POLÍTICAS
DE APOIO A PEQUENAS EMPRESAS:
DO LEITO
DE PROCUSTO À PROMOÇÃO DE SISTEMAS PRODUTIVOS LOCAIS[1]
Helena
M.M. Lastres[2]
Ana Arroio[3]
Cristina Lemos[4]
Conta
a mitologia que o salteador Procusto,
após convidar os viajantes que percorriam os caminhos da antiga Grécia a passar
a noite em sua casa, seduzia-os com uma recepção calorosa. Depois de vencidas
pelo cansaço, ele obrigava suas vítimas a deitarem-se num leito de ferro e cortava-lhes os pés, quando ultrapassavam o tamanho deste, e
estirava-os com cordas quando não lhe alcançavam o tamanho. Seu objetivo é que
ficassem na medida exata de seu leito. Procusto teve
o mesmo fim de suas vítimas: seus pés foram cortados por Teseu.
Na virada do milênio renovou-se a atenção às contribuições que as
pequenas empresas podem dar ao desenvolvimento econômico e social em diferentes
países. Como decorrência, igualmente ampliou-se, no mundo inteiro, o interesse
em modernizar e dinamizar as políticas para sua promoção. De fato, várias
oportunidades têm sido aproveitadas pelas políticas de mobilização de micro e
pequenas empresas (MPEs). Grande parte destas
exploram as sinergias que usualmente existe entre o desenvolvimento de novas
formas de inovar, produzir e comercializar novos bens e serviços e o surgimento
de novas empresas.
A prioridade conferida ao apoio a
pequenas empresas, nos anos 1990, reflete-se no status adquirido por elas nas ações prioritárias de países e blocos
de países. Observa-se uma nítida tendência no sentido de que essas políticas
façam parte do escopo das atividades permanentes dos governos, conformando
novos desenhos institucionais com importante inserção na estrutura hierárquica,
por meio da criação de órgãos específicos, desde secretarias até ministérios a
conselhos interministeriais superiores.
No entanto, ainda são
consideráveis os desafios colocados tanto à sobrevivência e ao desenvolvimento
dessas pequenas empresas, quanto às políticas para sua promoção. Daí a
importância de reconhecer e tratar desses desafios, os quais incluem desde o
fato de as MPEs serem numerosas, heterogêneas e
dispersas demais, até a falta de conceitos e indicadores que captem a realidade
destas empresas.
Mais que isso, as análises sobre
as políticas de promoção de MPEs destacam que, apesar
do significativo aparato institucional de apoio, importantes desafios são
associados a:
·
problemas de sobrevivência e crescimento, advindos da política e contexto macroeconômico brasileiro (como as
altas taxas de juros e as dificuldades de crédito);
·
a ausência de política de desenvolvimento coordenada
e de longo prazo;
·
o quadro regulatório pouco
adequado às necessidades das empresas de pequeno porte e algumas vezes até
desfavorável por dar tratamento igual a desiguais.
Aponta-se, portanto, e
apesar do significativo aparato institucional de promoção às
MPEs, para a cristalização de um quadro de
inadequações, superposição e descoordenação de ações,
as quais geralmente são indiscriminadas e não têm continuidade. Outro
importante problema é que algumas políticas de apoio às
MPEs já partem do princípio de que estas empresas não
têm e nunca terão viabilidade econômica e, assim, circunscrevem-se dentro de
ações muitas vezes caracterizadas como assistencialistas, cujos resultados não
têm sustentabilidade.
Alguns destes aspectos são
constatados tanto no caso das análises das políticas adotadas no Brasil, quanto
em outros países. Estes desafios refletem, ao mesmo tempo em que reforçam, o círculo vicioso dos reduzidos poder político e
contribuição econômica das empresas de menor porte, o qual associa-se à
predominância de um paradigma de
pensamento segundo o qual apenas grande estruturas podem ser competitivas no
atual estágio do capitalismo.
