NOTAS SOBRE A RECONSTITUIÇÃO DA REDE URBANA NO BRASIL; O EXEMPLO DAS MINAS COLONIAIS E SEU ENTORNO.

 

Fernanda Borges de Moraes

(Departamento de Urbanismo/ UFMG)

 

Com uma população aproximada de 4.717.000 habitantes, em 1820, o Brasil, às vésperas da independência, apresentava em seu território apenas doze cidades. Também o número de vilas erigidas ao longo de todo o período colonial foi bastante reduzido: apenas 213. Basicamente, o processo de povoamento da América Portuguesa ocorreu de forma muito tímida nos dois primeiros séculos, com a maior parte das até então erigidas sete cidades e 51 vilas localizando-se no litoral ou em sítios muito próximos dele. O fim da União Ibérica (1580-1640), a emergência e acirramento dos conflitos entre as coroas portuguesa e espanhola na demarcação de seus respectivos domínios em território americano e a descoberta de ouro na região das minas contribuíram para a intensificação da colonização no século XVIII, quando foram erigidas 118 vilas – 60% das quais situadas nos territórios mais interiores da colônia – e as cidades de São Paulo (1711), Mariana (1745) e Oeiras (1761). Nas duas primeiras décadas do século seguinte, mais duas cidades – Cuiabá e Goiás (1818) – e 44 novas vilas são criadas, sendo 70% delas em territórios interiores.  

 

Considerando a extensão territorial da colônia e que somente essas poucas cidades e as vilas detinham uma estrutura administrativo-judiciária e fiscal organizada, com a presença institucionalizada de um corpo burocrático, de uma hierarquia de funções e atribuições pré-determinados por instrumentos legais e um território de jurisdição (termo), poder-se-ia supor que a urbanização decorrente do processo colonizador foi, no mínimo incipiente. Ainda mais se confrontarmos tal situação com a de Portugal que, no início do século XIX, possuía uma população estimada de 2.893.532 habitantes, 22 cidades e 500 vilas.

 

No entanto, é preciso também considerar as especificidades da colonização portuguesa na América. Nos diversos movimentos que marcaram os vínculos metrópole-colônia, que a Coroa se utilizava de recursos em que se alternavam concentração e descentralização do poder. A estratégia adotada, sobretudo no regime de feitorias e no das capitanias hereditárias, pautou-se por uma lógica amplamente utilizada pela Coroa na qual os riscos iniciais da empresa colonial eram assumidos por particulares, em troca da concessão de privilégios. Por outro lado, quando se ampliavam as possibilidades de maior lucro e rentabilidade, essas concessões eram restringidas, senão eliminadas, com a instalação, por exemplo, de monopólios régios e/ou criação do sistema de governo-geral . 

 

Esses movimentos também se reproduziam em escala menor, desde a instância das capitanias até os níveis regionais e locais. Sobretudo nos momentos de maior intensificação no esforço de povoamento, a ereção de vilas e cidades figurava como uma estratégia de implantação de uma estrutura de organização administrativa, jurídica, fiscal, militar e territorial que possibilitava à Coroa portuguesa ter maior controle sobre a colônia e suas riquezas. Por outro lado, conferir maior autonomia e poder a determinadas localidades por vezes se opunha aos interesses e às políticas de caráter mais centralizador adotadas pela metrópole, sobretudo em momentos de crise e frente à emergência de motins, rebeliões e insubordinações da população.

 

Assim, se o número de cidades e vilas criadas no período colonial parece reduzido, é preciso ressaltar que questões de natureza política, estratégica e administrativa acabaram por resultar, em muitos casos, na negação de pedidos de emancipação de arraiais, bem como de elevação de vilas à categoria de cidade, ainda que essas apresentassem atributos – número de famílias abastadas, nível de desenvolvimento econômico, infra-estrutura urbana, número de habitantes, etc. – semelhantes aos das cidades existentes.

 

Nesse sentido, para melhor compreender o processo de urbanização e a evolução da rede urbana na América Portuguesa, é preciso agregar ao quadro exposto informações sobre a rede de caminhos, número de povoações e suas articulações, população e densidade, número de escravos, abastecimento, fluxos comerciais, etc., cuja geografia e espacialização são procedimentos fundamentais de análise.

 

A abordagem do caso específico da Capitania de Minas Gerais torna-se exemplar nessa reflexão já que nela o processo de urbanização e a evolução de sua rede urbana se deram de forma mais efetiva do que no resto da colônia em razão da rapidez com que se deu o povoamento de seu território, movido pela busca de ouro e pedras preciosas; pelas relações de troca estabelecidas com mercados de outras capitanias e também além-mar; e com o desenvolvimento de um mercado interno com alto grau de dinamismo.

