O boicote
científico internacional e a ciência de países emergentes
Fernando de Souza Barros
Universidade
Federal do Rio de Janeiro
As propostas de boicote e de pesquisas científicas “anti-terroristas” contempladas por entidades e agências de ciência e tecnologia norte-americanas não somente comprometem as metas de pesquisa e desenvolvimento da ciência norte-americana mas podem contribuir – por caminhos tortuosos – para identificar quais as pesquisas avançadas do Terceiro Mundo que devem ser alvos potenciais para ações de boicote. A nanotecnologia seria uma dessas áreas. De acordo com uma “força tarefa” formada pela Sociedade Americana de Física (APS):
Num
comentário editorial do boletim Physics
& Society da Sociedade Americana de Física (vol. 32 de janeiro de
2003), favorável a essas iniciativas, afirma-se que “como uma boa ciência
freqüentemente garante vantagens nacionais de segurança, é ocasionalmente vital
conviver com a censura efetiva para preservá-la”. Entretanto, cientistas
norte-americanos reconhecem a importância do intercâmbio científico
internacional.[1]
Blakemore e co-autores [2]
abordaram frontalmente a questão do boicote
científico, concluindo que “só em circunstâncias extremas seria justificável o boicote aos pares
estrangeiros.” Esses autores apresentam um conjunto de condições para o
estabelecimento de boicote científico, mas advertem que “o que se busca com o princípio da universalidade da ciência é
evitar que cientistas sejam reféns de
decisões políticas.”
Infelizmente, ações concretas já
estão sendo tomadas, com conseqüências adversas para a ciência do Terceiro
Mundo: o acesso a laboratórios de pesquisa é negado a cientistas estrangeiros;[3]
foi instituído um fichário para estrangeiros com Ph.D’s norte-americanos;[4]
e foram propostas, pelo ministério de defesa norte-americano, novas regras de
sigilo para pesquisas que sempre foram de domínio público (não classificadas, no jargão burocrático) mas “consideradas
críticas para a segurança nacional”.[5]
O impacto dos ataques terroristas de
11 de setembro de 2001 trouxe novas barreiras para o intercâmbio científico
entre o Primeiro e o Terceiro Mundo. Um exemplo que revela as dimensões dessas
barreiras é o “rastreamento” de estudantes estrangeiros nos Estados Unidos.
Neste país estudam ou estagiam aproximadamente três quartos de um milhão de
visitantes estrangeiros. As novas exigências se transformaram em um gigantesco
gargalo para o intercâmbio científico: “o processo de rastreamento sinaliza uma
nova era para funcionários universitários e para os estudantes, principalmente
aqueles oriundos de paises islâmicos.”[6]
Erros inexpressivos ou pequenos equívocos sobre os dados desses estudantes e
estagiários podem causar conseqüências drásticas nas suas futuras carreiras.
Essas ações expõem sua natureza incontrolável. Como controlar os executores
dessas normas unilaterais ao longo de meandros burocráticos insensíveis e
inatingíveis? Qual o respaldo internacional daqueles que formulam os cenários hipotéticos necessários para avaliar riscos de intercambio científico? Quem decide
sobre a gravidade de práticas criminosas de pessoas dispersas no seio de uma vasta maioria de cidadãos que respeitam a lei e
que apenas buscam conhecimento científico?
É portanto relevante a intervenção
de cientistas de países emergentes na discussão de novas políticas científicas
ou de novas estratégias para exclusão de comunidades científicas ao livre acesso
à informação científica.
As
considerações acima sobre possíveis conseqüências para a ciência internacional
merecem a atenção das instituições científicas brasileiras. Uma reflexão sobre
os efeitos de um boicote científico em setores da ciência pertinentes ao nosso
desenvolvimento e a abordagem dessas questões pelas nossas entidades, em
reuniões científicas dentro e fora do país, são certamente pertinentes.
Como
demonstram os fatos apresentados neste comentário, o debate sobre os eventuais
objetivos dessas novas estratégias para o intercâmbio científico deve ser
universal. As atuais medidas de segurança que limitam o intercâmbio científico
suportam uma previsão de severas conseqüências para a ciência do Terceiro Mundo.
[1] Por exemplo, Irving A. Lerch. “No international exchange, no science”. Forum International Affairs APS, dezembro de 2002, p. 6; e o editor do Physical Review A, Bernd Craseman. “More than ¾ of all manuscripts submitted to Physical Review A originate from abroad”. Forum International Affairs APS, dezembro de 2002, p. 11.
[2] Colin Blakemore; Richard Dawkins; Denis Noble & Michael Yudkin, “Is a scientific boycott ever justified?”. Nature, 421, (falta número), 23 de janeiro de 2003, p. 314.
[3] Martin
Enserink. “Antiterrorism: USDA closes
lab doors to foreign scientists”. Science, 296, 5570, 22 de maio de 2002, p.
996.
[4] Paula E.
Stephan; Grant C. Black; James D. Adams & Sharon G. Levin. “Survey of foreign recipients of U.S. Ph.D.’s”. Science, 295, 5563, 22 de
março de 2002, p. 2211-2.
[5] Cf. o editorial “Science in an age of terrorism”. Science, 297, (falta número), 27 de setembro de 2002, (falta página).
[6] Diana Jean Schemo. “Electronic tracking system monitors foreign students”. The New York Times, 17 de fevereiro de 2003.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |