COOPERAÇÃO
UNIVERSIDADE/INDÚSTRIA/GOVERNO PARA O
CONTROLE AMBIENTAL EM PEQUENAS E MÉDIAS INDÚSTRIAS
(relato
de uma experiência)
Prof. Gilberto Caldeira Bandeira de Melo
Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFMG
Este
trabalho apresenta e discute os resultados do “Projeto
Minas Ambiente”, uma experiência de nove anos de pesquisas, desenvolvimento
tecnológico, e ação interinstitucional, voltadas para o controle ambiental em
pequenas e médias indústrias. O projeto foi coordenado pelo
Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental (DESA/UFMG), com o apoio da
Cooperação Técnica Brasil/Alemanha, por meio da Agência Brasileira de
Cooperação (ABC) e da Sociedade Alemã de Cooperação Técnica (GTZ).
O
projeto foi desenvolvido entre 1993 e 2002, e pode ser dividido em três fases
distintas. Na primeira fase (1993-1995), ele teve como finalidade principal o
fortalecimento institucional do DESA, promovendo uma melhoria da infraestrutura
e capacitação. Na mesma fase, foram iniciadas as parcerias com instituições ligadas
ao setor produtivo, particularmente a Federação das Indústrias de Minas Gerais
(FIEMG), e agências governamentais, como a Fundação Estadual do Meio Ambiente
(FEAM). Desta parceria, surgiram os primeiros trabalhos de pesquisa e
transferência tecnológica para setores industriais considerados problemáticos
no que se refere ao controle ambiental. A primeira experiência foi voltada para
o setor de curtumes, onde plantas em escala piloto e de campo foram utilizadas
para demonstrar a tratabilidade dos efluentes
líquidos dessas indústrias por processos não-convencionais.
Na
sua segunda fase (1996-2000), o Projeto consolidou-se como uma ação
interinstitucional, com o envolvimento direto de um grupo de instituições
parceiras na condição de co-executoras, a saber: Departamentos de Engenharia
Metalúrgica e de Materiais (DEMET/UFMG), Departamento de Engenharia de Minas
(DEMIN/UFMG), Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEAM, Fundação Centro
Tecnológico de Minas Gerais – CETEC, Centro de Desenvolvimento da Tecnologia
Nuclear – CDTN, Federação das Indústrias de Minas Gerais – FIEMG, Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE. As ações foram
voltadas a prevenção e controle da poluição em
indústrias de setores selecionados: ferro-gusa, laticínios, galvanoplastia,
têxtil (tinturaria de malhas) e mineração do quartzito São Tomé.
Já
a última fase (2001-2002) foi desenvolvida em caráter de “follow
up” da anterior, sendo implementadas ações
complementares de teste em escala demonstrativa e repasse de tecnologia para as
empresas participantes do projeto. Ao todo, mais de 300 indústrias de pequeno e
médio porte estiveram envolvidas diretamente, e constituíram o público-alvo de
todas as ações adotadas.
O
setor de produção de ferro-gusa a carvão vegetal vem experimentando uma fase de
forte expansão em Minas Gerais nos últimos anos, devido às condições favoráveis
ligadas à exportação. Por outro lado, o fato de ser uma alternativa baseada no
uso de recurso natural renovável (biomassa a partir do reflorestamento), com
vantagens em relação a menores emissões líquidas de CO2 do que o
processo convencional a carvão mineral, tem dado um apelo ainda mais forte à
manutenção estratégica desse setor. Mas a situação dele em relação ao
cumprimento da legislação ambiental foi sempre conflituosa. Por um lado, a
insuficiência na base florestal cultivada para atender a demanda que o setor
tem pelo carvão vegetal, a tecnologia ainda pouco desenvolvida na carbonização
da madeira, como também a precária evolução das tecnologias e práticas adotadas
para o controle ambiental no setor industrial, tornaram
esse setor um dos principais responsáveis por degradação da qualidade ambiental
em extensas regiões de Minas Gerais.
