Prêmio Érico Vanucci Mendes 2004
Laureado:
Prof. Dr. Eduardo Batalha Viveiros
de Castro
(UFRJ - Museu Nacional)
A HORA E A VEZ DA ANTROPOLOGIA
Texto-base do
discurso (todos os
parágrafos foram extraídos de textos anteriormente publicados).
Sou bacharel em ciências sociais pela Puc-rj (1973), mestre (1977) e doutor
(1984) em antropologia social pelo Museu Nacional, professor do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social (Ppgas)
desta mesma instituição desde 1978. Fiz breves pesquisas entre as sociedades
Yawalapíti (Mato Grosso), Kulina (Acre) e Yanomami (Roraima), e um trabalho
mais longo sobre os Araweté, povo de língua tupi-guarani do Médio Xingu (Pará).
Sou um etnólogo, isto é, aquela espécie de
antropólogo social que se interessa por sociedades simples, de tradição
cultural não-ocidental, etc. Na academia brasileira, isto significa que sou um
“especialista em índio”. Tal acepção de “etnólogo” é arbitrária; estou seguindo
uma tendência que existe no meio científico local (e consagrada nas
classificações do CNPq); em outros países, a palavra tem outras conotações. Os
antropólogos que estudam sociedades indígenas são hoje uma minoria dentro da
disciplina no Brasil; eles, sobretudo os que estudam coisas como parentesco,
ritual ou cosmologia, são vistos por seus colegas como praticando um ofício
bizarro, um pouco antiquado, simbolicamente importante mas demasiado técnico e,
no fundo, irrelevante. Em troca, é possível que nos concebamos como a
aristocracia da disciplina, descendentes em linha direta dos heróis fundadores
— como uma espécie de brâmanes da religião antropológica, escolhidos pelo
ordálio do trabalho de campo junto a primitivos autênticos, perdidos no coração
da selva. Estudamos sociedades que, se não são “complexas”, são completas;
aprendemos línguas e costumes exóticos; tratamos de assuntos como xamanismo,
aliança matrilateral, metades exogâmicas, ritos funerários, canibalismo;
administramos, em suma, aqueles sacra
apresentados aos noviços antes que enveredem, majoritariamente, pelas sendas
profanas da antropologia em sentido lato. Para nós, as antropologias urbanas e
rurais são etnologizações do alheio, obra de aventureiros que invadiram com
nossa bandeira os domínios dos burgos vizinhos. Nós etnólogos continuamos
morando na cidade velha da antropologia.
Estou brincando. Os antropólogos, como vêm
testemunhando as reuniões da ANPOCS,
somos muito unidos, e não destôo. Somos unânimes no afirmar que a antropologia
não se define por seu objeto, mas por seu método; que não estudamos aldeias ou
cidades, mas em aldeias ou cidades — que não estudamos povos, mas problemas...
De resto, isso de “índios isolados” também não existe mais, se é que já
existiu, ou está acabando (desde o século xvi),
e portanto estamos todos necessariamente estudando segmentos de uma sociedade
diversa e complexa. Ademais, e por menos que os etnólogos e os demais
antropólogos se comuniquem (e nos falamos bastante), temos em comum um conjunto
de referências básicas, uma mesma hagiografia, e outras coisas. Mas não creio
estar exagerando ao dizer que a etnologia desempenha uma função identitária
estratégica dentro de nosso campo disciplinar, bem como um papel teórico maior.
Os conceitos, métodos e problemas característicos da antropologia foram
forjados no estudo destas sociedades que privilegiamos: cultura, comparação,
superação dialética de nossas categorias sociológicas, aproximação qualitativa
e vivida do objeto, tensão constitutiva entre o particular e o universal, tudo
isto é imediatamente o horizonte da etnologia. Com as devidas ressalvas e
qualificações, o trabalho de campo junto a sociedades numericamente pequenas,
de tradição cultural não-ocidental, e seu resultado típico, a monografia
etnográfica, continuam a ser a referência clássica da antropologia, e,
ouso dizer, a raiz de sua autonomia como disciplina.
Sou, em seguida, um “americanista” — especialista nas
“terras baixas da América do Sul” —, conforme o totemismo geográfico praticado
pela comunidade antropológica internacional. Embora tais categorias de
“americanista”, “africanista”, “europeanista” etc. possam, em princípio,
aplicar-se também a historiadores, a sociólogos, a estudiosos de populações
camponesas ou urbanas, elas são sobretudo importantes na organização da
comunidade dos etnólogos, ou, em geral, dos especialistas em povos primitivos
ou antigos (lingüistas, arqueólogos). Elas definem o escopo de associações,
congressos e jornais científicos, bem como de institutos e equipes de pesquisa;
aparecem nos curricula e nos anúncios
de posições acadêmicas; e elas evocam, para os etnólogos, todo um complexo
folclórico de representações: temas característicos, disposições teóricas, até
mesmo tipos de personalidade distintos. Não sei se existe algo semelhante entre
os sociólogos e politólogos; entre os historiadores, o totemismo cronológico
(os “medievalistas” etc.) parece desempenhar um papel análogo ao de nossas
especializações regionais.
É
importante observar que “americanista” não é um gênero de que “brasilianista”
seria uma espécie. Nossas espécies são antes coisas como “andinista”,
“mesoamericanista”, “especialista nos índios das pradarias norte-americanas”,
“amazonista”, e sub-variedades do tipo
“tupinólogo”, “jivarólogo” ou “esquimologista”. Para a etnologia que pratico, o
fato dos Araweté ou Yawalapíti estarem dentro do território brasileiro e serem
uma “minoria étnica” só é pertinente a
posteriori, enquanto elemento da história particular destes povos. As
relações das sociedades indígenas com a sociedade nacional só me dizem respeito
porque são parte da circunstância das primeiras — e ainda assim uma parte que
não foi até agora minha preocupação principal.
Se estudei índios no Brasil, é porque a antropologia
praticada por aqui se concentra quase exclusivamente em fenômenos intra-muros.
Era natural ir para o Alto Xingu, não para a selva peruana; era mais fácil e
mais barato; e havia tanto a fazer cá como lá. Não porque buscasse, contudo,
qualquer conexão entre os índios do Xingu e a “realidade brasileira” — tornei-me
americanista e não brasilianista. Mas se me tornei americanista, e não
africanista ou oceanista, foi porque fazer etnologia no Brasil
significava estudar índios no Brasil, país periférico sem colônias
externas. Meus professores eram americanistas; e finalmente, não teria sido fácil obter
financiamento do CNPq, da FINEP ou do escritório brasileiro da
Fundação Ford para fazer pesquisa na Nova Guiné. Em outras palavras, ser um
americanista brasileiro não é de forma alguma a mesma coisa que ser um americanista
francês ou inglês.
* * *
Fui fazer antropologia para poder não estudar a “realidade brasileira” —
um caso de bovarismo temático. O competente ensino de sociologia na puc entre 1969 e 1973 ministrava aos
alunos a mistura da época: a santíssima trindade Marx–Weber–Durkheim, um bocado
de epistemologia bachelardo-althusseriana, e doses cavalares de sociologia do
subdesenvolvimento. Apesar de toda a epistemofilia, e de alguns
excelentes professores de teoria sociológica, o horizonte profissional
que eu enxergava era a sociologia do Brasil, versão teoria da dependência, que
me entediava até a morte. Queria sair dali o mais rápido possível, lugar
completamente fora das minhas idéias. O país me concernia como cidadão, não
como cientista social — uma distinção que admito problemática.
Em fuga da sociologia do subdesenvolvimento, os
cursos de Luiz Costa Lima sobre o estruturalismo levaram-me a ler a obra de
Lévi-Strauss, que me cativou de saída: a ambição universalista de seu
pensamento aliada a um prodigioso sentido do detalhe concreto; sua vontade de
rigor lógico associada a uma profunda paixão estética; sua capacidade de
praticar a boa abstração a partir de uma matéria recôndita e exótica, tal a
mitologia rabelaisiana dos índios brasileiros, que ganhava em fruição ao ter
exibida sua estrutura contrapontística subjacente, tal o delírio metódico dos
sistemas de casamento australianos, que revelavam uma luxuriante matemática
selvagem. Achei que achara: eis que meu problema era o espírito humano, não
esta ou aquela sociedade (sobretudo, não esta aqui). Eu via na antropologia de
Lévi-Strauss uma espécie de meta-sociologia, que estaria para a sociologia como
a psicanálise para a psicologia. Lévi-Strauss
me conduziu à antropologia, e isto determinou minha relação com a disciplina.
Além de americanista, acabei me tornando um etnólogo “estruturalista”.
Estruturalista esclarecido, é claro — mas estruturalista, faute de mieux.
O
que acabo de dizer não significa, de forma alguma, que eu não conceba minha
atividade de antropólogo como política – muito pelo contrário.
Em um dos
livros fundadores de nossa disciplina, Primitive
Culture (1871), Edward Tylor definiu a antropologia como ”a reformer’s
science”, uma ciência de reformadores, cuja missão (arqui-iluminista) seria a
de identificar as sobrevivências de crenças e superstições primitivas na
modernidade, para poder extirpá-las. Certamente não falo aqui por todos de
minha geração, aquela que chegou à idade adulta por volta de 1968; mas para
muitos de nós a antropologia era, e continua sendo, o exato oposto de uma reformer’s science ou de uma polícia da
razão. Era uma ciência insurrecionária; mais especificamente, era o instrumento
de uma certa utopia revolucionária que lutava pela auto-determinação conceitual
de todas as minorias do planeta, luta que víamos como um acompanhamento
indispensável à auto-determinação política dessas minorias. No caso dos
antropólogos brasileiros, isso possuía uma dimensão de urgência muito especial:
tratava-se de dar ao processo de constituição das minorias indígenas de nosso
país como agentes políticos, iniciado no começo dos anos 70, uma dimensão propriamente intelectual, isto
é, radical, fazendo com que o pensamento dos povos americanos saísse do gueto
em que jazia encerrado desde o século XVI.