 

Estudos mais recentes sobre a economia mineira apresentam teses que revisam a visão tradicional que reduzia a economia das Minas Gerais coloniais à mineração e que levou a muitos equívocos, tais como o de interpretar a primeira metade do século XVIII como um período de opulência em oposição à segunda metade, como período de total miséria e decadência econômica. Se, em 1763, a cota de cem arrobas anuais de ouro foi completada pela última vez anunciando a crise da mineração, como explicar um crescimento demográfico, entre 1776 e 1821, de 60,8% da população da capitania, inclusive da população escrava?

 

Para responder tal questão, faz-se necessário compreender como deu o processo de povoamento das Minas. Os relatos de Antonil (1711), referentes aos primeiros anos do século XVIII, já forneciam algumas informações a respeito, quando relatou a presença de “mais de trinta mil almas” que se ocupavam “umas em catar, outras em mandar catar nos ribeiros do ouro; e outras em negociar, vendendo, e comprando o que se há mister não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar”.

 

Vemos que, apesar da precariedade que marcava os assentamentos humanos dessa época, formou-se toda uma rede de atividades, movida pela mineração, assim como pelas necessidades inerentes à fixação humana, que não dispensavam, como aponta o jesuíta, os “regalos. São aspectos que corroboram a afirmativa de Virgílio Noya Pinto de que ofluxo demográfico e a polarização do comércio, em poucos anos, transformaram as Gerais na região mais importante do Brasil”.

 

O Mapa da maior parte da Costa, e Sertão, do Brazil, extrahido do original do Pe. Cocleo, de datação aproximada de 1699-1702, já registrava os primeiros eixos que formariam uma complexa rede urbana em expansão: o “Caminho novo do gado”, ao longo ao longo do rio São Francisco, e do “Caminho de Garcia Roiz para as Minas”, ligando o Rio de Janeiro às minas do rio das Velhas. Indicava também a presença de inúmeras fazendas na extensa região que abrangia os vales do rio São Francisco e de alguns de seus afluentes. E, ao longo do século XVIII, seu número viria a se ampliar ainda mais.

 

Da Bahia, os criadores trouxeram o gado para as Minas, subindo o rio São Francisco, que ficou conhecido como “rio dos currais”, em razão de seus pastos, depósitos salinos e barreiros de sal. A decadência da indústria açucareira, as facilidades geográficas de comunicação; sua situação de povoamento antigo, bem aparelhado pelo comércio e de importante centro importador de artigos europeus criavam condições favoráveis para que a Bahia se constituísse num importante centro abastecedor das Minas, o que certamente contribuiu para a interiorização do povoamento de seu território. A importância dos “currais” para o abastecimento das áreas mineradoras – inicialmente como alimento e depois como força motriz e meio de transporte – fez com que a proibição do comércio entre Bahia e Minas, determinada pelo Regimento de 1702, que visava impedir os descaminhos do ouro, excluísse o gado vacum, embora se devesse pagar direito de entrada. Ainda assim, não foi possível conter o acesso de grandes comboios de negros, boiadas, cavalos e variados gêneros vindos da Bahia.

 

Também os paulistas trouxeram seus rebanhos, descendo o rio das Velhas e, ainda que os caminhos existentes fossem penosos e longos, era intensa a circulação, tanto de mercadores quanto de aventureiros interessados em fazer riqueza nas minas. Antes da descoberta do ouro, no entanto, a produção planaltina era pequena, o que fez com que, de imediato, as vilas paulistas chegassem a sacrificar seu próprio abastecimento para fornecer às minas “boiadas, toucinho, aguardente, açúcar, panos, calçados, drogas e remédios, trigo algodão, enxadas, almocatrafes e artigos importados como o sal, armas, azeite, vinagre, vinho, aguardente do reino, etc...” Contudo, a demanda das áreas mineradoras, onde tais gêneros alcançavam preços elevados nos primeiros anos de povoamento, acabou por incentivar a ampliação das lavouras, a multiplicação das manufaturas. Nesse contexto, o porto de Santos acabou por se constituir numa importante porta de entrada de artigos de além-mar, tais como sedas, armas, ferro, tecidos e escravos. Além disso, não tendo muares suficientes para o transporte das cargas que demandavam as minas, os paulistas foram estabelecer currais nos campos de Paranaguá e Curitiba, ampliando também as ligações mercantis com as áreas criadoras do sul e confins do Prata, com reflexos no povoamento da fronteira sulina.

 

Com relação ao Rio de Janeiro, o impacto do rush em direção às áreas mineradoras acabou por provocar não só o despovoamento da região como também seu desabastecimento. No entanto, passado algum tempo as relações mercantis com as Minas se aqueceram em razão da abertura do Caminho Novo, da expansão das lavouras, engenhos e currais nas regiões fluminenses e da adoção do porto do Rio de Janeiro para importação de produtos europeus, de escravos vindos diretamente da África ou do nordeste e, ainda, figurando como escoadouro do ouro para a Europa. Não foi por acaso que o eixo econômico da colônia deslocou-se para o sul, com a transferência da sede do governo-geral de Salvador para o Rio de Janeiro (1763).

 

Com a descoberta de ouro nos sertões de Goiás, abriram-se novas frentes de povoamento a oeste. A abertura da Picada de Goiás, passando por Paracatu e atravessando a fronteira de Minas com essa capitania em Arrependidos, foi autorizada em 1736. Mas havia ainda outros caminhos e descaminhos, alguns registrados em documentos cartográficos coevos, a ponto do mestre-de-campo Ignácio Pamplona mencionar, em correspondência ao governador de Minas, que “tantas eram as picadas e a tudo iam chamando de picada de Goiás”, o que indicava o grande interesse na articulação dessas regiões.

 

Se a descoberta de ouro e pedras preciosas desencadeou o rápido povoamento das Minas Gerais, também estimulou o desenvolvimento de atividades agropecuárias e mercantis necessárias ao abastecimento das áreas mineradoras, favorecendo a articulação não só entre regiões da capitania, como também com outras capitanias e com os mercados de além-mar. O desenvolvimento dessas atividades, já na primeira metade dos setecentos, veio a garantir estabilidade e dinâmica ao mercado interno quando da crise da mineração. É o que demonstra Cláudia Chaves ao apontar que, na segunda metade do século XVIII, tal crise não chegou a representar o declínio das atividades econômicas da Capitania de Minas Gerais, mas estimulou transformações nessas atividades, que se voltaram para o desenvolvimento da produção interna. A cartografia produzida sobre a capitania, sobretudo a partir do último quartel do século XVIII, corrobora tal afirmação e revela a complexidade de uma rede urbana em expansão, que articulava não só as aglomerações mineiras, mas essas com as capitanias adjacentes.

 

Nos mapas  produzidos em 1778 por José Joaquim da Rocha foram registrados e classificados 534 assentamentos humanos – uma cidade, Mariana; 8 vilas, 57 freguesias, 133 arraiais, 51 registros, 275 fazendas e 9 aldeias de gentio. Deles pode-se depreender a notável urbanização da sua região centro-sul da capitania, concentrada nas áreas de influência dos principais núcleos mineradores. Por outro lado, as comarcas de Sabará e do Serro Frio apresentavam ainda grandes áreas desocupadas, à exceção do expressivo número de fazendas, localizadas junto aos principais rios, sobretudo o São Francisco e seus afluentes. Tanto os limites a oeste, com a Capitania de Goiás, quanto a leste, com a do Espírito Santo, ainda permaneciam fluidos.

 

Como fortes núcleos polarizadores da capitania, Vila Rica e Mariana – sedes da capitania e do bispado, respectivamente – figuravam confluência dos quatro grandes caminhos estruturadores do território mineiro no século XVIII: o Caminho Velho, o Novo, o para o Distrito Diamantino e o para a Bahia ou do São Francisco. Mas, além deles, não só as demais vilas, como várias das freguesias e arraiais existentes constituíam pólos de articulação micro-regional, indicando uma expressiva coesão da rede urbana então existente.

 

Frente a um processo de colonização que se iniciou com uma migração intensa, atraída pela possibilidade de rápido enriquecimento; que propiciou o desenvolvimento de uma sociedade diversificada; que se pautou por intensas trocas comerciais entre regiões e que teve na presença de uma estrutura burocrática bastante complexa uma organização político-administrativa sólida, podemos afirmar que Minas praticamente nasceu urbana.

 

No governo provincial tais processos se intensificam e novas inserções regionais na estrutura produtiva do território se delinearam. A primeira metade do século XIX foi marcada pelo processo de expansão e descentralização da rede urbana mineira, o que pode ser observado tanto pela redivisão das comarcas quanto pela criação de novas vilas, implicando em sucessivas divisões dos territórios municipais. Nesse período, no qual se destaca a independência do país em 1822, a fronteira mineira atingiu praticamente sua expansão máxima.

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004