RAÇA E JUSTIÇA EM TEMPOS DE CIDADANIA:

A EXPERIÊNCIA DO DISQUE RACISMO

 

Fabiano Dias Monteiro

Coordenador do Centro de Referência Nazareth Cerqueira

contra o Racismo e o Anti-Semitismo

Mestre em Sociologia pelo PPGSA/UFRJ

 

 

Tendo sido criado em junho de 2000, o serviço Disque-Racismo se constitui, ainda hoje, no principal programa do Centro de Referência Nazareth Cerqueira contra o Racismo e o Anti-semitismo, organização governamental, gerenciada por membros da sociedade civil, inaugurada em 1999, na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, funcionando, atualmente, na Secretaria de Estado de Justiça e Direitos do Cidadão.

O Disque-Racismo constitui-se em um canal de recebimento de denúncias de atos de racismo e discriminação racial, havendo uma equipe multidisciplinar (advogados, psicólogos, assistentes sociais e cientistas sociais) que acompanha os casos, cuidando, sobretudo de seu encaminhamento à justiça, atuando, portanto, na transformação dos conflitos cotidianos que têm a questão racial como pano de fundo em processos judiciais. 

Após ser desativado, durante o primeiro semestre de 2003, esse canal de recebimento de denúncias de discriminação encerra o primeiro trimestre de 2004, com a marca de 150 denúncias, um número recorde, quando comparado ao mesmo período dos anos anteriores.

Uma possível explicação para este aumento repentino de denúncias foram três episódios, classificados como racistas, que foram retratados intensamente pela mídia nacional, em fevereiro de 2004. São eles:

 

A) Um dentista negro, em São Paulo, foi assassinado pela polícia após ser confundido com um ladrão. Após o engano, a polícia admite o erro e admite também ter plantado provas falsas, que incriminariam o dentista assassinado.           

B) Seis quilombolas mato-grossenses alegam ter sofrido discriminação racial, após terem sido impedidos de se hospedar numa pousada em Brasília.

C) No terceiro episódio, Luciano Ferreira, filho de criação do compositor Caetano Veloso é, sem explicações aparentes, expulso de um Shopping Center da Zona Sul do Rio, por um suposto segurança.

 

O último episódio, veio a envolver, diretamente, a participação o CERENA, através de uma solicitação direta do, então Secretário de Justiça do Rio de Janeiro, Sérgio Zveiter, para que o serviço prestasse “solidariedade” ao rapaz.

 

Assim, o serviço Disque-Racismo, chega ao seu quarto ano de existência, cortando três administrações estaduais (Garotinho, Benedita e Rosinha), parecendo ter sedimentado, definitivamente, sua legitimidade enquanto dispositivo governamental de defesa dos direitos sociais e, por extensão, de propulsão da cidadania.  A busca pelos “direitos” __ num alinhamento a associação do uso da justiça com a idéia de cidadania __ das vítimas de discriminação é assim celebrada pela administração pública fluminense e expressa nas palavras do Secretário de Justiça:

 

 

“Recebermos mais telefonemas de pessoas afirmando terem sido vítimas de discriminação é um bom sinal, pois mostra que o grau de conscientização está aumentando e que as pessoas estão buscando seus direitos (...). Isso mostra que, depois de tantos anos, o preconceito racial existe, que é preciso combater esse mal e muito precisa a ser feito (...). (O Globo, 13 de maio de 2004)

 

Estas palavras marcam não só a valorização da utilização dos mecanismos formais-institucionais na mediação de conflitos, mas também a absorção por parte do Estado (aqui representado pela Secretaria Estadual de Justiça) de uma “bandeira” levantada, sobretudo a partir da década de 1980, pelo chamado “Movimento Negro” brasileiro.

Neste sentido, o Estado estaria não só demarcando o compromisso com as demandas de um segmento da sociedade, mas também avaliando a empreitada de forma positiva.

Esta participação do poder público no combate ao racismo, porém, revela algumas contradições que merecem atenção particular.