Nessa luta político-cultural, que se pode imaginar como sendo
essencialmente um esforço de criação de multiplicidade (i.e. de anti-empire building), a obra de Lévi-Strauss
— alguns de vocês talvez se surpreendam, outros não — foi de uma enorme
importância, pois foi pela mediação de Lévi-Strauss que o estilo intelectual
das sociedades ameríndias ficou pela primeira vez em posição de modificar os
termos da reflexão antropológica geral. Para nós, em suma, se não para
Lévi-Strauss, a expressão ‘La pensée
sauvage’ não significava de modo algum o “pensamento dos selvagens”, mas o
pensamento insubmisso, o pensamento não-domesticado – o pensamento contra o
Estado, se quiserem. (Em homenagem a Pierre Clastres).
Sem dúvida,
éramos todos mais ou menos hippies; éramos primitivistas e anarquistas, e
essencialistas, e tínhamos talvez um senso algo inflado da importância da
antropologia, e éramos propensos ao exotismo. Mas não éramos tão ingênuos
assim: nosso primitivismo era um desejo de autotransformação; nosso anarquismo
não precisa de desculpas; nosso essencialismo era estratégico (mas é claro); e
quanto ao exotismo, bem, aqueles eram tempos estranhos, em que o conceito de
Outro designava um valor radicalmente positivo, e o de Eu, uma posição
detestável. Em outras palavras, ainda não havia emergido o recente e
generalizado sentimento contra a diferença, que a vê como inimiga número um da
imanência, como se toda diferença fosse um estigma da transcendência e a
ante-sala da opressão. Toda diferença é hoje lida como se uma oposição, e toda
oposição parece ser concebida como se testemunho da ausência de uma
relação: o verbo “opor” é visto como
sinônimo do verbo “excluir” – estranha idéia, que só posso atribuir à suposição
culpada de que os outros concebem a alteridade como nós. Bem, eles não o fazem:
os outros são outros precisamente por que seus outros são outros que os nossos.
Compreendo
a antropologia como consistentemente guiada por este valor cardinal: ajudar a
criar as condições para a autodeterminação conceitual — isto é, ontológica — do
povo, isto é, dos povos. Seu sucesso ou seu fracasso como ciência serão
julgados por isso, e não, ao contrário do que profetizam ou desejam alguns de
seus former practicioners, por sua solicitude
em se auto-extinguir e dividir seu legado entre uma psicologia
neo-evolucionista e uma história neo-difusionista.
* *
*
O ‘antropólogo’ é alguém que discorre sobre o
discurso de um ‘nativo’. O nativo não precisa ser especialmente selvagem, ou
tradicionalista, tampouco natural do lugar onde o antropólogo o encontra; o
antropólogo não carece ser excessivamente civilizado, ou modernista, sequer
estrangeiro ao povo sobre o qual discorre. Os discursos, o do antropólogo e
sobretudo o do nativo, não são forçosamente textos: são quaisquer práticas de
sentido. O essencial é que o discurso do antropólogo (o ‘observador’)
estabeleça uma certa relação com o discurso do nativo (o ‘observado’). Essa
relação é uma relação de sentido, ou, como se diz quando o primeiro discurso
pretende à Ciência, uma relação de conhecimento. Mas o conhecimento
antropológico é imediatamente uma relação social, pois é o efeito das relações
que constituem reciprocamente o sujeito que conhece e o sujeito que ele
conhece, e a causa de uma transformação (toda relação é uma transformação) na
constituição relacional de ambos.
Essa (meta)relação não é de identidade: o
antropólogo sempre diz, e portanto faz, outra coisa que o nativo, mesmo que
pretenda não fazer mais que redizer ‘textualmente’ o discurso deste, ou que
tente dialogar — noção duvidosa — com ele. Tal diferença é o efeito de
conhecimento do discurso do antropólogo, a relação entre o sentido de seu
discurso e o sentido do discurso do nativo.
A
alteridade discursiva se apóia, está claro, em um pressuposto de semelhança. O
antropólogo e o nativo são entidades de mesma espécie e condição: são ambos
humanos, e estão ambos instalados em suas culturas respectivas, que podem,
eventualmente, ser a mesma. Mas é aqui que o jogo começa a ficar interessante,
ou melhor, estranho. Ainda quando o antropólogo e o nativo compartilham a mesma
cultura, a relação de sentido entre os dois discursos diferencia tal
comunidade: a relação do antropólogo com sua cultura e a do nativo com a dele
não é exatamente a mesma. O que faz do nativo um nativo é a pressuposição, por
parte do antropólogo, de que a relação do primeiro com sua cultura é natural,
isto é, intrínseca e espontânea, e, se possível, não-reflexiva; melhor ainda se
for inconsciente. O nativo exprime sua cultura em seu discurso; o antropólogo
também, mas, se ele pretende ser outra coisa que um nativo, deve poder exprimir
sua cultura culturalmente, isto é, reflexiva, condicional e conscientemente.
Sua cultura se acha contida, nas duas acepções da palavra, na relação de
sentido que seu discurso estabelece com o discurso do nativo. Já o discurso do
nativo, esse está contido univocamente, encerrado em sua própria cultura. O
antropólogo usa necessariamente sua cultura; o nativo é suficientemente usado
pela sua.
Tal diferença, é ocioso lembrar, não reside na
assim chamada natureza das coisas; ela é própria do jogo de linguagem que vamos
descrevendo, e define as personagens designadas (arbitrariamente no masculino)
como ‘o antropólogo’ e ‘o nativo’. Vejamos mais algumas regras desse jogo.
A idéia antropológica de cultura coloca o
antropólogo em posição de igualdade com o nativo, ao implicar que todo
conhecimento antropológico de outra cultura é culturalmente mediado. Tal
igualdade é porém, em primeira instância, simplesmente empírica ou de fato: ela
diz respeito à condição cultural comum (no sentido de genérica) do antropólogo
e do nativo. A relação diferencial do antropólogo e o nativo com suas culturas
respectivas, e portanto com suas culturas recíprocas, é de tal ordem que a
igualdade de fato não implica uma igualdade de direito — uma igualdade no plano
do conhecimento. O antropólogo tem usualmente uma vantagem epistemológica sobre
o nativo. O discurso do primeiro não se acha situado no mesmo plano que o
discurso do segundo: o sentido que o antropólogo estabelece depende do sentido
nativo, mas é ele quem detém o sentido desse sentido — ele quem explica e
interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e
significa esse sentido. A matriz relacional do discurso antropológico é
hilemórfica: o sentido do antropólogo é forma; o do nativo, matéria. O discurso
do nativo não detém o sentido de seu próprio sentido. De fato, como diria
Geertz, somos todos nativos; mas de direito, uns sempre são mais nativos que
outros.
Proponho aqui as perguntas seguintes. O que
acontece se recusarmos ao discurso do antropólogo sua vantagem estratégica
sobre o discurso do nativo? O que se passa quando o discurso do nativo funciona,
dentro do discurso do antropólogo, de modo a produzir reciprocamente um efeito
de conhecimento sobre este discurso? Quando a forma intrínseca à matéria do
primeiro modifica a matéria implícita na forma do segundo? Tradutor, traidor,
diz-se; mas o que acontece se o tradutor decidir trair sua própria língua? O
que sucede se, insatisfeitos com a mera igualdade passiva, ou de fato, entre os
sujeitos desses discursos, reivindicarmos uma igualdade ativa, ou de direito,
entre os discursos eles mesmos? Se a disparidade entre os sentidos do
antropólogo e do nativo, longe de neutralizada por tal equivalência, for
internalizada, introduzida em ambos os discursos, e assim potencializada? Se,
ao invés de admitir complacentemente que somos todos nativos, levarmos às últimas,
ou devidas, conseqüências a aposta oposta — que somos todos ‘antropólogos’, e
não uns mais antropólogos que os outros, mas apenas cada um a seu modo, isto é,
de modos muito diferentes? O que muda, em suma, quando a antropologia é tomada
como uma prática de sentido em continuidade epistêmica com as práticas sobre
que discorre, como equivalente a elas? Isto é, quando aplicamos a noção de
‘antropologia simétrica’ (Bruno Latour) à antropologia ela própria, não para
fulminá-la por colonialista, exorcizar seu exotismo, minar seu campo
intelectual, mas para fazê-la dizer outra coisa? Outra coisa não apenas que o
discurso do nativo, pois isso é o que a antropologia não pode deixar de fazer,
mas outra que o discurso, em geral sussurrado, que o antropólogo enuncia sobre
si mesmo, ao discorrer sobre o discurso do nativo?
Se fizermos tudo isso, eu diria que estaremos
fazendo o que sempre se chamou propriamente de ‘antropologia’, em vez de — por
exemplo — ‘sociologia’ ou ‘psicologia’. Digo apenas diria, porque muito do que
se fez e faz sob esse nome supõe, ao contrário, que o antropólogo é aquele que
detém a posse eminente das razões que a razão do nativo desconhece. Ele tem a
ciência das doses precisas de universalidade e particularidade contida no
nativo, e das ilusões que este entretém a respeito de si próprio — ora
manifestando sua cultura nativa acreditando manifestar a natureza humana (o
nativo ideologiza sem saber), ora manifestando a natureza humana acreditando
manifestar sua cultura nativa (ele cognitiza à revelia). A relação de
conhecimento é aqui concebida como unilateral, a alteridade entre o sentido dos
discursos do antropólogo e do nativo resolve-se em um englobamento. O
antropólogo conhece de jure o nativo,
ainda que possa desconhecê-lo de facto.
Quando se vai do nativo ao antropólogo, dá-se o contrário: ainda que ele
conheça de facto o antropólogo
(frequentemente melhor do que este o conhece), não o conhece de jure, pois o nativo não é,
justamente, antropólogo como o antropólogo. A ciência do antropólogo é de outra
ordem que a ciência do nativo, e precisa sê-lo: a condição de possibilidade da
primeira é a deslegitimação das pretensões da segunda, seu “epistemocídio”, no
forte dizer de Bob Scholte. O conhecimento por parte do sujeito exige uma
espécie de ignorância transcendental por parte do objeto.
Mas não é realmente preciso fazer um drama a
respeito disso. Como atesta a história da disciplina, esse jogo discursivo, com
tais regras desiguais, disse muita coisa instrutiva sobre os nativos. A
experiência proposta no presente artigo, entretanto, consiste precisamente em
recusá-lo. Não porque tal jogo produza resultados objetivamente falsos, isto é,
represente de modo errôneo a natureza do nativo; o conceito de verdade objetiva
(como os de representação e de natureza) é parte das regras desse jogo, não do que se propõe aqui.
