se insere o movimento é preciso definir que tipo de expectativas econômicas e políticas poderiam advir de diferentes inserções dos agentes da Inconfidência no cenário produtivo das Minas. Ainda, em relação aos ocupantes de posições de poder no interior da administração portuguesa, é preciso apontar quais são suas estratégias de inserção política e seu real interesse em uma suposta ruptura com a coroa portuguesa, empresa que no momento se inicia como das mais promissoras para a historiografia.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004