A “Justiça”, apresentada na matéria acima como “aliada” no combate ao racismo é, ainda, alvo de críticas pesadas por parte de integrantes, especialistas e simpatizantes do chamado Movimento Negro. 

Segundo os ativistas a Justiça viria se mantendo omissa diante dos casos de discriminação racial, analisando, sistematicamente, os casos de forma isolada e ignorando o problema racial brasileiro. A Justiça, aliada dos negros e da cidadania, na voz Estado é, negligente e compromissada com o “mito da democracia racial” __ e com submissão social dos negros __ na voz da militância. Observemos a fala de Sueli Carneiro: 

 

“ (...) no plano da aplicação concreta [a] legislação conquistada pelos movimentos negros, percebe-se que estas conquistas estariam destinadas ao rol das ‘leis que não pegam’, ou seja, se durante o processo de mobilização social que envolveu a feitura da Constituição de 1988 não foi possível politicamente barrar as importantes conquistas dos movimentos sociais, a força do racismo e do mito da democracia racial colocariam no plano cotidiano das instituições jurídicas os limites para a punição e visibilidade do problema racial na esfera jurídica”. (Carneiro, 2000)

 

Nesta abordagem procuro observar como o Disque-Racismo, enquanto serviço do Estado, mas coordenado e gerido por membros de entidades da sociedade civil (ONG´s, Universidades, etc.), se posiciona diante do debate sobre a ineficácia (ou não) da legislação anti-discriminação brasileira e seus usos.

Tendo recebido mais de 1.700 ligações, o serviço encontra-se, hoje, com cerca de 40 casos em trâmite no judiciário.

Chama atenção o fato de quase a metade desses casos (18 em 40) estarem tramitando em juizados cíveis, fora, portanto, do âmbito criminal, onde estão inseridas a legislação anti-discriminação.

Destarte, observamos que a saída cível é não só um recurso legítimo para os casos encaminhados ao (e pelo) Disque-Racismo, como é bastante utilizada, dividindo o espaço com a criminalização, propriamente dita, dos casos de discriminação.

O serviço parece, assim, se aproximar da associação da cidadania com o uso da justiça (talvez, uma adesão tardia ao acess to justice moviment), independente da esfera e do uso da legislação anti-discriminação específica 

Contrariando esta perspectiva, temos, novamente, as palavras da militante e pesquisadora Sueli Carneiro, notamos o peso e a veemência das críticas do movimento em relação ao judiciário e a sub-utilização da legislação anti-racismo: “precisamos romper com o paradigma de que o Código Civil é para os brancos e o Código Penal para os negros”.  

 

CONCLUSÃO:

 

A perspectiva desenvolvida nesta apresentação aponta na direção de que uma avaliação sobre a utilização ou não da legislação anti-discriminação no Brasil, pode depender, e muito, dos atores sociais envolvidos na manipulação dos saberes técnicos e dos vetores ideológicos que envolvem a questão.

Se o uso do Disque-Racismo significa o acesso à justiça e à cidadania para o Estado __ e, gradativamente, para vários dos operadores técnicos do Disque-Racismo __ a invisibilização da “cisão racial” brasileira, ocorrida dentro do sistema policial-judiciário (os crimes avaliados como discriminação e racismo pelo Movimento Negro, facilmente se transformam em casos de Constrangimento __ o caso do afilhado de Caetano Veloso é exemplo __ Ameaça, Calúnia, etc.), significa descaso para o Movimento Negro, indicando, assim, que a “verdade”, sobre o uso da legislação anti-racista e, talvez, por extensão, sobre as relações raciais, no Brasil, esteja ainda em construção e atrelada a um debate político-ideológico em curso.

O debate, no nosso caso entre um serviço público de combate ao racismo e o discurso já estabelecido do Movimento Negro, segue curso em rumos contraditórios: quando o racismo aparece de forma perceptível (geralmente em agressões verbais de caráter racial) é encaminhado à justiça (o que é sinônimo de cidadania para o Estado) e se transforma em outra coisa, o que é logro, para o Movimento que lutou pela criação de um serviço público de combate ao racismo.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004