De resto, uma vez dados os objetos que o jogo clássico se dá, seus resultados
são frequentemente convincentes, ou pelo menos, como gostam de dizer os adeptos
desse jogo, ‘plausíveis’. Recusar esse jogo significa apenas, portanto, dar-se
outros objetos, compatíveis com as outras regras acima esboçadas.
O que estou sugerindo, em poucas palavras, é a
incompatibilidade entre duas concepções da antropologia, e a necessidade de
escolher entre elas. De um lado, temos uma imagem do conhecimento antropológico
como resultando da aplicação de conceitos extrínsecos ao objeto: sabemos de
antemão o que são as relações sociais, ou a cognição, o parentesco, a religião,
a política etc., e vamos ver como tais entidades se realizam neste ou naquele
contexto etnográfico — como elas se realizam, é claro, pelas costas dos
interessados. De outro lado (e este é o jogo aqui proposto), está uma idéia do
conhecimento antropológico como envolvendo a pressuposição fundamental de que
os procedimentos que caracterizam a investigação são conceitualmente de mesma ordem que os procedimentos investigados.
Tal equivalência no plano dos procedimentos, sublinhe-se, supõe e produz uma não-equivalência radical de tudo o mais.
Pois, se a primeira concepção de antropologia imagina cada cultura ou sociedade
como encarnando uma solução específica de um problema genérico — ou como
preenchendo uma forma universal (o conceito antropológico) com um conteúdo
particular —, a segunda, ao contrário, suspeita que os problemas eles mesmos
são radicalmente diversos; sobretudo,
ela parte do princípio de que o
antropólogo não sabe de antemão quais são eles. O que a antropologia, nesse
caso, põe em relação são problemas diferentes, não um problema único
(‘natural’) e suas diferentes soluções (‘culturais’). A “arte da antropologia”,
penso eu, é a arte de determinar os problemas postos por cada cultura, não a de
achar soluções para os problemas postos pela nossa. E é exatamente por isso que
o postulado da continuidade dos procedimentos é um imperativo epistemológico.
Dos procedimentos, repito, não dos que os levam
a cabo. Pois tampouco se trata de condenar o jogo clássico por produzir
resultados subjetivamente falseados, ao não reconhecer ao nativo sua condição
de Sujeito: ao mirá-lo com um olhar distanciado e carente de empatia,
construí-lo como um objeto exótico, diminuí-lo como um primitivo não-coevo ao
observador, negar-lhe o direito humano à interlocução — conhece-se a litania.
Não é nada disso. Antes pelo contrário, penso. É justo porque o antropólogo
toma o nativo muito facilmente por um outro sujeito
que ele não consegue vê-lo como um sujeito outro,
como uma figura de Outrem que, antes de ser sujeito ou objeto, é a expressão de
um mundo possível. É por não aceitar a condição de ‘não-sujeito’ (no sentido de
outro que o sujeito) do nativo que o antropólogo introduz, sob a capa de uma
proclamada igualdade de fato com este, sua sorrateira vantagem de direito. Ele
sabe demais sobre o nativo desde antes do início da partida; ele predefine e
circunscreve os mundos possíveis expressos por esse outrem; a alteridade de
outrem foi radicalmente separada de sua capacidade de alteração. O autêntico
animista é o antropólogo, e a observação participante é a verdadeira (ou seja,
falsa) participação primitiva.
Indaguei o que aconteceria se recusássemos a
vantagem epistemológica do discurso do antropólogo sobre o do nativo; se
entendêssemos a relação de conhecimento como suscitando uma modificação,
necessariamente recíproca, nos termos por ela relacionados, isto é,
atualizados. Isso é o mesmo que perguntar: o que acontece quando se leva o
pensamento nativo a sério? Quando o propósito do antropólogo deixa de ser o de
explicar, interpretar, contextualizar, racionalizar esse pensamento, e passa a
ser o de o utilizar, tirar suas conseqüências, verificar os efeitos que ele
pode produzir no nosso? O que é pensar o pensamento nativo? Pensar, digo, sem
pensar se aquilo que pensamos (o outro pensamento) é “aparentemente irracional”,
ou pior ainda, naturalmente racional, mas pensá-lo como algo que não se pensa
nos termos dessa alternativa, algo inteiramente alheio a esse jogo? Isso é o
mesmo que perguntar: o que acontece quando se leva o pensamento nativo a sério?
Quando o propósito do antropólogo deixa de ser o de explicar, interpretar,
contextualizar, racionalizar esse pensamento, e passa a ser o de o utilizar,
tirar suas conseqüências, verificar os efeitos que ele pode produzir no nosso?
O que é pensar o pensamento nativo? Pensar, digo, sem pensar se aquilo que
pensamos (o outro pensamento) é “aparentemente irracional”, ou, God forbid,
naturalmente racional, mas pensá-lo como algo que não se pensa nos termos dessa
alternativa, algo inteiramente alheio a esse jogo?
Levar a sério é, sobretudo, não neutralizar. É, por exemplo, pôr entre
parênteses a questão de saber se e como tal pensamento ilustra universais
cognitivos da espécie humana, explica-se por certas tecnologias de transmissão
do conhecimento, exprime uma visão de mundo culturalmente particular, valida
funcionalmente a distribuição do poder político, e outras tantas formas de
neutralização do pensamento alheio. Suspender tal questão ou, pelo menos, evitar encerrar a antropologia nela;
decidir, por exemplo, pensar o outro pensamento apenas (digamos assim) como uma
atualização de virtualidades insuspeitas do pensar.
Para isso,
porém, é preciso que tiremos todas as conseqüências do fato de que o discurso
do nativo fala de outra coisa que exclusivamente do nativo, isto é, de sua
sociedade ou de sua mente: ele fala do mundo. Isso significa assumir que “os
verdadeiros problemas da antropologia não são epistemológicos, mas
ontológicos”, como disse tão bem V. Argyrou; e eu me permitira acrescentar: o
verdadeiros objetos da antropologia
não são epistemologias, mas ontologias. Chamo a atenção de vocês para a
utilização cada vez mais freqüente desta palavra, ‘ontologia’, na literatura
antropológica contemporânea. Ela me parece traduzir nossa insatisfação
crescente com a constituição kantiana
ou mais simplesmente moderna, de nossa disciplina.
É claro
que imagem do Ser constitui um solo
analógico perigoso para se pensar as imaginações não-ocidentais, e a noção de
ontologia não deixa de ter seus riscos. Talvez a ousada sugestão de Gabriel Tarde,
de abandonarmos o conceito irremediavelmente solipsista de Ser e recomeçarmos a
metafísica a partir do Ter (Avoir),
no que este implica de transitividade intrínseca, de abertura originária a uma
exterioridade, seja mais interessante em muitos casos. Não obstante, acho
importante a linguagem da ontologia por um motivo, digamos, tático. Ela toma a
contrapelo uma manobra freqüente contra o pensamento do nativo, que consiste no
bloqueio desrealizante desse pensamento através de sua redução às dimensões de
um conhecer ou representar, isto é, a uma ‘epistemologia’ ou a uma ‘visão de
mundo’ — como se o que houvesse a conhecer ou a ver já estivesse resolvido de
antemão; e resolvido, é claro, a favor de nossa
ontologia. A noção de ontologia, portanto, não é evocada aqui para sugerir que
todo pensamento, seja ele grego, melanésio ou amazônico, exprime uma metafísica
do Ser, mas sim para sublinhar que todo pensamento é inseparável de uma realidade que constitui o seu exterior. Isso significa que a
democracia epistemológica costumeiramente professada pela antropologia, quando
afirma a diversidade cultural dos significados, revela-se, como tantas outras
democracias que conhecemos tão bem, muito relativa, pois se apóia ‘em última
instância’ em uma monarquia ontológica absoluta, onde se impõe a unidade
referencial da natureza. É contra essa piedosa hipocrisia relativista que
termino mais uma vez afirmando que a antropologia é a ciência da
autodeterminação ontológica dos povos, e que, assim, ela é uma ciência política
de pleno direito, pois seu motto é — ou deveria ser — aquele mesmo que se
escrevia nos muros de Paris em maio de 1968: ‘l’imagination au pouvoir’. O resto é business as usual.
Em 1974-76, quando comecei a pós-graduação, a
tradição etnológica do Museu Nacional estava em baixa. O Ppgas foi fundado em 1968; minha
dissertação de 1977 sobre os Yawalapíti, o trigésimo-sétimo mestrado da
instituição, foi apenas a terceira a versar sobre uma sociedade indígena. Pouco
antes da criação do Ppgas, Roque
Laraia e Júlio César Melatti haviam ido para a UnB; Roberto Cardoso de
Oliveira, David Maybury-Lewis e Luiz de Castro Faria conduziram o Programa em
seus primeiros passos, e logo em seguida Roberto da Matta retornou de Harvard
para se juntar a eles. Cardoso, o idealizador do Ppgas, foi para a UnB
em 1971, e Maybury-Lewis voltou a Harvard. Por algum motivo, estes dois
pesquisadores, responsáveis por projetos de pesquisa que marcaram época na
antropologia brasileira, não chegaram a formar um contingente de etnólogos no Ppgas; quando lá entrei eles já tinham
partido. Roberto da Matta, após sua tese sobre os Apinayé, começou a se voltar
para o estudo de aspectos da sociedade brasileira. Assim, se a antropologia do Ppgas estava em plena efervescência, a área
indígena adormecia: o movimento dominante era o de anexação das problemáticas
urbana, camponesa e nacional. Mas foi através dos cursos de DaMatta sobre
teoria do parentesco e sobre etnologia sul-americana que reencontrei
Lévi-Strauss e a idéia de estudar índios: pois apesar de todo o estruturalismo
absorvido na graduação, não entrei no Museu já tendo em mente um projeto de
trabalho em etnologia stricto sensu;
eu queria mesmo era apenas fugir da sociologia do Brasil.