O
Projeto Minas Ambiente desenvolveu ações apenas para o setor industrial,
deixando intencionalmente de interferir nos intricados problemas da área
florestal. Por meio de estudos e pesquisas demonstrativas, o projeto
desenvolveu e propôs alternativas para controle das
emissões atmosféricas, efluentes líquidos e resíduos sólidos gerados no
processo industrial. Com base nos resultados do projeto, todas as principais
empresas do setor estão sendo licenciadas pelo órgão ambiental.
Mas
o projeto serviu não apenas como base para o licenciamento ambiental do ponto
de vista da aplicação tecnológica, mas também ele teve o papel de servir de
fórum para formulação de uma nova estratégia de controle ambiental do setor,
resultando numa nova regulamentação ambiental aprovada pelo Conselho Estadual
de Política Ambiental (COPAM). Com base nessa regulamentação, houve uma revisão
das exigências relativas ao controle de emissões atmosféricas, prevendo a
possibilidade de flexibilização de emissões de particulados em um dado
equipamento, desde que as emissões totais de partículas da indústria sejam mantidas
dentro de limites definidos, e que a qualidade do ar nas áreas de influência
das indústrias seja mantida em níveis adequados, conforme demonstrado por meio
do monitoramento. Para os efluentes líquidos a tecnologia de tratamento é
convencional, mas para os grandes volumes de resíduos sólidos
gerados (finos, lamas, escória, dentre outros), várias alternativas
foram testadas e propostas, algumas delas já aceitas e praticadas, outras em
fase de avaliação.
No
setor de laticínios, a carência ambiental residia menos na inexistência de
tecnologias adequadas, e mais no fato de ser um setor muito numeroso e espacialmente
disperso, na maior parte de pequeno porte, com dificuldades econômicas para implantação
de soluções individuais de alto custo relativo. O projeto envolveu diretamente
mais de 140 indústrias do setor, que dele participaram, e em função disso
receberam um tratamento especial por parte do órgão ambiental estadual, com
concessão de prazos vinculados ao projeto. A pesquisa foi especialmente
dedicada à busca de soluções alternativas para o tratamento de efluentes
líquidos. Uma estação demonstrativa foi construída, com a opção de tratamento
biológico em filtro anaeróbio de fluxo ascendente, uma alternativa de menor
custo de implantação e operação em relação aos processos convencionais, porém
com eficiência insuficiente para cumprir os limites da legislação. Três
alternativas de pós-tratamento foram avaliadas (filtro aeróbio, biofiltro aerado submerso, e
aplicação no solo). Após testadas as tecnologias,
todas as empresas participantes elaboraram os seus projetos individuais de
tratamento – muitas delas usando as tecnologias preconizadas, mas muitas usando
tecnologias convencionais, e estão sendo licenciadas pelo órgão ambiental.
Medidas preventivas para reduzir a geração de efluentes, como por exemplo o uso
do soro resultante na produção do queijo sem que ele seja lançado nos
efluentes, a racionalização do uso de água e produtos
químicos, e o gerenciamento de resíduos sólidos, foram também adotadas
pelas indústrias sob a orientação do projeto.
O
enquadramento das indústrias de tinturaria de malhas na legislação ambiental
encontrava-se bastante conflituoso, antes da existência do projeto, devido especialmente
à dificuldade que elas tinham para alcançarem o limite estabelecido pela
legislação para o parâmetro Demanda Química de Oxigênio (DQO), que mede o teor
total de matéria orgânica (biodegradável e não-biodegradável) no efluente
líquido final. A indústria utiliza, via de regra, produtos químicos corantes de
difícil degradação biológica, e as estações de tratamento de efluentes com base
biológica não são capazes de reduzir a contento aquele parâmetro ao nível
exigido em Minas Gerais, que é bastante restritivo. Um experimento piloto em
reator do tipo batelada, revelou que apenas com o uso de tecnologias avançadas
de pós-tratamento (oxidação por reagente de fentom),
seria possível atingir os limites legais, porém com custo elevado. A partir de
discussão mediada pelo Projeto, também para este setor foi formulada uma
deliberação do COPAM, com flexibilização do parâmetro. Com base nesta
alteração, as 20 empresas que participaram do projeto estão agora implantando
suas ETEs, e em licenciamento, mediante o monitoramento
das condições de toxicidade dos corpos d’água por elas impactados.
