ESTADO DO CONHECIMENTO DOS PEIXES DO PANTANAL

Emiko Kawakami de Resende – Embrapa Pantanal[1]

 

A história do conhecimento sobre os peixes do Pantanal se inicia com Aguirre, que em 1945, redigiu uma publicação denominada “A caça e a pesca no Pantanal de Mato Grosso”,

onde aborda questões relacionadas à pesca e algumas informações básicas referentes a fenômenos como lufada e piracema.

 

Na década de 1970, foi criado o Centro de Pesquisas Ictiológicas do Pantanal Matogrossense (CEPIPAN), vinculada ao Instituto de pesquisa e Desenvolvimento Pesqueiro do Brasil, da SUDEPE, com o objetivo de incrementar os conhecimentos sobre a ictiofauna da região, visando a sua preservação e o seu aproveitamento racional. Infelizmente o CEPIPAN teve vida curta: foi desativado em 1980. Nesse período foram efetuados estudos sobre a biologia pesqueira, como período de reprodução, tamanho de primeira maturação gonadal e aspectos da pesca relacionadas às espécies de valor econômico para a região. Datam dessa época os relatórios de Bernardino, sobre a “Pesca exploratória e prospecção pesqueira no Pantanal do rio Cuiabá”, do CEPIPAN, “breve ensaio sobre a captura sustentável no rio Cuiabá (visando a conservação de estoques)”, de Silimon e colaboradores “Estudos preliminares das espécies nobres da bacia do rio Taquari”, Coxim (MS)”, de Lima e colaboradores“Levantamento pesqueiro preliminar sobre os peixes pacu (Colossoma mitrei), pintado (Pseudoplatystoma corruscans) e cachara (Pseudoplatystoma fasciatum) do Pantanal do Mato Grosso”, de Lima e Lima “Subsídios técnicos para estabelecer o período de piracema/1979 – Mato Grosso” e de Lima e Bernardino, “A pesca em Coxim (levantamento pesqueiro preliminar)”.

 

Em 1981, Lima publica trabalho importante sobre a pesca no rio Cuiabá, relacionando aspectos da biologia, ecologia e produção pesqueira com o ciclo hidrológico do rio, constituindo pesquisa pioneira de ecologia de peixes em ambientes inundáveis.

 

Nessa mesma década, alguns estudos sobre comportamento de peixes do Pantanal são produzidos por Sazima e colaboradores através de observações sub-aquáticas, como as das piranhas (comportamento alimentar, táticas de predação) e de comportamentos específicos de peixes comedores de escamas. Culminou em 2003, com o estudo de Francisco Machado, “História natural de peixes do Pantanal: com destaque em hábitos alimentares e defesa contra predadores”.

 

Na segunda metade da década de 1980, é criado o Centro de Pesquisa Agropecuária da Embrapa, hoje Embrapa Pantanal, cuja missão é adaptar/desenvolver tecnologias e informações para o desenvolvimento sustentável da região. Dessa forma iniciam-se os estudos biológicos e ecológicos dos peixes no Pantanal Sul. O primeiro deles, de Resende e colaboradores, versou sobre um estudo aprofundado do curimbatá, pintado e cachara na bacia hidrográfica do rio Miranda, onde foram abordados aspectos relativos à alimentação, reprodução e crescimento, bem como as interações com as condições hidrológicas que ocorrem a cada ano na bacia. Os estudos tiveram continuidade com Resende e colaboradores, procurando entender a interação planície de inundação/cabeceira, bem como o processo de inundação e as relações tróficas existentes entre as espécies de peixes ocorrentes. Os estudos desenvolvidos permitiram avaliar a dinâmica e estrutura das comunidades de peixes, em termos de riqueza, diversidade, similaridade e estrutura trófica. Foram indentificadas 9 guildas tróficas: carnívora, herbívora, onívora, detritívora, insetívora, zooplanctófaga, lepidófaga, ictio/insetívora e zoo/insetívora, com predominância das guildas onívora e detritívora.

 

Uma ferramenta valiosa para quem se inicia nos estudos de peixes do Pantanal é o livro “Peixes do Pantanal – manual de identificação”, cujos exemplares para o livro foram coletados na década de 70 e concretizado em 1999, através dos recursos financeiros do programa Pantanal. É um livro primoroso produzido pela Embrapa, sendo autores Britski, Silimon e Lopes, o primeiro do Museu de Zoologia da USP e os dois últimos, do extinto CEPIPAN.

 

Em 1994 foi implantada novamente um sistema de coleta de dados sobre a pesca no Pantanal Sul, SCPESCA/MS, uma parceria entre a Embrapa Pantanal, Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul e Polícia Militar Ambiental de Mato Grosso do Sul, que vem se mostrando um instrumento poderoso para a administração sustentável dos recursos pesqueiros da região, na medida em que fornece as informações necessárias para a melhor tomada de decisão por parte do Conselho de Pesca de Mato Grosso do Sul. Tais informações, comparadas com aquelas produzidos entre 1979 e 1984, pelo Instituto de Preservação e Controle Ambiental de Mato Grosso do Sul, aliados a estudos desenvolvidos no rio Taquari, uma das bacias hidrográficas mais degradadas pela ação humana no Pantanal e no rio Cuiabá, vem possibilitando uma compreensão mais adequada do que seriam os processos ecológicos essenciais que comandam os ambientes inundáveis e a biota neles ocorrentes. Junk e colaboradores, estudando diversos aspectos dos ambientes aquáticos da Amazônia, desenvolveram a teoria dos pulsos de inundação, ao invés da teoria do “river continuum” para explicar a diversidade e abundância de vida nos ambientes inundáveis da região. O mesmo Junk e colaboradores da Universidade Federal de Mato Grosso iniciaram também estudos similares para o Pantanal a partir da década de 1990. Entretanto, acreditamos que esta teoria, ao menos para a ictiofauna, se consolidou na medida em que se estudou o rio Taquari, onde os processos de assoreamento do seu leito e o extravasamento das águas do rio para as planícies laterais provocaram inundações permanentes de extensas áreas com redução expressiva na abundância e produção pesqueira.

 

No processo da enchente/cheia, as áreas inundadas tem a sua vegetação alagada, onde parte morre e se decompõe, formando os detritos orgânicos, fonte de alimento dos peixes detritívoros como curimbatás e sairus (muito abundantes em rios com áreas inundáveis); parte funciona como substrato/filtro que retém os sedimentos e matéria orgânica dissolvida, servindo como substrato para desenvolvimento de algas e microorganismos animais (bactérias, tecamebas, etc.) e finalmente um terceiro estrato, a vegetação terrestre alagada que fornece alimento aos peixes na forma de flores, frutos e sementes. A inundação também propicia o desenvolvimento de grandes massas de vegetação aquática e, associadas a elas, ricas comunidades de insetos aquáticos que servem de alimento aos peixes. Assim, a inundação propicia ricas fontes alimentares para peixes detritívoros, herbívoros, insetívoros e onívoros que são a base da cadeia alimentar dos peixes carnívoros e de outras espécies animais que as consomem como aves aquáticas, jacarés, lontras e ariranhas. Na fase seca, há novamente todo o crescimento da vegetação terrestre nas áreas anteriormente alagadas, fertilizadas parcialmente no processo de inundação e parcialmente, pela decomposição da vegetação aquática da fase anterior. Dessa forma, o sistema consegue incorporar e aproveitar matéria orgânica de forma muito eficiente, explicando a riqueza e diversidade dos rios com planícies inundáveis. Quando os pulsos de inundação são perdidos e o sistema passa a estar permanentemente inundado, passam a funcionar como extensos lagos oligotróficos, com redução na abundância e produção pesqueira.