Em 1976, quando eu já iniciava minha pesquisa com os
Yawalapíti do Parque do Xingu, Anthony Seeeger chegou ao Ppgas. Seeger era recém-doutorado de
Chicago, estava ligado ao grupo do Harvard/Central Brazil Project, e estudava
os Suyá, grupo jê do Parque do Xingu. Ele co-orientou com Matta o meu mestrado
e foi meu orientador no doutorado. Foi ele quem me formou etnólogo,
ensinando-me muitas coisas que não se acham nos livros. Seeger relançou a
etnologia como área de trabalho no Museu Nacional, restabelecendo a
continuidade com uma das linhas de pesquisa que ali se desenvolveram nos anos
60, aquela que deriva do projeto de estudo dos Jê do Brasil Central.
* * *
Embora
institucional e pessoalmente entrelaçadas, as duas linhas principais de
pesquisa etnológica do Museu Nacional apontavam-me em direções opostas. A linha
identificada a Roberto Cardoso de Oliveira, lançada em seu projeto
“Estudo de áreas de fricção interétnica no Brasil” (1962), parecia-me demasiado
próxima daquilo de que eu fugia como o diabo da cruz. Com efeito, Cardoso de
Oliveira propunha uma “sociologia do Brasil indígena”, enquanto eu buscava uma
antropologia a partir de sociedades indígenas (acidentalmente) brasileiras. Por
trás das teorias de Cardoso, apesar de suas contribuições decisivas para a
sociologia geral do contato interétnico, eu acreditava divisar vestígios da
tradicional subordinação da etnologia brasileira a uma Teoria do Brasil, cuja
expressão caricaturalmente exemplar era a obra de seu antecessor Darcy Ribeiro,
que consagrara sob o modo teórico a dominação que denunciava. O que me
interessa não é a “questão nacional”, ou qualquer “teoria do Brasil”. O que me
interessa não é, tampouco, a “questão indígena”, nome do problema que a
existência passada, presente e futura dos povos indígenas significa para a
classe e a etnia dominantes no país. O que me interessa são as questões
indígenas, no plural — entenda-se, as questões que as culturas indígenas se
põem elas próprias, e que as constituem como culturas distintas da cultura
dominante. Digamos então que o que me interessa não são os índios enquanto
parte do Brasil, mas os índios sem mais; para mim, se algo é parte de algo, é o
“Brasil” que é parte do contexto das culturas indígenas, e não o contrário.
Entre as questões indígenas encontra-se, naturalmente, e já lá vão quinhentos
anos, a “questão dos brancos”, ou seja, o problema que o “Brasil” oferece para
os povos indígenas que aqui vivem. Mas o “Brasil” é apenas um desses problemas
práticos e teóricos que se oferecem aos índios, pois os brancos são apenas mais
uma dentre as várias espécies (embora uma espécie particularmente problemática)
de Outros com quem cada sociedade indígena deve se haver: os animais, os
espíritos, os outros povos indígenas…
A segunda linha de pesquisa, identificada a
Maybury-Lewis, permitia o acesso à antropologia de minha preferência.
Tratava-se do estudo etnográfico das sociedades Jê e Bororo do Brasil
Central, que haviam sido objeto de trabalhos célebres de Nimuendaju e
Lévi-Strauss, e que apresentavam enigmas consideráveis para a teoria do parentesco
e para as tipologias em vigor sobre as culturas sul-americanas. Os Jê e Bororo
possuem uma organização social complexa, onde se reencontram figuras
clássicas da etnologia: metades, sociedades cerimoniais, classes de idade,
terminologias de parentesco de tipo “crow-omaha” (um dos gadgets prediletos dos entendidos), ritos de iniciação, prestações
cerimoniais, aldeias circulares...
Maybury-Lewis fora aluno de Herbert Baldus, em São
Paulo, e depois de Rodney Needham, em Oxford. Havia-se distinguido por suas
contribuições à chamada “teoria da aliança”, que vem a ser a versão inglesa da
teoria d’As Estruturas elementares do
parentesco; havia também entrado em uma polêmica com Lévi-Strauss a
propósito das organizações dualistas; e havia produzido uma das primeiras
monografias modernas sobre uma sociedade indígena sul‑americana.
Ele e o grupo de “jê-ólogos” — Matta, Melatti, Turner, Crocker, Lave,
Bamberger, e numa próxima geração acadêmica, Seeger — eram assim uma ligação
com o centro clássico da teoria antropológica, capazes de pôr os índios
brasileiros na série que incluía os trobriandeses, os Nuer, os Kachin e os
Crow.
Antes de me decidir pela etnologia, flertei um
bom tempo com a antropologia urbana, trabalhando como assistente de Gilberto
Velho em pesquisas sobre o estilo de vida da classe média carioca e a cultura
das drogas. Tenho até hoje interesse pelo tema. Mas resolvido a experimentar o
trabalho com índios, embarquei numa excursão que a lingüista Charlotte Emmerich
conduziu ao Parque do Xingu em 1975 — havia uma tradição de estudos xinguanos
no Museu Nacional, em antropologia e em ciências naturais —; acabei voltando lá
e fazendo uma dissertação sobre os Yawalapíti. No doutorado, após duas
tentativas malogradas de achar uma situação que me conviesse, fui parar nos
Araweté.
* * *
Com exceção de um breve survey dos Kulina do Purus, estudei sociedades fracamente
articuladas ao sistema nacional, isto é, relativamente “tradicionais” e
“isoladas”. Minhas duas teses foram sobre grupos com menos de duzentas pessoas,
o primeiro parte de um sistema regional indígena protegido, em 1975-77, de
interferências disruptivas diretas, o outro um povo que em 1981 tinha apenas
cinco anos de contato regular com o órgão indigenista oficial, e quase
nenhuma interação com estrangeiros. Houve nesta escolha muito romantismo e
emulação, mas foi também algo consistente com meus interesses teóricos. Sempre
estive consciente que os Yawalapíti e os Araweté não representavam nenhuma
situação típica, seja da condição indígena contemporânea, seja do que teria
sido o mundo pré-colombiano: seu pequeno contingente demográfico, sua
condição relativamente isolada e protegida é o fruto da mesma história hostil
que destruiu ou subordinou centenas de outras sociedades. Mas se eu estivesse
interessado em fenômenos majoritários, não teria ido estudar índios, para
começar; e estes povos apresentavam uma situação mais simples, para o que me
interessava: o estudo de outras — para usarmos a fórmula de Wittgenstein —
“formas de vida”. Tratava-se de encontrar, na estreita margem do possível,
condições propriamente experimentais, isto é, onde eu pudesse fazer abstração
legítima das conexões entre o que se pode abarcar com os olhos e o que está
além. Assim, a escolha de grupos “isolados” foi uma decisão tática de
limitação: queria encontrar uma forma de vida suficientemente distante
para que fosse apreensível em seu esquematismo básico; apreensível, isto é, por
aquilo que Lévi-Strauss chamou de “ponto de vista astronômico” da etnologia.
Escrevi, em ambos os casos, etnografias gerais,
mas com ênfase na “cosmologia”: as estruturas espácio-temporais da
sociabilidade, a posição dos humanos na ordem dos seres vivos, as
classificações étnicas e sócio-políticas, os dispositivos e condições de
articulação entre o socius e seu
exterior, os idiomas simbólicos organizados em torno das substâncias que
comunicam o corpo e o mundo, a ideologia do parentesco, a etnopsicologia, a
concepção da pessoa, a escatologia, etc. Em nenhum momento fiz
propriamente “etnociência”, ou se o fiz, foi uma etno-sociologia:
preocupava-me a ontologia social yawalapíti e araweté, a concepção de sociedade
que dava unidade aos domínios simbólicos que isolei, a orientação teórica e
prática do pensamento social destes povos. Para tanto, era preciso associar
esta investigação cosmológica a uma descrição sociológica — sistema de
parentesco, estrutura econômica, vida política, organização ritual... dimensões
que tomei como imersas num quadro ideológico mais amplo, inseparáveis do
discurso indígena sobre a identidade e a diferença, o social e o extra-social,
o humano e o não-humano, a corporalidade e a espiritualidade, a vida e a morte.
Tais estudos só podem ser chamados de
“estruturalistas” com alguma boa vontade. Se eles efetivamente o são, é porque
as dimensões semânticas que privilegiaram, e as interpretações a elas dadas,
são tributárias de uma leitura etnográfica das Mythologiques de Lévi-Strauss, interessada menos nas propriedades
gerais do discurso mitológico em si que no pensamento social ameríndio expresso
neste discurso. Os temas e o estilo intelectual de minhas etnografias
derivam daí, embora eu tenha dado pouca atenção à mitologia yawalapíti ou
araweté enquanto tais, preferindo trabalhar com um material mais heteróclito. O
que talvez resgate estes estudos da epigonia seja sua orientação propriamente
etnográfica, de um lado — a tentativa de reconstituição de sistemas
locais de pensamento e ação —, e, de outro, uma certa inquietação teórica que
se aventura nas fronteiras da temática estruturalista.
Na minha pesquisa sobre os Araweté, em particular,
tentei explorar domínios onde a máquina lévi-straussiana se mostra limitada,
como é o caso daqueles dispositivos simbólicos das culturas ameríndias que
escapam a uma concepção metaforista da significação e aos operadores
interpretativos “totêmicos” que supõem um contraste estático e reversível entre
termos que permanecem distintos das relações que os ligam. O fenômeno-tipo de
tais dispositivos metonímicos, assimétricos e irreversíveis foi para mim o canibalismo
ritual dos povos tupi, que aparece sob uma forma teológica e escatológica entre
os Araweté. Foi a partir da questão do canibalismo que começou a se desenhar o
que vem sendo meu trabalho atual, conduzido em sintonia com o de alguns colegas
no Brasil e no exterior: uma investigação comparativa sobre o lugar e a função
da alteridade nas sociedades amazônicas. Isto me levou a retomar questões
clássicas da teoria do parentesco e a caminhar na direção de uma teoria mais
abstrata das estruturas sociais amazônicas.
