COMITIVAS, CONDUTORES E PEÕES-BOIADEIROS NO PANTANAL: permanências e transformações.

 

Eudes Fernando Leite[1]

 

            Conduzir grandes quantidades de animais domesticados, de uma região à outra é uma tarefa verificada ao longo da história, em sociedades diversas e em circunstâncias várias. Tal atividade revela um dos múltiplos aspectos das relações homem versus natureza ao longo do tempo e que singulariza muitas sociedades e culturas dispersas ao longo da história humana. Dos textos bíblicos, passando por outras espécies de registros, alcançando os textos literários, os diversos tipos de manifestações artísticas, a temática em tela singulariza um componente importante da cultura humana, particularmente em locais voltados para as práticas da bovinocultura. 

            No velho Mato Grosso, desde o final do século XIX, a pecuária adquiriu grande importância na economia, possibilitando ainda o crescimento da presença das comitivas na importante tarefa de conduzir milhares de animais, geralmente bovinos, de uma propriedade a outra ou, para localidades mais distantes. Esse fenômeno de longa duração é objeto de pesquisa em determinados trabalhos, com abordagens diferenciadas, dedicados ao assunto Conquanto a pecuária tenha sido transformada em um dos símbolos mato-grossenses – considerando aqui Mato Grosso ou Mato Grosso do Sul -, ela não poderia ter contraído esse status sem a adesão incansável dos trabalhadores envolvidos nas variadas ocasiões de sua consumação enquanto atividade econômica notável. Em meio a esses trabalhadores, encontramos os peões-campeiros, praieiros, cozinheiros e boiadeiros, bem como os condutores.

            Essencialmente, o boiadeiro – termo que genericamente designa até hoje aquele que está à frente de uma comitiva - foi o responsável por comprar lotes de gado, conduzindo-os para revenda em áreas afastadas das fazendas de engorda. Igualmente conduziam bois e vacas para abate em charqueadas e/ou em açougues que comercializavam a carne, sem esquecer dos muares e cavalares. Durante o Império, a questão do abastecimento da Corte foi motivo de preocupação levando o Estado a organizar uma investigação que dissecou toda a estrutura de funcionamento da compra e venda de bois e vacas vendidos no Rio de Janeiro. Nesse estudo ficou manifesta a importância do boiadeiro enquanto negociante de animais para o abate, transformando-se numa personagem suspeita de exercitar preços vultuosos ao retornar ao Rio de Janeiro, conduzindo os animais adquiridos durante a longa e penosa viagem pelos arredores da cidade e áreas mais distantes.

Essa personagem, primeiramente comprador de gado magro e, mais tarde e até a contemporaneidade, condutores especializados foi parcialmente marginalizada na história, embora acompanhasse lotes de gado, de início, rumo às charqueadas mato-grossenses, depois para Minas Gerais, São Paulo e outras áreas de engorda ou consumo. Nesse palco, condutor e peão-boiadeiro não são estranhos ao que ocorre à sua volta, permanecendo integrados em uma fração social brasileira. No correr do tempo eles se integraram ao mundo em transformação, não sem garantir componentes importantes de práticas e saberes obtidos ao longo de suas experiências vitais. Há nessa situação uma plêiade de saberes e fazeres, os quais indicam a espessura da atividade – e de seus sentidos – na cultura brasileira em geral e na mato-grossense, indiscutivelmente.

Possuem características típicas, essenciais no delineamento e configuração de sua própria identidade cultural, no mosaico eclético de especificidades regionais e das múltiplas áreas rurais brasileiras. Especializados em operacionalizar a migração do rebanho bovino, conservam nessa atividade hábitos variados que encontram lugar, sentido e importância na história regional. As estratégias de vida e trabalho foram construídas ao longo do tempo, de tal maneira que as procedências étnicas – portuguesa, espanhola, indígena e negra, especialmente – apresenta-se nas práticas, revestidas de outros sentidos e funções cotidianas no trabalho com as boiadas, na fazenda e nos caminhos.

            Apesar de estarem envoltos pela poeira das boiadas, os condutores foram progressivamente adquirindo importância na paisagem humana regional. Sua presença permite pensar os significados da cultura mato-grossense, principalmente a respeito do que ela tem de mais tradicional – e rústica – na contemporaneidade pós-moderna. A presença flagrante das comitivas de gado nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, com destaque para a planície pantaneira, coopera para a existência de uma identidade regional que possui raízes no pretérito e, da mesma forma, estabelece-se enquanto exercício contemporâneo. Para que isso ocorra, as características geográficas locais contribuem sobremaneira, uma vez que em determinadas propriedades rurais, o acesso e, conseqüentemente a utilização dos caminhões-gaiola é impraticável.