Acima de tudo, destaca-se que o aparato e os sistemas
de regulação, fomento e financiamento existentes baseiam-se geralmente em
modelos estruturados para o atendimento a empresas de maior porte e muito
dinâmicas. Evidentemente esta prática não alcança a eficácia necessária. Por
maiores esforços que sejam realizados, a dificuldade de adaptação das pequenas
empresas aos modelos vigentes é notável e expressiva.
Chama-se, portanto, a
atenção para a óbvia necessidade de se investir em soluções especificamente
voltadas para as pequenas empresas. Mostra-se necessário avançar no sentido de
superar a Síndrome do Leito de Procusto e de
modificar a cultura no ambiente de formulação e operação das políticas, visando
alterar efetivamente o paradigma de fomento e financiamento de forma a
adequá-lo ao perfil das MPEs e não ao contrário. Isto
ocasionará importantes mudanças.
Por um lado, por revelar e
possibilitar aferir os reais desajustes das novas políticas traçadas
especificamente para empresas de porte reduzido, o que é fundamental para seu
aperfeiçoamento. Por outro lado, no sentido de parar de culpar (e punir) as MPEs por não apresentarem condições propícias para uso das
políticas e instrumentos de promoção que foram desenhadas para outros padrões.
Equivocadas certamente não são as especificidades dessas empresas, mas sim as
ações e instrumentos que não conseguem dar conta das mesmas. Mesmo que se
reconheçam as inúmeras vantagens (para os policy-makers) de formular e
implementar modelos únicos de políticas não se pode ignorar as restrições de
tais tentativas, tendo em vista a diversidade e heterogeneidade dos casos nos
diferentes espaços (mesmo dentro de um país) e ao longo do tempo. Este caso
inclui, por exemplos, aquelas políticas que emulam “melhores práticas” e que
tiveram uma grande difusão nos anos 1980s e 1990s no mundo inteiro, até porque
propostas por agências internacionais.
No entanto, é
reconhecidamente muito difícil desenhar políticas adequadas para cada caso. No
caso das MPEs, o grau de dificuldade aumenta devido
ao grande número e heterogeneidade das mesmas. No entanto, evidentemente que a
política de promoção de MPEs que funcionou bem, por
exemplo, na região norte do país dificilmente funcionará bem no sul ou no
centro-oeste. E possivelmente o que podia ser considerado melhor prática na
própria região num determinado período de tempo, poderá deixar de sê-lo anos
depois.
Mostra-se, portanto, fundamental
identificar as características e necessidades específicas das MPEs e desenhar políticas capazes de mobilizar seu
surgimento, garantindo sua sobrevivência e sustentabilidade.
Isto nos remete ao argumento sobre as vantagens de implementar políticas
sistêmicas, que focalizam conjuntos de agentes produtivos e o ambiente
econômico-social em que se inserem. Neste
sentido, notamos que as tentativas de fazer das pequenas empresas um ator coletivo, capaz de preencher o leito moldado para grandes
empresas, constituem apenas uma das razões que justificam o apoio por
parte de países e agências internacionais no mundo inteiro a arranjos
produtivos e outros blocos agregados de produção. As vantagens vão além das
chamadas economias de escala tendo em vista as oportunidades de aproveitamento
de outras importantes sinergias.
As novas políticas de promoção de
desenvolvimento tecnológico e industrial partem do reconhecimento de que a
aglomeração de empresas e o aproveitamento das vantagens coletivas geradas por
suas interações, e destas com o ambiente onde se localizam, vêm efetivamente
fortalecendo suas chances de sobrevivência e crescimento. Os diferentes
contextos, sistemas cognitivos e regulatórios e
formas de articulação e de aprendizado interativo entre agentes são
reconhecidos como fundamentais na geração, aquisição e difusão de conhecimentos
e particularmente aqueles tácitos. Assim é que entendemos que os processos de
aprendizagem coletiva, cooperação e dinâmica inovativa
desses conjuntos de empresas tenham passado a assumir importância ainda mais
fundamental para o enfrentamento dos novos desafios colocados
pelo novo padrão de acumulação crescentemente financeirizado
e globalizado, onde o conhecimento coloca-se como principal recurso e o
aprendizado como principal processo.
No caso brasileiro são
várias as oportunidades da implementação de políticas de promoção de arranjos e
sistemas produtivos e inovativos locais (ASPILs) reunindo MPEs.
Destaca-se, em primeiro lugar, a necessidade de buscar novos caminhos para o
desenvolvimento e reposicionamento do país no cenário
internacional. Neste sentido, coloca-se a importância de orientar a
reconstrução da estrutura produtiva brasileira em novas bases, possibilitando
uma mais ampla articulação de interesses e prioridades nacionais, regionais e
locais, assim como potencializando:
·
as sinergias positivas de mobilizar agentes
produtivos e demais parceiros;
·
as condições de sobrevivência, dinamismo,
competitividade e inovatividade das MPEs, base dessa reconstrução;
·
o uso e a difusão das novas tecnologias, equipamentos
e sistemas, logística e formatos organizacionais;
·
o aproveitamento, mobilização e irradiação de
potencialidades e sinergias locais e nacionais – como seus próprios mercados
consumidores - contribuindo inclusive para a diminuição das desigualdades
sociais e regionais;
·
as soluções a problemas tais como: inserção de
segmentos sociais excluídos; melhoria das condições de alimentação, saúde,
educação e habitação visando inclusive a superação das
desigualdades sociais e regionais; desequilíbrio do Balanço de Pagamentos;
crise energética; etc..
Apontamos
também para as oportunidades relacionadas à
tendência à descentralização das políticas e à urgência em desenvolver novas
políticas industrial e de C&T, que promovam o
desenvolvimento dinâmico e sustentado das estruturas produtivas.
Ressaltamos,
no entanto, que o enfoque em APL não deve ser visto em si como prioridade de
política, mas sim como um formato que potencializa as ações de promoção por
focalizar conjuntos de atores e seus ambientes, assim como suas
especificidades e requerimentos. Isto
remete à necessidade de analisar experiências específicas para conhecer em
detalhe as reais limitações e oportunidades apresentadas pelos diferentes APLs brasileiros e suas MPEs,
visando definir formas de atuar sobre tais realidades, o que por si só
constitui significativo esforço que requer continuidade e atualizações
constantes.
Ao mesmo tempo em que
destacamos a necessidade de mobilizar atores locais na sua definição e
implementação, salientamos que
as políticas de promoção de APL não devem ser implementadas de forma isolada. A
articulação e coordenação das políticas em nível local, regional, nacional e
até supranacional mostra-se fundamental para o seu sucesso.
Finalmente, enfatizamos a importância de formular
alternativas à preponderância do padrão de acumulação que privilegia grandes
capitais e estruturas; de aproveitar o ambiente de reestruturação produtiva e
de oportunidades para o crescimento de pequenas empresas; de superar o quadro
de inadequações e descoordenação das políticas de
promoção das empresas de porte reduzido. Neste sentido é que destacamos as
vantagens de reconhecer e escapar de armadilhas como a que usou e foi vítima Procusto; assim como de avançar no desenho de programas de
promoção e financiamento adequados às necessidades das MPEs,
visando permitir que estas venham a desempenhar um papel decisivo no
desenvolvimento do Brasil e suas diferentes regiões.
[1] Este trabalho baseia-se na nota técnica: Principais focos das políticas para promoção de MPMEs, elaborada pelas autoras, disponibilizada em www.ie.ufrj.br/redesist. e publicada em “Pequena empresa: cooperação e desenvolvimento local”, Helena M.M. Lastres, José E. Cassiolato e Maria Lúcia Maciel (orgs), Rio de Janeiro, Relume Dumará Editora, 2003.
[2] Ph.D. em Desenvolvimento, Industrialização e Política Científica e Tecnológica, Universidade de Sussex, (Inglaterra, 1992). hlastres@ie.ufrj.br
[3] Ph.D. em Desenvolvimento, Industrialização e Política Científica e Tecnológica, Universidade de Sussex, (Inglaterra, 2000). aarroio@hotmail.com
[4] D.Sc. em Inovação Tecnológica e Organização Industrial, Programa de Engenharia de Produção, Coppe (UFRJ, 2003) cristina@int.gov.br
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