Minha pesquisa com os Yawalapíti foi muito curta,
mesmo para os padrões de um mestrado: cerca de dois meses de campo (voltei para
mais dois meses um ano após defender a dissertação). Tive dificuldades
burocráticas e logísticas para chegar ao Xingu, problemas de prazo acadêmico, e
pequei por falta de perseverança
Não cheguei a ficar tempo suficiente entre os
Yawalapíti para poder falar algo de sua língua, condição fundamental para o
tipo de trabalho a que me proponho. No correr de minha estada, além de fazer o
dever de casa antropológico, fui alinhavando detalhes que me pareciam
significativos, modulações de temas clássicos, vagas intuições de
conjunto. Alguns tópicos se destacaram, particularmente uma “teoria” da
fabricação do corpo que, sobre permitir articular domínios diversos, como a
ideologia do parentesco, as reclusões rituais, os regimes sexual e alimentar, a
imagem do homem ideal, o xamanismo e a doença, os valores simbólicos do espaço,
parecia indicar também que o pensamento xinguano não professa um dualismo entre
processos físicos e processos sociais, entre o que releva da espontaneidade
natural e o que resulta da intervenção cultural: a fisiologia era ali
imediatamente uma moral. Outro gancho heurístico importante foi fornecido por
um traço da língua yawalapíti, que me pareceu consistente com um aspecto
central de sua cosmologia: trata-se de um conjunto de modificadores
nominais que exprimem a distância progressiva dos entes do mundo face a um
mundo mítico-espiritual de protótipos ou de essências ideais, definidas como
sendo ao mesmo tempo perfeitas e excessivas em relação às suas réplicas atuais.
Isto, associado a inúmeras outras pistas, levou-me a caracterizar a cosmologia
yawalapíti como fundada na gradação e na continuidade, em nítido contraste com
o estilo binário e descontinuísta dos Jê.
* * *
Antes de chegar nos Araweté, passei dois meses entre
os Kulina do Purus, em 1978, para um levantamento etnográfico. As
perspectivas eram interessantes, mas a situação dos Kulina, presos então nas
malhas do aviamento e do barracão, tentando adquirir instrumentos para melhorar
sua posição no sistema regional, disputados pela Igreja, pela FUNAI e pelos patrões, fez-me desistir.
Eles careciam de alguém com maior compreensão da história e da sociologia da
Amazônia, e que fosse capaz de estudar algo que lhes interessasse. Este não
era, infelizmente, o meu caso. Deixei de estudar os Kulina não porque eles não
fossem “tradicionais” (sua cultura funcionava vigorosamente), mas sim porque eu
perseguia uma situação mais simples. Desistindo deles, tentei uma pesquisa com
os Yanomami, mas embaraços logísticos me fizeram arrepiar caminho após
três meses de campo em 1979, boa parte deles passada num posto indígena. Foi
então que me surgiram os Araweté, pequena e ignota tribo tupi-guarani que havia
sido anexada pelo Estado brasileiro em 1976.
Levei quase um ano saltando os obstáculos armados por
um dos setores então mais ineptos, corruptos e autoritários da burocracia
nativa, a Fundação Nacional do Índio. Comecei o trabalho de campo em 1981 e o
terminei em 1983, passando um total de onze meses na aldeia do Ipixuna. Por
motivos diversos, entre os quais alguns já mencionados quando falei dos
Yawalapíti, não cheguei a passar mais de três meses e meio seguidos na área.
Repetidos ataques de malária encerraram o trabalho antes do desejável.
Perto dos Yawalapíti, os Araweté eram selvagens hard core. Praticamente monolíngües, com
pouca experiência dos brancos e nenhuma de antropólogos, minha convivência com
eles foi intensa e educativa para ambas as partes. Envolvi-me emocionalmente
com as pessoas, aprendi como pude sua língua, fiz algumas tentativas de
viver parecido com elas, e conduzi uma pesquisa muito mais desorganizada que
aquela com os Yawalapíti. Como a maioria dos etnógrafos, muitas vezes esqueci o
que estava fazendo lá, e todo o tempo acompanhou-me a sensação de que não teria
nenhuma tese a escrever.
* * *
Entre os Araweté, ao contrário da experiência
anterior, apeguei-me muito cedo a uma questão: à relação entre os humanos e os Maï, termo que traduzi por “deuses” ou
“divindades”, e em particular ao tema da transubstanciação canibal póstuma
sofrida pelos viventes no céu, que os transforma em seres semelhantes àqueles
que os devoram, os Maï. Acreditei que
os deuses e seu intrigante canibalismo eram “o problema” desta sociedade, seu
gado ou sua bruxaria. Como nestes casos proverbiais, entretanto, eles só me
interessavam enquanto via de acesso a algo menos concreto e mais geral; no
caso, a cosmologia Araweté, sua concepção do homem, da sociedade e do mundo.
Mais que gado nuer ou bruxaria azande, a relação entre humanos e deuses no
pensamento araweté funcionou para mim como um análogo do kula de Malinowski, do naven
de Bateson ou da guerra de Florestan: como aquele “fato social total” que serve
de fio condutor para a investigação uma cultura. Não sei se o complexo de
relação com os Maï ocupa um lugar
psicologicamente central na vida dos Araweté; mas, tal como sua vida me foi por
eles apresentada, penso que se trate de algo efetivamente importante em sua
cosmologia: os Maï e o que lhes dizia
respeito eram o “idioma”, o topos
dominante da cultura araweté. Só assim ele poderia desempenhar com pertinência
a função que lhe atribuí, a de eixo para a construção de uma etnografia
geral, sem o qual esta se torna uma tediosa ficha dividida em tópicos
escolares: economia, parentesco, política, religião, mudança social, etc. Mas
não duvido que outro etnógrafo, que partisse de outras questões e outras
ênfases, fosse capaz de oferecer uma imagem da sociedade araweté capaz de
iluminar aspectos que deixei na sombra.
Falei acima na função de “gancho” heurístico
desempenhada por certos temas ou complexos de uma cultura na construção de uma
etnografia. É preciso ter claro que este recurso, se é mais que um mero
formalismo expositivo — pois uma sociedade ou cultura não se deixa abordar com
igual felicidade por qualquer lado —, não revela por isso uma espécie de
quintessência da forma de vida que descrevemos, seu plano diretor ou sua chave‑mestra.
É preciso, sobretudo, cautela com a linguagem teoricista que trata uma cultura
como se fosse um conjunto de proposições filosóficas sobre o mundo,
capazes de serem reduzidas a “princípios” essenciais. Não sei até que ponto
esta representação principista de uma cultura alheia é inevitável — eu
certamente exagerei na dose, em minha tese sobre os Araweté —, mas ela pelo
menos não deveria ser vista como natural; é certamente tão convencional quanto
a visão instrumentalista e “estratégica” que se costuma propor como alternativa
mais “verdadeira” a ela. Digamos que acredito na principialidade da
teo-escatologia dos Araweté tanto quanto, por exemplo, eles acreditam em sua
substância: a existência póstuma, divina e celeste, é excelente — mas ninguém
cortaria o próprio pescoço para antecipá-la. Teoria, lá como cá, é teoria.
Isto posto, foi deliberadamente que dei uma
interpretação “anagógica”, na dupla acepção do termo, da cultura araweté:
persegui ali as manifestações da teologia dos Maï, e busquei ligar uma quantidade de processos, eventos e
conceitos a uma visão total do mundo, que funcionaria como uma espécie de causa
formal suprema desta cultura. O que é a noção de “fato social total”, senão uma
reivindicação da anagogia como método interpretativo? Como passar de técnicas
de cozinha, estilos de pintura corporal, expressões idiomáticas, movimentos
rituais, taxonomias de parentesco, a algo como uma “cultura”, sem um esforço
metódico de super-interpretação (no sentido teatral) desta massa de detalhes
que, tomados em si, são mudos, mas que uma vez encadeados se põem a falar,
sugerindo uma significação que os engloba a todos? Anagogia e analogia
são procedimentos automáticos do etnógrafo.
Pactuei, sobretudo, com o demônio da anagogia quando
fiz da vida araweté a expressão de uma filosofia do devir que
se manifestaria em seu estilo de sociabilidade, sua ética, sua vida ritual, seu
xamanismo e sua escatologia. Isto foi, repito, deliberado. Quis apresentar os
Araweté sob esta luz: como praticando, senão professando (pois têm mais o que
fazer, e não possuem metafísicos profissionais), uma autêntica ontologia,
capaz de ser inferida de suas formas de sociabilidade e de seu estilo
cognitivo. Quis dar a seu pensamento uma apresentação que o livrasse do
exotismo de pacotilha e do sociologismo acachapante; escolhi um vocabulário
vagamente filosófico para que o respeitassem como pensamento.
Ingenuidade logocêntrica de minha parte, certamente.
* * *
De início, o problema com que me defrontei era o
seguinte: o que fazer com a sociedade araweté? Como dar sentido ao que eu via —
onde estava, a rigor, a sociedade? Defrontava-me com uma daquelas típicas
“organizações fluidas” da Amazônia, sem segmentações sociocêntricas, sem
grupos de descendência, sem normas claras de aliança ou de residência, com uma
chefia nominal, e nenhum pendor para a ação coletiva; para piorar as
coisas, mesmo os lugares comuns do americanismo tropical não eram levados muito
a sério: couvade, evitação dos
afins, tabus alimentares, relações complicadas com os espíritos da mata,
simbolismo espacial desenvolvido... Demorei um pouco a perceber que a saída era
o xamanismo e as entidades nele envolvidas, os Maï e os mortos do grupo; em seguida, que havia um complexo
guerreiro importante; dei-me conta que as idéias relacionadas à morte e ao
destino póstumo permitiam “costurar” a sociedade e a pessoa, a sociologia e a
psicologia araweté. Se eu não tinha nenhum interesse especial pela teologia,
pela morte, pela legião de espíritos que povoa o cosmos araweté, passei a tê-lo
desde que ficou claro que era sobre isto que eles preferiam falar comigo;
era, também, uma das poucas coisas a que eu me podia agarrar, naquele povo
“imperceptível”, sem nenhuma queda para a minúcia ritual ou para o espetáculo
sociológico. O canibalismo divino, finalmente, me abriu o caminho até os
Tupinambá: decidi que este traço da escatologia araweté remetia ao complexo da
antropofagia ritual tupi-guarani, e que os fatos araweté e os fatos
quinhentistas iluminavam-se mutuamente. Aquilo que nos Tupinambá fora sociologia,
nos Araweté havia sido transformado em psico‑teologia; e portanto,
haveria que ver quão sociológica era esta, quão psico‑teológica aquela.