            Embora estejam se restringindo espacialmente em sua atuação, as comitivas não podem ser tomadas como caravanas de trabalho em extinção. Não é difícil ou estranho viajar pelas estradas interioranas, sul e mato-grossenses, nomeadamente na região pantaneira e encontrar uma boiada conduzida por comitiva. Ocasião dessa natureza produz sensações variadas no motorista e, ainda, seus acompanhantes. A imagem/circunstância é paradigmática! A boiada, em seu andar dolente e moroso, envolve/engole o veículo e seus ocupantes. Trata-se de um instante circunstancialmente simbólico em que a tradição subsume a modernidade. Os bois, historicamente abatidos e devorados pelos humanos, na situação em tela, invertem o sentido implícito nas relações homens x bovinos e, tragam o veículo e seus ocupantes, envolvendo-o plenamente.

            Mas, as comitivas de boiadas e seus componentes, a saber: o condutor, o culatreiro, o ponteiro, os meeiros, os fiadores e o cozinheiro, além dos animais de montaria estiveram historicamente envoltos pela “poeira das boiadas”, sem receberem uma atenção por parte dos estudiosos do objeto “pecuária”. Os peões e as comitivas pouca atenção mereceram dos estudiosos das humanidades em geral. A exceção apresenta-se nas artes, especialmente, na música caipira e regional, na literatura, na fotografia, na pintura. Conquanto essa situação esteja se modificando, constatação perceptível a partir do surgimento de alguns trabalhos sobre o Pantanal especificamente aqueles que articulam as preocupações com a região e seus habitantes, há carência de investigações que tomem os trabalhadores da pecuária regional como objeto de estudo. Sob pena de cometer omissões, menciono alguns textos que surgiram desde os anos 1980, sob formas de dissertações, teses, artigos e livros. São eles Águas Encantadas de Chacororé: paisagens e mitos do Pantanal; A poética do sobrenatural no homem ribeirinho: o minhocão; Aqui tudo é parente! Um estudo das práticas e idéias em relação ao tempo e ao espaço entre camponeses do Pantanal de Mimoso; No ritmo das águas do Pantanal; Sociedade e Natureza no pensamento pantaneiro: representação de mundo e o sobrenatural entre os peões da fazenda de gado na “Nhecolândia”; Entre histórias e tererés: o ouvir da literatura pantaneira; A linguagem do homem pantaneiro, O que é Pantanal; História de um país inexistente, o Pantanal entre os séculos XVI e XVIII; Guató; argonautas do Pantanal; Tradição e ruptura: cultura e ambiente pantaneiros e Marchas na História: comitivas e peões-boiadeiros no Pantanal. Esses trabalhos, ao abordarem o Pantanal, incorporam em suas preocupações as formas de vida e trabalho verificadas na região, enfocando, alguns mais, outros menos, a presença de uma cultura particular e densamente enraizada no espaço que midiaticamente é mais conhecido como o “paraíso das espécies”, entre outros epítetos edênicos.

            A problemática exposta até aqui impõe aclarar a seguinte constatação: a relação estabelecida entre a pecuária, enquanto importante atividade econômica no Pantanal não pode ser analisada sem que a percepção volte-se, igualmente, sobre os trabalhadores diretamente envolvidos na sua manutenção. Entre esses se encontram os integrantes das comitivas, os quais possuem ligações com as fazendas de gado na medida em que suas habilidades têm origem nesses locais. Se a pecuária prossegue como importante fonte de riqueza e expressão, quando se pensa economicamente a região pantaneira, os peões e condutores integram o grupo humano que articula – e viabiliza – sua remoção para fora das propriedades rurais. Além disso, os peões conferem o sentido prático e cotidiano às representações e imagens que surgem a respeito da vida no campo pantaneiro. Sua figura metaboliza a representação do homem pantaneiro, refletindo-se sobre o imaginário regional e transcendendo sobre as metáforas do romantismo que se costuma conferir ao labor no campo.

            No conjunto de fontes audiovisuais que produzimos – no sentido coletivo do termo -, com pantaneiros cuja história de vida, liga-os ao passado nas fazendas pantaneiras, encontro as bases para sustentar a idéia que a compreensão histórica da pecuária enquanto atividade produtora de símbolos e riquezas materiais para os fazendeiros, articula-se ao árduo e constante palmilhar das comitivas que conduzem os bovinos interna e externamente ao Pantanal.

            Nesse sentido, os boiadeiros, no passado, cumpriram tarefa importante na inserção de Mato Grosso enquanto produtor/fornecedor de gado magro. A presença deles proporcionou o surgimento de pontos de articulação e encontros de comitivas, como o Porto XV, nas margens do Rio Paraná. Ou, conforme referências nas entrevistas, o Porto Rolom. Além disso, ficaram famosas as estradas boiadeiras, preferidas pelas comitivas nos longos trajetos percorridos nas viagens. Ao que parece, as estradas são várias, pois na medida em que indagamos aos entrevistados a esse respeito, surge a informação de várias possibilidades para o transcurso do estado mato-grossense, dependendo muito do local em que se encontram os animais e, para onde serão levados.

            Com a modernização da pecuária mato-grossense – compreendida aqui o os dois Mato Grosso – a atuação das comitivas tem se restringido ao interior da região pantaneira. Nos períodos das enchentes os rebanhos são removidos de uma propriedade, situada na área inundável, para outra mais afastada das águas e de sua capacidade letífera/revigoradora.  Apresenta-se, nessas situações, a evidência da presteza das comitivas na articulação da pecuária moderna e sua sobrevivência física com formas de trabalho significativamente tradicional, porém indispensáveis.

A discussão acima mencionada não é cabível neste espaço – ela ocorre em “Marchas na História; comitivas e peões-boiadeiros no Pantanal”, (EDUFMS, 2003)-, contudo é impensável deslindar a forte articulação entre tradição e modernidade articuladas e salientes no cotidiano do transporte de boiadas, no interior pantaneiro.  Não se trata, certamente, de um binômio insensato, tampouco contraditório: o trabalho das comitivas e as modernas práticas da pecuária imbricam a necessidade e importância do saber e do método tradicionais, representados pelas comitivas em sua íntegra, e a exigência de garantir a qualidade do rebanho bovino no espaço do mercado consumidor progressivamente exigente naquilo que consome.

Da mesma forma, a reflexão implica a identificação e interpretação dos significados produzidos pela relação tradição x modernidade no contexto da contemporaneidade, observando os significados das articulações econômicas presentes e, ainda das formas de trabalho engendradas e mantidas em seu âmbito. De certo que não se postula, aqui, a predominância das relações econômicas sobre as demais, mas a urgência de compreender essas ligações, e, na discussão em foco, associadas às formas “rústicas” de trabalho, as quais promovem um componente cultural/identitário paradoxalmente forte, inclusive no espaço urbano.

Ainda no mesmo sentido, os debates mais recentes cujo conteúdo refletem a inquietação com a sustentabilidade do ecossistema pantaneiro precisam incorporar, mais intensamente, preocupações com as formas de vida e trabalho tradicionais na região. Na concepção que sustenta esse texto, está presente a certeza de que a preservação ambiental não pode desprezar os pantaneiros – especialmente os trabalhadores que sobrevivem nesse bioma -, sob risco de tentar uma ruptura impossível que é a histórica relação homem x natureza.  E mais, no que se refere aos trabalhadores envolvidos com a pecuária: subsiste uma carência significativa no interior desse segmento que é parcialmente marginalizado das escassas redes de assistência social mantidas pelo Estado.

A circunstância anotada acima é rotineira entre os peões de comitivas. Esses trabalhadores quando não encontram trabalho – ou seja, quando não estão viajando – vivenciam a experiência do desemprego e ausência de garantias trabalhistas, conquistas política e social que para outros segmentos é legitimamente reconhecida. À parte, a crise do desemprego, peões-boiadeiros e outros trabalhadores ligados ao universo da fazenda de gado pantaneira amargam a vida na periferia das cidades, desempregados, muitas vezes tragados pelo alcoolismo, entre muitos outros problemas sociais. Ainda necessitamos de mais pesquisas para apreender melhor esse universo do desemprego rural e, sobretudo, das alternativas de vida dos trabalhadores rurais quando estão além de seu espaço de vida e de trabalho.

É preocupante a incorporação de signos do espaço rural pantaneiro como integrante da identidade, especialmente a sul-mato-grossense, em construção, sobretudo quando relega ao esquecimento a sustentabilidade material desses signos que nada mais são do que a experiência de vida do pantaneiro. É preciso pensar essa apropriação acrítica, pois ela fortalece o sentido da realidade “do viver e do ser” pantaneiro enquanto realidade romantizada e adâmica.



[1] - Doutor em História. Professor na UFMS/Campus de Dourados.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004