APIS MELLIFERA E A CONTRIBUIÇÃO BRASILEIRA NA ENTOMOGENÔMICA

 

Francis de Morais Franco Nunes

Pós-graduação em Genética

Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da

Universidade de São Paulo

 

 

Até 2004, apenas quatro insetos possuem seus genomas parciais ou completamente seqüenciados, a saber: Drosophila melanogaster (Diptera), Anopheles gambiae (Diptera), Bombyx mori (Lepidoptera) e Apis mellifera (Hymenoptera). Considerando que cerca de 70% das espécies animais são insetos, esses dados genômicos tornam-se insignificantes. No entanto, a entomogenômica vem ganhando espaço nos âmbitos científicos e tecnológicos, por ser um excelente modelo para pesquisa básica e aplicada e, ainda, sua importância econômica, ambiental e médica. Inúmeras iniciativas de caracterização de seqüências expressas têm como objetivo a identificação de novos genes e  a determinação da relação estrutura-função de genes e proteínas.

Em Apis mellifera, a definição do transcriptoma pode contribuir em estudos de genes determinantes comportamento social, capacidade de aprendizagem e memória, processos de sinalização por feromônios, regulação hormonal, vias metabólicas relacionadas à ontogênese, mecanismo haplodiplóide de determinação de sexo e plasticidade fenotípica no que diz respeito à determinação de castas (rainhas e operárias) e longevidade. O espectro se amplia na busca de informações de interesse econômico, que envolve o seqüenciamento de genes relacionados: 1) à família de proteínas de geléia real, 2) ao processamento de néctar e fabricação de própolis, 3) aos componentes do veneno da abelha (para aplicação farmacológica), 4) à agressividade (para aplicação no melhoramento e manejo apícola). O genoma de Apis mellifera é estimado em aproximadamente 180MB. Um considerável número de QTLs (quantitative trait loci)foram gerados, facilitando o mapeamento físico desse genoma, bem como evidenciou a alta taxa de recombinação dessa espécie (52 kb/cM), a maior descrita até o momento entre os eucariotos.

Para dar suporte ao seu recém-divulgado genoma, geramos mais de 5000 seqüências (clonagem de cDNA) a partir de RNAs mensageiros de todo o desenvolvimento embrionário e pós-embrionário desse organismo. Esse estudo de transcriptoma foi desenvolvido utilizando a metodologia ORESTES (Open Reading frame Expressed Sequence Tag).

Originalmente desenvolvida por Dias-Neto et al. (PNAS, 2000), a estratégia ORESTES permite gerar, preferencialmente, ESTs que correspondam a porção central dos RNAs mensageiros, assim, bem mais informativas que ESTs geradas nas extremidades 3’ e 5’, que contem seqüências não traduzíveis (UTRs) de tamanho variável. Desde sua invenção, a estratégia tem sido empregada com sucesso em projetos de transcriptoma, como foi o caso de Genoma Câncer, Schistosoma mansoni e Drosophila melanogaster. Outra importância da técnica é sua capacidade inerente de normalizar os perfis de expressão, diminuindo a redundância das bibliotecas de cDNA. A técnica não requer desenho de primers específicos, mas exige cuidados técnicos importantes em cada fase da geração das bibliotecas.

Trata-se de um Projeto Piloto, genuinamente brasileiro, desenvolvido nas Faculdades de Medicina de Ribeirão Preto (Departamento de Genética, Departamento de Biologia Celular e Molecular, Centro de Terapia Celular) e de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (Departamento de Biologia) da Universidade de São Paulo Universidade de São Paulo, com colaboração do Instituto de Genética e Bioquímica da Universidade Federal de Uberlândia, para caracterizar o potencial de expressão gênica dessa abelha e auxiliar na anotação do genoma. Tal Projeto foi batizado por ElectrApis, uma analogia entre o fóssil mais antigo de abelha (que data de 50 milhões de anos), conhecido por Electrapis, e um pouco de mitologia grega, onde Electra é a irmã de Orestes.

O conjunto de dados brasileiros representa hoje a segunda maior contribuição para o conhecimento do transcriptoma desse inseto. Graças a essa iniciativa foi possível solicitar ao NCBI (The National Center for Biotechnology Information) a instalação de ferramentas de análise e bancos de dados como UniGene, LocusLink e Entrez Genome, que já se encontram disponíveis a comunidade científica.

35,2% das ORESTES apresentam identidade com seqüências de Apis já conhecidas. As demais seqüências foram classificadas como ortólogas (sobretudo de genes de Drosophila e Anopheles) ou “no matches” quando não apresentaram qualquer semelhança com dados disponíveis no GenBank. Procedeu-se também análises de genoma comparativo após agrupar todas as ORESTES com os demais dados de Apis no GenBank. Essa análise gerou 3408 grupos de seqüências. 1779 não apresentaram identidade a nenhuma seqüência conhecida e estima-se que 22% desses grupos representem genes Apis-específicos. Dos 1629 grupos restantes, 41% são comuns a todos os taxa, 21% compartilhados apenas entre os metazoários (Bilateria) e 16% exclusivos entre os insetos.

Estudos de genômica funcional também foram realizados, analisado o perfil de expressão de transcritos pertencentes a diversas famílias gênicas, utilizando transcrição reversa (RT), seguida de PCR. Foram analisados os genes ligados as seguintes funções: transporte de ferro (Transferrina), transporte de lipídeos (Lipoforina), síntese e metabolismo de hormônio juvenil (Esterase HJ e Metil Transferase), transcrição e replicação (Dead Box RNA helicase), álcool desidrogenase (ADH), proteína de cutícula (SgAbd), proteína de estocagem (Hexamertina), ubiquitinação (APP-BP 1), metabolismo energético (Hexoquinase), adesão celular (SPARC) e fator de crescimento (IDGF). Em vários casos detectaram-se perfis diferenciais de expressão gênica durante o desenvolvimento pós-embrionário, bem como possível modulação desses genes pelos títulos variáveis de hormônios Ecdisteróides e Juvenil presentes na hemolinfa. Um bom exemplo corresponde aos transcritos de Hexamerina, uma proteína de estocagem, com super-expressão durante a fase larval, sobretudo quando os níveis de ambos hormônios são basais. Também exibem alta expressão, sobretudo no quinto instar larval, os transcritos de SPARC, Hexoquinase, IDGF e SgAbd, um resultado que está de acordo com as características dessas proteínas e seus papéis nessa fase de crescimento exponencial da larva, em que observa-se as mais altas taxas de atividade metabólica. Em suma, esses dados são complementares ao banco de dados de genoma e transcriptoma de Apis mellifera, bem como dão suporte a anotação genômica, estudos de filogenia e evolução molecular entre insetos e eucariotos, estudos de biologia do desenvolvimento, descoberta e caracterização funcional de novos genes.

 

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004