No licenciamento, além dos efluentes líquidos, foram introduzidas medidas
preventivas e corretivas para os demais impactos ambientais sobre solo e
atmosfera. Além disso, uma linha de pesquisa está em andamento na pós-graduação
em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos da UFMG, com vários projetos
voltados para o desenvolvimento e aplicação de alterações tecnológicas para uma
produção mais limpa nesse ramo industrial.
O
Município de São Thomé das Letras vivencia nos últimos tempos um nível de
tensão crescente entre a sua vocação turística, caracterizada pela exuberância
de suas condições naturais, por um lado, e pela mineração do Quartzito São
Tomé, uma atividade que vem impactando de forma marcante
a paisagem local e regional. A atividade minerária,
que evoluiu de uma situação de informalidade, cresceu vertiginosamente, para
atender o mercado doméstico e de exportação com um produto de uso na construção
civil de características singulares. A falta de planejamento dessas atividades,
e a deficiência técnica da maioria das empresas que a praticam, levaram o
projeto a propor e desenvolver várias atividades de pesquisa e desenvolvimento,
a saber: técnicas de extração e processamento do minério menos agressivas, com
substituição do uso intensivo de explosivos, busca e demonstração de
alternativas de uso industrial e na construção civil dos grandes volumes de
rejeitos gerados, técnicas mais apropriadas de disposição dos rejeitos no
ambiente, e a recomposição vegetal das áreas impactadas.
Com base nessas atividades, foi aberta uma perspectiva de licenciamento
ambiental das empresas, com uma mediação para que essa atividade possa
subsistir sem gerar conflito irreparável com os legítimos interesses preservacionistas.
O
Projeto Minas Ambiente foi uma ação desenvolvida com um claro horizonte de
encerramento, isto é, como uma alavanca para que a cooperação entre a universidade
e órgãos de pesquisa, órgãos governamentais ambientais, e o
setor industrial, pudessem ser estabelecidas e, após o encerramento,
prosperassem por conta própria. Nesse sentido, o projeto pode ser considerado
bem sucedido. Primeiramente, pelos resultados alcançados durante a sua
existência, que se materializaram de várias formas. Para a gestão ambiental
pública, o projeto permitiu a mediação para possibilitar o licenciamento
ambiental corretivo de mais de 300 pequenas e médias indústrias dos setores selecionados,
com enorme melhoria da qualidade ambiental decorrente da implantação
dos sistemas de controle de efluentes, emissões e resíduos. Do ponto de
vista tecnológico para o setor produtivo, também, houve um grande aporte de
melhorias para uma produção mais limpa, com medidas preventivas que resultaram
não apenas em evitar a geração de poluentes, mas também na economia de insumos
e matérias-primas, obtenção de sub-produtos, com
ganhos econômicos associados. Do ponto de vista acadêmico, o Projeto resultou
em dezenas de publicações técnicas e científicas, promoção de eventos nacionais
e internacionais, e edição de uma série de quatro livros técnicos, um para cada
setor trabalhado.
Mas
há também que se registrar que nem sempre a parceria se deu em convivência
harmônica. A manutenção da organicidade do projeto
foi possível graças a uma boa forma de planejamento, e execução participativa,
o que acabou gerando um ambiente de mediação e solução de conflitos.