Dois estudos foram fundamentais para que minha
análise tomasse forma: o de Hélène Clastres (1975) sobre o profetismo
tupi-guarani antigo, o de Manuela Carneiro da Cunha (1978) sobre o sistema
funerário e a noção de pessoa entre os Krahó, grupo jê. O primeiro, além de me
dar uma linguagem para pensar a cosmologia araweté dentro de um horizonte
tupi-guarani, serviu-me para consolidar a idéia de que a metafísica araweté
concebe a condição humana ou social como um lugar precário e instável, um
intervalo entre formas do extra-social: Natureza e Sobrenatureza, mundo animal
e mundo divino. Foi este livro que me permitiu ver, ainda, a importância
decisiva da temporalidade e do devir nas cosmologias tupi-guarani, em
detrimento daquela ênfase na espacialidade como domínio privilegiado de
inscrição do social, característica do more
geometrico das sociedades jê. A partir daí, propus um modelo da cosmologia
tupi-guarani onde a dimensão temporal engloba a espacial; onde, na primeira, o
fim predomina sobre a origem; na segunda, a verticalidade sobre a
horizontalidade; onde, finalmente, o extra-social engloba hierarquicamente
o humano/social, a alteridade precedendo e determinando a identidade. Tentei
ainda mostrar como o canibalismo tupi-guarani era um dispositivo central desta
cosmologia, que consolidava em uma só figura a questão da temporalidade e
a da alteridade determinadora.
O trabalho de Carneiro da Cunha foi outra inspiração
importante. Sua análise da morte serviu de modelo para muito do que escrevi;
suas considerações sobre a escatologia ajudaram-me a precisar a distintividade
da concepção araweté. Se Manuela pôde definir a escatologia krahó como
uma reflexão sobre as condições de possibilidade do socius, sugeri que a escatologia araweté é mais que isto: é um
espaço de relações imediatamente sociais; na verdade, é o espaço da relação
social por excelência — a aliança entre os deuses e homens.
Um dos aspectos que mais me intrigava na relação dos
humanos com os Maï era a mistura de
antagonismo e desejo. O deuses eram ao mesmo tempo classificados como
inimigos canibais e pensados como araweté perfeitos. Os mortos, devorados e
refeitos, casam-se com estes deuses. Quando eles vêm à terra, prelibam
alimentos e bebidas oferecidos pelos humanos; e toda a organização ritual do
grupo gira em torno de festas onde os deuses e mortos são os convidados de
honra. Logo me ficou claro que os deuses são uma espécie de afins
transcendentais dos viventes, a quem se ligam por relações de casamento e
prestações alimentares. Demorei a entender o que eles davam em troca de
cônjuges e de comida; agora estou certo de que é a vida: a cosmologia araweté
fala de um apocalipse provocado pelo desabamento do céu, e uma série de
indícios (pois as pessoas não gostam de mencionar estas coisas) sugere que os
mortos e a comida cerimonial são os penhores da boa-vontade dos Maï, desta vida provisória terrestre de
que os humanos se beneficiam.
Os deuses encarnavam assim a ambigüidade
característica das relações de afinidade no pensamento ameríndio:
necessárias mas perigosas, elas fundam o socius,
mas trazem para dentro dele a exterioridade predatória. Ora, a vida social araweté
me parecia desmarcar deliberadamente as relações de afinidade; ao
contrário de tantas culturas do continente, não há regras de evitação
onomástica ou comportamental entre afins. Eles professam também um ideal
de endogamia de parentela (e traços do matrimônio clássico dos tupi-guarani,
com a filha da irmã), que sugere uma vontade de ficar “entre
parentes”, dispensando ao máximo a afinidade. Mais ainda, sua instituição
mais valorizada e evidente é um tipo de amizade formal entre não-parentes
fundada na partilha de cônjuges: uma relação, exatamente, de
“anti-afinidade”. Ela serve de modelo genérico de toda relação social com
estranhos, ocupando assim o lugar que a maioria das sociedades ameríndias
concede à afinidade. Era tudo isto que dava à sociedade araweté este
aspecto amorfo, pouco estruturado segundo as linhas canônicas do mundo
primitivo, rebelde à aliança e à reciprocidade instituinte. Mas acreditei ter
achado uma resposta: a aliança em sua forma clássica de dispositivo
sociogenético — a troca matrimonial e a relação de afinidade — havia
sido, como tantas outras coisas na cultura araweté, deslocada da terra para o
céu, ou melhor, para as relações entre
a terra e o céu, entre humanos e divindades. A teologia araweté era diretamente
uma sociologia, e não um fantasma seu; a sociedade incluía os deuses e os
mortos; e sua metade visível, o mundo humano, era a parte subordinada de uma
estrutura hierárquica complexa, fundada na reciprocidade diacrônica e
assimétrica entre os humanos mortais e os canibais imortais.
A determinação do estatuto “afinal” da
alteridade divina muito se aproveitou das análises de Manuela sobre a
identificação krahó entre mortos e afins (um tema que aparece em
numerosas etnografias, mas que ela soube explorar muito bem). Um outro
aspecto de seu trabalho também foi útil ao meu. Sua definição da pessoa
krahó por processos de dupla negação, onde as identidades se constituem pelo
emparelhamento com “antônimos”, onde algo só é plenamente si mesmo no momento
de sua negação por uma figura contrária, onde “eu sou aquilo que o que eu
não sou não é” (Carneiro da Cunha), pareceu-me oferecer um contraste fascinante
com os dispositivos araweté (e tupi-guarani em geral) de construção da pessoa e
de posição de identidades. O juízo ontológico krahó é um perfeito exemplo de
juízo analítico, fundado em uma lógica da oposição diacrítica. Ora, o “método
canibal” da escatologia araweté e da sociologia guerreira dos tupinambá
parece-me antes ser um caso de juízo sintético a priori, onde a
suplementaridade predomina sobre a complementaridade, onde a produção da
identidade exige uma saída para fora do “sujeito”, uma incorporação da
alteridade de um modo dinâmico, sacrificial mais que totêmico, metonímico
mais que metafórico, onde a posição de “eu” e de “outro” reverberam sem se
deter em nenhum dos pólos; onde, finalmente, a predicação analítica e
atributiva dá lugar à predação sintética e incorporante. Esta linha de
raciocínio serviu para que eu tentasse marcar a singularidade do canibalismo
tupi‑guarani dentro das concepções da alteridade características das
cosmologias ameríndias, singularidade que resumi na fórmula: “o Outro não é um
espelho, mas um destino”.
Ao final desta interpretação da cosmologia
araweté, embarquei em uma reanálise do complexo guerreiro-canibal dos antigos Tupinambá,
tomando Florestan Fernandes como principal interlocutor. Florestan tratou a
vingança antropofágica tupinambá como um culto aos mortos do grupo e uma
comunhão com os ancestrais. O cativo de guerra era uma vítima sacrificial
que restabelecia a continuidade da sociedade com seu próprio passado, a
vingança canibal era movida por uma “dialética interna”. A religião tupinambá,
de que a guerra era um instrumento, era um culto durkheimiano da eunomia e da
restauração do “Nós coletivo”.
Para
chegar a esta interpretação, Florestan precisou relegar ao plano das “funções
derivadas do sacrifício humano” um aspecto a meu ver essencial, a saber, o
valor iniciatório da execução dos cativos (condição indispensável ao acesso dos
homens à condição de adultos, capazes de terem filhos legítimos), bem
como a máquina da renomação e renominação que girava em torno da proeza
guerreira. Precisou subordinar as funções criativas e produtivas da guerra às
suas funções restauradores e recuperadoras, o futuro ao passado, a relação com
os outros ao “Nós coletivo”. Como alternativa, propus uma visão onde os
inimigos, mais que intermediários entre vivos e mortos do grupo, eram um pólo
essencial de atração da sociedade; onde a vingança era um fim e não um
meio, e a morte de um membro do grupo um mero pretexto para a reprodução da
relação social instituinte, aquela que se travava com os inimigos. Assim como a
sociedade araweté inclui os Maï, a
sociedade tupinambá incluía seus inimigos: era preciso repensar a geometria
simples de uma partição entre “interior” e “exterior” do socius.
Analisei o simbolismo do cativo como cunhado e como
animal de estimação, sua relação com o domínio feminino, sua função de
prestação matrimonial, sua “uxorilocalização” forçada e as relações disto com a
regra de residência tupinambá, as conexões entre o casamento preferencial
hiper-endogâmico (avuncular) e a “hiper-exogamia” que era o casamento dos
cativos com mulheres do grupo. Sublinhei os valores escatológicos da morte em
mãos inimigas, ligados à problemática pan-tupi de imortalização pela sublimação
da porção corruptível da pessoa — analisei o canibalismo do ponto de vista da
vítima, como sendo o ritual funerário ideal. Finalmente, arrisquei‑me a
enfrentar a questão do rito canibal, de interpretação teórica espinhosa. As
leituras “simbolistas” e estruturalistas do canibalismo, que pretendem ir além
da imputação de crenças psico-bromatológicas aos selvagens (do tipo
“incorporação da força” dos inimigos), esbarram num problema básico: o ato
mesmo do comer o humano. Pois os efeitos simbólicos visados pelo ritual, tal
como imaginados pelos analistas, poderiam ser realizados sem a literalidade dos
Tupinambá — como o são em tantas culturas do planeta —, que comiam de fato seus
cativos de guerra. A passagem ao ato é um problema maior para as teorias do
ritual. Foi assim que, forte do que divisara na escatologia araweté, vim a
definir o canibalismo tupinambá como um processo de determinação lógica
pelo inimigo, uma “incorporação da inimizade”, que redundava em um “pôr-se no
lugar do outro” de forma a incorporar seu ponto de vista mais que sua
substância. Meu argumento, simplesmente posto, é que o canibalismo era um modo
de virar inimigo, e isto era o processo definidor da identidade
tupinambá, identidade constituída intrinsecamente pela, ou melhor, na alteridade.