 

No que tange a estratégias reprodutivas, Resende identificou menos 4, os de piracema ou migradores, que realizam longas migrações ascendentes para a cabeceira dos rios para a desova e retornam posteriormente para a planície de inundação, onde se alimentam e se recuperam do desgaste energético da viagem e acumulam reservas para o próximo período reprodutivo. A este grupo pertencem os pacus, piraputangas, dourados, pintados e cacharas, dentre outros. O segundo grupo é composto pelos desovadores de planície que realizam pequenas migrações transversais, saindo da planície de inundação e entrando para o canal do rio para se reproduzir, na época das enchentes, como os pacu-pevas e tuviras. O terceiro é constituído por aquelas espécies que se reproduzem no auge da enchente, na planície de inundação, como as traíras. O último grupo seria constituído pelos desovadores de planície que se reproduzem no período da seca nas lagoas e baías remanescentes, constituídos por representantes da família Sciaenidae e Cichlidae.

 

Estudos desenvolvidos no campo da limnologia demonstraram que a dequada é um fenômeno natural de mortandade de peixes causada por deficit de oxigênio causada no processo de enchente, onde a vegetação terrestre alagada morre e se decompõe consumindo o oxigênio dissolvido na água. Esse fenômeno ainda é exacerbado pelos efeitos sinergísticos do gás carbônico presente em grande quantidade, resultante do processo de decomposição da vegetação terrestre alagada.

 

Estudos genéticos estão se iniciando para os peixes do Pantanal, como aqueles de Foresti e colaboradores sobre o DNA mitocondrial de pacus e sobre as piraputangas do rio Formoso, afluente do rio Miranda. Estudos de DNA microssatélite estão para serem iniciados para as principais espécies de valor econômico como pacu, piraputanga, dourado, pintado e cachara. Estudos citogenéticos vem sendo desenvolvidos na Universidade Federal de Mato Grosso, bem como sobre estoques pesqueiros. Um banco de semen criocongelado das principais espécies de valor econômico está implantado na Embrapa Pantanal. Monografias sobre biologia e ecologia de algumas espécies de peixes vem sendo feitos por estudantes de graduação das Universidades Federais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

 

O corpo de pesquisadores que vivem e atuam na Bacia do Alto Paraguai, onde se localiza o Pantanal ainda é muito escasso. Na Embrapa Pantanal são 5, na UFMS, 1, na UFMT, 5, na UEMS, mais recentemente, 5 e na UNEMAT, 2. Existem ainda contribuições de outras instituições de fora da região, como do Centro de Biologia Tropical do IBAMA, sediado em Pirassununga, da Universidade Federal de São Carlos, UNESP Botucatu e Universidade Federal de Mogi das Cruzes, no que tange a estudos genéticos.

 

O que se observa é que há ainda uma enorme lacuna de conhecimento dos peixes do Pantanal. Citando como exemplos: porque algumas espécies da mesma sub-família são migradores de longa distância e outras, apenas realizam movimentos laterais entre a planície de inundação e o canal do rio? Porque algumas espécies da mesma sub-família apresentam desova total e outras, desova parcelada? Como a inundação, cujo deslocamento ocorre de norte para o sul ao longo do rio Paraguai, e de leste para oeste, ao longo dos tributários, afeta a biologia das espécies de peixes? Que tipo de reserva lipídica é acumulada pelos peixes? Seria do tipo ômega 3? Como o excesso ou a falta de inundação afeta os peixes? Qual será a relação entre os peixes e os demais organismos da cadeia alimentar aquática que se alimentam deles, como os jacarés, cabeças-secas e ariranhas? Será que cada bacia hidrográfica possui uma população própria de peixes em termos genéticos?

Esse é o desafio que se coloca para o Pantanal! Somos poucos demais para a quantidade de conhecimento que necessita ser gerado para o uso sustentável da ictiofauna do Pantanal.



[1] Bióloga, Doutora em Ciências. Rua 21 de Setembro, 1880. 79320-900   Corumbá, MS  emiko@cpap.embrapa.br


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004