Entretanto, o projeto também acabou sendo usado e visto por alguns setores com
certa desconfiança. Por exemplo, as empresas e profissionais de projeto e
consultoria ambiental, que não tiveram um espaço permanente nas atividades de
pesquisa e desenvolvimento, acabaram recebendo com certo ceticismo muitas das
soluções propostas, e relutam em aplicá-las. Por outro lado, muitas das
indústrias que se aproximaram do projeto viram nele apenas, ou principalmente,
um meio de ganhar tempo e conseguir benesses no seu processo de enquadramento à
legislação ambiental, e no momento em que foram chamadas a implementarem os
investimentos ambientais, permaneceram inertes, buscando novos subterfúgios
para postergarem os compromissos assumidos. No caso do setor de galvanoplastia,
por exemplo, que foi trabalhado pelo projeto de 1996 a 1998,
o índice de informalidade e desorganização das indústrias era tão grande,
que não foi possível prosseguir, por falta de interlocutores capazes de mesmo
abrirem suas atividades, seja a uma visita técnica, seja a um gesto de cooperação.
Mas
os ganhos superaram de muito os óbices. A começar pela ação setorial, por parte
do órgão de controle ambiental, que passou a ser uma regra desde então, sendo
adotado para outros setores. O licenciamento ambiental setorial é de longe a
forma mais justa de atuação governamental, pois evita que diferentes unidades
do mesmo segmento da economia sejam expostas a diferentes níveis de exigência
para com o controle ambiental, gerando distorções na competitividade e
favorecendo economicamente as indústrias com menor investimento e piores condições
gerenciais.
Sob
vários aspectos, os desdobramentos do projeto ainda estão em andamento e sendo
sentidos agora, dois anos após o seu encerramento, e continuarão ocorrendo no
futuro próximo. Não apenas as melhorias ambientais reais, obtidas com a implementação
do licenciamento corretivo, com a implantação dos sistemas de controle, mas
também na forma de várias atividades em continuidade da cooperação universidade
/ indústria / governo. Pela sua evidência, o projeto contribuiu para que o
nível de interesse e mobilização dos setores industriais e seus sindicatos, na
área ambiental, se elevasse de forma significativa.
Hoje, não apenas os quatro setores industriais contemplados, mas também outros,
passaram a buscar este tipo de interação para um enfrentamento da perspectiva
premente de adaptação às exigências ambientais. Ao fazer isso de forma coletiva,
as pequenas e médias indústrias percebem que podem alcançar melhores condições,
do que se ficarem a mercê de circunstancias locais,
ora favoráveis, ora não, e que o licenciamento conjunto resulta necessariamente
que os mais idôneos não sofram com a concorrência de caráter predatório. Portanto,
é pré-requisito para o sucesso desse tipo de interação que haja uma organização
do setor industrial de forma coletiva, e que essa organização seja dirigida a
partir de um reconhecimento da legitimidade das demandas de caráter ambiental,
e não exerçam meramente a função de defesa corporativa.
Da
mesma forma, pelo lado governamental, a postura de defesa e exigência intransigente
de normas e padrões estabelecidos previamente, deve ser substituída por uma
abertura ao diálogo, sempre que houver evidências de que um ganho relevante
pode ser obtido, ao se adotar uma solução intermediária. Nesse sentido, a
participação da universidade e órgãos de pesquisa é quase imprescindível, não
apenas pelo caráter de neutralidade na mediação entre as partes, mas também
pela capacitação para a análise e avaliação técnica das conseqüências de propostas
de modificação em normas e padrões ambientais.
Por
último, cabe destacar que a cooperação técnica alemã foi extremamente importante
para dar início a essa cooperação, e constituiu uma fonte de financiamento para
vários itens. Mas o projeto mobilizou igualmente várias outras fontes de
recursos das agências de fomento governamental brasileiras (FAPEMIG, FINEP,
SEBRAE-PATME, e recursos das indústrias). Hoje, quando a cooperação alemã não
mais está disponível ao projeto, as atividades vem sendo feitas apenas com os
aportes nacionais. Desta forma, pode-se concluir que a cooperação tem plenas
condições de cumprir a contento a função de uma força indutora de avanços
tecnológicos com ganhos ambientais.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |