SOBRE QUÍMICA, FOTOTERAPIA E VAMPIROS

Etelvino Bechara

 

            Quem nunca tratou “boqueiras” (inflamações labiais) ou “impingens” (dermatoses) com pinceladas de um pigmento tal como a violeta agenciana ou o azul de metileno? Exposta à luz solar, com o tempo, a pele sofre descamação no local pincelado e a lesão desaparece. Há séculos, talvez milênios, que muitos povos utilizam esta técnica para curar várias doenças de pele.

            Provavelmente à busca de uma explicação científica para a eficácia desta terapia, foi que o químico russo Kautsky, em 1931, realizou uma experiência engenhosa e reveladora. Preparou sílica em pó contendo triptaflavina (corante amarelo) adsorvida em sua superfície e a misturou com sílica impregnada de leucomalaquita (verde). Depois de irradiar esta mistura com uma lâmpada durante 10 minutos, verificou que a sílica-triptaflavina continuava amarela, mas as partículas com leucomalaquita se tornavam azuis. Os grãos de sílica-triptaflavina ou de sílica-leucomalaquita não sofreram alteração de cor quando irradiados isoladamente e nem a mistura deles quando a experiência foi repetida em atmosfera de nitrogênio. No escuro, mesmo sob ar, nada acontecia. Kautsky concluiu então que o azulamento da leucomalaquita teria de ser provocado necessariamente pela sua reação com um “gás ativado difusível” - o oxigênio – produzido na superfície dos grãos pintados com triptaflavina quando excitados pela luz (Equações 1-3).

Kautsky reproduziu este efeito, que ele denominou de “ação fotodinâmica”, com outros corantes como clorofila e porfirinas e verificou que os produtos de reação eram peróxidos, portanto compostos de adição de oxigênio à molécula alvo (no caso, a leucoflavina).

            Em 1960, o biólogo americano Seliger descobriu que este “oxigênio ativado” (identificado como oxigênio eletronicamente excitado ao estado singlete) também poderia ser produzido quimicamente pela reação de hipoclorito de sódio (NaClO) com água oxigenada (H2O2) (Equação 4). Em água, o oxigênio singlete tem uma vida média de apenas 2 ms e logo decai para o estado fundamental (triplete) por emissão de luz vermelha, se não colidir e reagir com outras moléculas. Veja a foto da mistura reacional de hipoclorito com água oxigenada na Figura 1.


 

Figura 1. Quimioluminescência da reação

NaClO  +  H2O2  ->  NaCl  +  H2O  +  O2*    (Eq. 4)

Foto de W.J. Baader, IQUSP

O oxigênio singlete é extremamente oxidante e reage com proteínas, DNA e membranas celulares, sendo portanto citotóxico. É capaz de destruir vírus, fungos, bactérias, e outras células, daí sua eficácia no tratamento de herpes, micoses, psoríases, espinhas, verrugas e canais dentários. Mais recentemente, demonstrou-se sua eficácia no tratamento de vários tipos de cânceres de superfície (pele, esôfago, língua, lábios, mucosa bucal, cordas vocais, reto, bexiga, etc.) (Figura 2) . No caso de câncer, dependendo do caso, o corante (porfirinas, azul de metileno, clorinas, ftalocianinas, xantênicos, etc) pode ser administrado via oral, venosa ou topical, e a área do tumor é irradiada preferencialmente com laser de luz vermelha, pois tem maior penetração no tecido. Como o corante se acumula mais em células tumorais do que em células normais (8 vezes mais no caso de porfirinas), aquelas são seletivamente destruídas enquanto as últimas serão regeneradas. Na área médica, esta técnica é chamada de PDT (“photodynamic therapy”) e tem-se revelado como importante técnica coadjuvante da cirurgia, quimioterapia e radioterapia de tumores. Serve também para revelar, pela distribuição da fluorescência do corante no tecido, a presença de micro ou macrotumores (“photodynamic diagnostic”). No Estado de São Paulo, há equipes que aplicam estas técnicas no Hospital Amaral de Carvalho de Jaú, no Hospital Sírio Libanês de São Paulo, no Hospital Universitário da UNICAMP e no Hospital São Paulo. 

            Oxigênio singlete também é responsável pela fototoxicidade de alguns medicamentos, como é o caso da clorpromazina, usada antigamente como calmante na formulação de xaropes para tosse e ainda hoje como medicamento neuroléptico em alguns distúrbios psiquiátricos. Após ingestão da clorpromazina, se o paciente sair ao sol, à noite, terá manchas vermelhas na pele (hematomas), pois esta substância nela se acumula e lá fotosenzibiliza a inflamação e morte celular.

            Um caso trágico de ação deletéria de oxigênio singlete é o de porfirias cutâneas, como a porfiria eritropoiética e a porfiria cutânea tarda. Estas são doenças hereditárias, prevalentes no nordeste europeu, caracterizadas por deficiências enzimáticas que resultam no acúmulo intracelular de porfirinas. Como estas porfirinas não chegam a incorporar ferro para formar o grupo heme dos citocromos e da hemoglobina (dos glóbulos vermelhos), elas passam à circulação e se acumulam na pele.  Se estes indivíduos saírem à luz do dia, as partes expostas (rosto, braços e mãos, em geral) sofrerão a ação fotodinâmica do oxigênio singlete sensibilizada pelas porfirinas e ficarão ulceradas. Esta desordem causa mutilações do nariz, orelha e lábios, expondo os dentes, e algumas vezes excesso de pêlos no rosto (hirsutismo) (Figura 3). Estes indivíduos, de aparência horrenda, se tornam noturnos, anti-sociáveis e, segundo literatura médica, podem ter originado os mitos dos vampiros e dos lobisomens. Curiosamente, além de carotenóides (caroteno/cenoura, licopeno/tomate e bixina/urucum), os tioálcoois muito abundantes no alho são eficientes supressores do oxigênio singlete. A sede por sangue (para aquisição de hemoglobina) e a repulsa ao alho completariam, assim, o desenho do estereótipo do vampiro em nosso imaginário.

 

 

Figura 3. Paciente de porfiria cutânea

 

Figura 2. Carcinoma Espinocelular da Corda Vocal Direita, antes e após PDT.

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004