De um
ponto de vista mais abstrato, meu trabalho consistiu sempre em tentar
problematizar e complexificar os dualismos característicos do repertório
conceitual de nossa disciplina, como também aqueles, e isto é o realmente
importante, que costumam ser atribuídos pela antropologia aos sistemas de
pensamento da Amazônia indígena: organizações
dualistas, classificações sociais binárias, dualidades míticas e cosmológicas,
e assim por diante. Os escritos sobre os Yawalapíti abordaram a questão da
irredutibilidade da cosmologia xinguana ao dualismo natureza/cultura, sugerindo
um caráter contínuo e ternário, antes que descontínuo e binário, das
classificações e processos simbólicos xinguanos. A monografia sobre os Araweté,
em seguida, propôs uma conexão entre ‘sociologia’ e ‘cosmologia’ — relações dos
humanos entre si e relações entre os humanos e os sobre-humanos — que buscava
passar ao largo da dualidade durkheimiana entre ‘instituição’ e ‘representação’,
definindo uma configuração hierárquica complexa, mas ontologicamente homogênea,
a opor-ligar os deuses e os humanos, e conseqüentemente os vivos e os mortos,
os xamãs e os guerreiros, as mulheres e os homens, os concidadãos e os
inimigos. Meus trabalhos sobre o parentesco apontaram as linhas de
instabilidade que atravessam uma matriz dualista difundida na Amazônia,
insistindo na natureza triádica, concêntrica e hierárquica — antes que diádica,
diametral e eqüipolente — da oposição entre consangüinidade e afinidade, e
resultaram na proposição de um novo conceito, o de afinidade potencial.
Finalmente, os trabalhos sobre o perspectivismo consolidados nos caps. 7 e 8
retomam, em termos bem mais ambiciosos, a questão da oposição natureza/cultura,
ligando-a à antinomia moderna do ‘relativismo’ e do ‘universalismo’, de modo a
submeter esta última a uma crítica propriamente etnográfica.
O outro
fio condutor, este mais concreto, foram os temas da pessoa e da corporalidade,
e sua conexão com uma idéia-valor característica, que chamei de ‘predação
ontológica’, e que me pareceu constituir o regime geral de subjetivação ou
personificação na maioria, senão todas, as culturas da Amazônia indígena. Minha
aprendizagem etnográfica junto aos Yawalapíti concentrou-se no problema da
fabricação social do corpo e em seu recíproco, a inscrição corporal dos
‘processos’ e ‘identidades’ sociais. O trabalho sobre os Araweté, embora menos
centrado na corporalidade, tratou das concepções tupi-guarani sobre a pessoa,
desenvolvendo o tema da predação ontológica e explorando seu esquema principal,
o canibalismo. Esse complexo amazônico da ‘predação’ (assim o chamei para
opô-lo provocativamente ao complexo modernista da ‘produção’; hoje talvez o
chamasse por outro nome) foi igualmente o foco de meus estudos sobre a dinâmica
da afinidade e o horizonte para uma reelaboração teórica, ainda incipiente, da
noção de ‘troca’. Os trabalhos mais recentes, por fim — aqueles sobre o
perspectivismo e sobre a passagem do virtual ao atual na socialidade indígena
—, tentam uma determinação da economia conceitual do ‘corpo’ e da ‘alma’ nas
cosmologias ameríndias.
Corpo,
alma, pessoa, natureza e cultura, predação, troca, afinidade potencial,
perspectiva — estes são os nomes dos temas, ou melhor, dos conceitos que foram
surgindo em minha reflexão sobre a etnologia amazônica. Como o leitor
advertirá, tais palavras recebem sentidos cada vez mais precisos ao longo dos
textos a seguir, porque cada vez mais motivados teórica e etnograficamente, e
portanto cada vez mais diferentes de seus sentidos usuais. Esses conceitos são
o resultado provisório de um trabalho desde sempre orientado por um desiderato
maior: contribuir para a criação de uma linguagem analítica à medida (à altura)
dos mundos indígenas, o que significa dizer uma linguagem analítica radicada
nas linguagens que constituem sinteticamente esses mundos. Sua elaboração
envolve forçosamente uma luta com os automatismos intelectuais de nossa
tradição, e não menos, e pelas mesmas razões, com os paradigmas descritivos e
tipológicos produzidos pela antropologia a partir de outros contextos
socioculturais. O objetivo, em poucas palavras, é uma reconstituição da
imaginação conceitual indígena nos termos de nossa própria imaginação. Em
nossos termos, eu disse — pois não temos outros; mas, e aqui está o ponto, isso
deve ser feito de um modo capaz (se tudo ‘der certo’) de forçar nossa
imaginação, e seus termos, a emitir significações completamente outras e
inauditas. A antropologia, como se diz às vezes, é uma atividade de tradução; e
tradução, como se diz sempre, é traição. Sem dúvida; tudo está, porém, em saber
escolher quem se vai trair. Espero que minha escolha tenha ficado clara. Quanto
a saber se a traição foi eficaz, eis aí uma questão que não me cabe responder.
* * *
Minha
contribuição mais recente ao americanismo e, ouso acreditar, à teoria
antropológica mais ampla foi a estabilização conceitual do “perspectivismo”
cosmológico ameríndio. Este foi um rótulo que tomei emprestado ao vocabulário
filosófico moderno para qualificar um aspecto muito característico de várias,
senão todas, as cosmologias ameríndias. Trata-se da noção de que, em primeiro
lugar, o mundo é povoado de muitas espécies de seres (além dos humanos
propriamente ditos) dotados de consciência e de cultura, e, em segundo lugar,
de que cada uma dessas espécies vê a si mesma e às demais espécies de modo
bastante singular: cada uma se vê como humana, vendo todas as demais como
não-humanas, isto é, como espécies de animais ou de espíritos. Assim, por
exemplo, as onças se vêem como gente, vendo ainda vários elementos de seu
universo como se consistissem de objetos culturais: o sangue dos animais que
matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca, etc. Em contrapartida, as
onças não nos vêem, a nós humanos (que naturalmente nos vemos como humanos),
como humanos, mas sim como animais de presa: porcos selvagens, por exemplo. É
por isso que as onças nos atacam e devoram. Quanto aos porcos selvagens (isto
é, aqueles seres que vemos como porcos selvagens), estes se também se vêem como
humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres que comem como se fossem
plantas cultivadas — mas vêem a nós humanos como se fôssemos espíritos canibais
(pois os caçamos e comemos).
Há vários
desdobramentos e implicações desse complexo de idéias: por exemplo, que a forma
corporal de cada espécie é uma roupa ou invólucro que oculta uma forma interna
humanóide; ou ainda, que os xamãs são os únicos indivíduos capazes de assumir o
ponto de vista de mais de uma espécie além da sua própria; ou ainda, que, dada
a humanidade reflexiva de cada espécie, a caça e o consumo de carne animal são
empresas metafisicamente problemáticas, jamais livres de conotações canibais.
Tudo isso assenta em um pressuposto fundamental, a saber, o de que o fundo
comum da humanidade e da animalidade não é, como para nós, a animalidade, mas a
humanidade. Os mitos indígenas descrevem uma situação originária onde todos os
seres eram humanos, e a perda (relativa) desta condição humana pelos seres que
vieram a se tornar os animais de hoje. Ou seja, se para nós os humanos “foram”
apenas animais, e se tornaram humanos, para os índios os animais “foram”
humanos, e se tornaram animais. Nós pensamos, é claro, que os humanos fomos
animais mas continuamos a sê-lo, por baixo da “roupa” sublimadora da
civilização; os índios, em troca, pensam que os animais, tendo sido humanos
como nós, continuam a sê-lo, por baixo de sua roupa animal. Por isso, a
interação entre humanos propriamente ditos e as outras espécies animais é, do
ponto de vista indígena, uma relação social, ou seja, uma relação entre
sujeitos.
Entre as
conseqüências filosóficas mais interessantes dessa doutrina perspectivista
indígena está uma concepção das relações entre “Natureza” e “Cultura” radicalmente
distinta daquela que vigora, em versões historicamente variáveis, na tradição
ocidental, desde o par phusis / nomos da Grécia antiga ao par nature / société do Iluminismo.
Gostaria
de concluir com algumas palavras sobre a Amazônia, pois é aqui que nos
encontramos. Gostaria de terminar falando sobre o ambientalismo, o futuro dos
povos indígenas, e o papel da antropologia.
Os
etnólogos não se destacam por sua grande frequentação das páginas e telas da
mídia. Isso se deve, creio, menos a
alguma timidez ou incompetência de nossa parte que à ignorância e descaso
verdadeiramente assombrosos manifestos pela maioria da intelectualidade (baixa,
média e alta) do país, relativamente aos povos indígenas que aqui vivem. A impressão
que tenho é que o “Brasil” não quer saber de índio, e sempre morreu de medo de
ser associado, “lá fora”, a esse personagem, que deveria ter sumido do mapa há
muito tempo, e virado uma pitoresca e
inofensiva figura do folclore nacional. Mas os índios continuam aí, e vão
continuar. E, como vimos nas duas últimas décadas, eles começaram a ser
admitidos no Brasil oficial-mediático (e mesmo constitucional). Mas isso foi
depois que foram legitimados na metrópole. A Amazônia precisou passar pela
Europa para se tornar visível do litoral do Brasil. Antes assim.
Devastamos
mais da metade de nosso país pensando que era preciso deixar a natureza para
entrar na história; mas eis que esta última, com sua costumeira predileção pela
ironia, exige-nos agora como passaporte justamente a natureza. Para o melhor ou
o pior, nossa estrada de acesso ao universal continua a passar pela mata. Se
este é mesmo o caso, então, depois de séculos de hesitação entre o orgulho e a
vergonha, a incúria e a rapina, é preciso que o país acerte suas contas com o
próprio imaginário, trocando a ambivalência pela dialética — por uma nova
dialética da natureza.
Símbolo
onde veio inesperadamente se ocultar a physis
neste fim de século, a Amazônia é hoje a arena onde se joga uma partida decisiva:
os atores nela envolvidos, conjugando de modo inédito a micro- e a
macro-política, disputam o sentido do futuro. Neste jogo, outra novidade, o
Estado é apenas mais um participante, não o juiz ou o dono da bola. Entre o
Estado e a Natureza, estas duas totalidades imaginárias interconstituídas por
um confronto de onde sempre esteve excluída a sociedade — ora “representada”
pelo primeiro, ora assimilada à segunda —, abre-se agora o espaço para uma nova
geo-política. Trocando a naturalização da política pela politização da
natureza, ligando diretamente a terra à Terra em detrimento das velhas
territorializações estatais, a nova geopolítica do ambientalismo recusa ao
Estado a guarda do infinito e o privilégio da totalização.
Podem-se
ver as coisas, é claro, pela outra ponta, enxergando o antigo no novo.
Cosmologia do capitalismo tardio, ressacralização da história e da geografia
que fecha o ciclo aberto com a expansão quinhentista do Ocidente,
reterritorialização no plano do ecúmeno de um movimento secular de
desterritorialização local, nacional e continental, o discurso ecologista seria
a vingança da Totalidade. Ele anunciaria o advento de um medievo
pós-iluminista: o discurso da finitude e da transcendência, deixando o espaço–tempo
das relações entre o humano e o divino, seria agora articulado no confronto
entre a sociedade e a natureza. A selva amazônica ocuparia, hoje não mais
apenas alegoricamente, o lugar da catedral gótica: a copa das árvores se torna
o dossel sagrado, a Hiléia toma a forma do Espírito. E a Sociedade, que há não
muito tempo atrás era a matriz e o modelo de toda ordem e de qualquer todo,
vê-se agora como desordem e causa de desordem, como hubris suicida que só poderá se redimir se aceitar sua subordinação
a uma totalidade e a uma ordem que a englobam e determinam.
Seja,
pode-se tomar o ambientalismo como uma espécie de repetição do cristianismo, a
minar e ao mesmo tempo reinvestir, em nome de totalidades mais totais e de
universais mais concretos, as míopes abstrações imperiais das Romas modernas —
com os brasileiros, aliás, no equívoco papel de bárbaros a sermos convertidos
pelos missionários desta neo-religião da classe média (um replay naturista da velha ética protestante); bárbaros, ainda por
cima, depositários do Graal amazônico e fiadores da salvação planetária. Seja,
enfim; mas ele pode também ser visto como um discurso radicalmente novo, que
recusa algumas partilhas fundadoras e categorias básicas da chamada
racionalidade ocidental. Em particular, ele rejeita a idéia de que o Homo sapiens é a espécie eleita do
universo — por outorga divina ou conquista histórica —, titular exclusiva da
condição de Sujeito e agente frente a uma natureza vista como Objeto e
paciente, alvo inerte de uma praxis
prometeica. Ele problematiza a categoria da Produção enquanto último avatar da
transcendência — a idéia de que o humano produz e se produz contra o não-humano, movimento infinito
de espiritualização que é negação de uma matéria primeira, produção–separação
da natureza. Em troca, ele proporia uma internalização da natureza, uma nova
imanência e um novo materialismo — a convicção de que a natureza não pode ser o
nome do que está fora, pois não há fora, nem dentro. Esta nova dialética da
natureza depende de uma transmutação dos valores, capaz de decidir que o
supremo interesse humano exige o abandono de uma perspectiva antropocêntrica;
capaz de aceitar que a natureza é sempre a categoria de uma cultura, da qual
recebe desígnios e significados arbitrários, e que ela é a idéia de algo que
escapa a todo sentido e ignora qualquer desígnio: o real, sempre à nossa espera
a cada curva do caminho.
Se a
entendemos assim, como idéia do real, então natureza designa o limite absoluto
da história. Esta é a paisagem de nossa época: o ecúmeno foi saturado pelo
humano, a cultura se tornou coextensiva à natureza, ecologia e antropologia são
hoje coincidentes. Discurso do fechamento da fronteira planetária, o
ambientalismo impõe uma revisão drástica dos paradigmas do progresso e do
desenvolvimento indefinidos, que continuam guiando nossas formas econômicas e
projetos ideológicos. Nossa concepção linear e cumulativa de história —
estruturalmente cega à estrutura, às regulações sistêmicas e às causalidades
circulares — demorou demais a acordar para a constatação de que a miséria, a
fome e a injustiça não são o fruto do caráter ainda parcial, incompleto, da
marcha do progresso, mas seus “sub-produtos” necessários, que aumentam à medida
que tal marcha prossegue na mesma direção. O terceiro mundo já é, porque sempre
foi, parte do primeiro mundo, e está em toda parte. Atravessamos o século XX
com a cabeça do século XIX; o choque do futuro promete ser duro para todos.
* * *
Em um país
que teve (e é) um Estado antes de ter (e ser) uma sociedade, o ambientalismo
ganha uma inflexão peculiar. Se alhures a questão ambiental é em última análise
uma reflexão escatológica sobre as escolhas que constituíram o Ocidente, no
Brasil ela está, como quase tudo, atrelada à perene demanda por uma identidade
nacional — e identidade nacional é, por aqui, assunto de Estado. Se nos países
exportadores do ambientalismo este desenha o horizonte por excelência do
universal, para nós ele hesita entre um discurso cósmico e uma nova figura da paranóia xenófoba.
Afinal, a Amazônia é nossa, e esta conversa de planeta pode não passar de um
conto do vigário dos senhores do próprio. “Desenvolver” ou “preservar” a
Amazônia é uma questão de foro íntimo do Brasil — soberania, soberania… Se
ainda estamos a desbravar o país,
como poderíamos prestar ouvidos a patranhas sobre o mal-estar da civilização?
Os ecologistas, se não são anti-patrióticos agentes do imperialismo, são no
mínimo tolos ingênuos que o servem à própria revelia… Eis assim que o velho
refúgio dos patifes estaria em rota de colisão com o novo refúgio dos patetas.
Há, sem
dúvida, muitos “ecologistas” patetas — como os há espertalhões, hipócritas,
oportunistas e outras variedades. Mas, assim como há patriotas (provavelmente a
maioria) que não são Tartufos, muitos ambientalistas sabem o que fazem, e qual
o tamanho da tarefa que se impuseram, que é a de repensar a sociedade
brasileira, em si mesma e no desconcerto das nações.
Cabe-nos
reinventar uma relação com a natureza (que se é mãe, é também filha da invenção),
o que exigirá uma reinvenção da sociedade. É preciso se convencer de uma vez
por todas que a identidade de uma nação não é jamais causa, mas resultado de
uma sociedade organicamente constituída, e que esta identidade e esta sociedade
não se constituem por um fiat
militar, burocrático ou mediático. Se o Brasil não quiser perder o tal bonde da
história, então precisa, em lugar de encorajar o capitalismo selvagem, aprender
a capitalizar a selva (e não estou
falando de “agrobusiness”), transformando a natureza em símbolo da cultura; em
vez de entoar a conveniente cantilena sobre a Amazônia e a cobiça
internacional, carece coibir a escandalosa rapinagem nacional nesta região;
antes de choramingar a propósito do cinismo colonialista do primeiro mundo (ao
mesmo tempo em que mostra uma constrangedora ânsia de identificação a ele) urge
desmontar a máquina miserável do colonialismo interno, que trata os povos
indígenas como obstáculo à padronização da nacionalidade, e que usa a Amazônia
como válvula de segurança de uma estrutura agrária iníqua. O movimento
ambientalista não é anti-patriótico; ele é sim, quando tomado em seu sentido
radical — não como estetização, mas como politização da natureza —, um levante
contra os donos e os usos ilegítimos da pátria.
A “ecologia”,
é certo, é um discurso importado — como, de resto, o resto. Esqueça-se o clichê
marxista sobre as idéias fora do lugar, em si mesmo um pouco deslocado e
anacrônico. O próprio do discurso ambientalista, sua novidade específica, está
em ser uma idéia sobre o lugar. Ele é
uma topologia histórico–política que redefine as relações entre o local e o
global, o particular e o geral, a mais curta e a mais longa das durações.
Trata-se de algo mais que um novo tema cultural: é o elemento onde se moverá
por muito tempo todo discurso político e filosófico. O fato do mercado ter-se
apropriado de uma quantidade de chavões e palavras de ordem “ecológicas”,
vendendo a natureza como sempre vendeu a cultura, não deve assustar ninguém. É
da natureza do capitalismo transformar seus limites em combustível (o que não
quer dizer que possa rodar para sempre). Há ambientalismo para todos os gostos:
há ambientalismo comercial como há ambientalismo chapa-branca, há alternativo
como há oficial, há diletante como especialista, de miolo mole como de cabeça
dura, de ocasião como de convicção, de direita como de esquerda. Atravessando
as fronteiras entre a política partidária e os movimentos sociais, entre os
dispositivos estatais e as organizações não-governamentais, entre o público e o
privado, a questão ambiental e seu foco privilegiado, a Amazônia, são o espelho
onde o país contempla sua imagem incerta e fragmentada, sua origem e seu
destino, seu lugar no mundo e na história.
* * *
Carreguei
deliberadamente nas tintas, no que precede. Apesar da considerável atenção que
a “ecologia” vem recebendo no Brasil hoje, nos meios de comunicação, nas
plataformas políticas e nas decisões governamentais, deve-se constatar que o
tema ainda não chegou a ultrapassar o plano da retórica e das concessões à
moda. Ele tampouco parece estar sendo levado realmente a sério por diversos
setores “progressistas” da sociedade nacional, provavelmente por acharem que
temos problemas mais urgentes a resolver que o desmatamento da Amazônia. À
parte uma certa desconfiança provinciana diante de questões cujo foco de
difusão é alógeno, podem estar também atuantes resquícios (ou bem mais que
isso, no presente governo) do desenvolvimentismo modernizador característico
das elites intelectuais do país. Isto me parece preocupante: em primeiro lugar,
a questão ambiental aponta para interesses vitais da espécie humana, e, apesar
de alguns esforços em contrário, os brasileiros continuamos pertencendo a ela;
em segundo lugar, os países “subdesenvolvidos” serão, como sempre, os grandes
perdedores no processo de degradação acelerada do ambiente terrestre —
superpopulação, alterações climáticas, fome, inchação das metrópoles —; em
terceiro lugar, o saque em grande escala e a ocupação predatória da Amazônia
são hoje peças essenciais para a reprodução do modelo iníquo de desenvolvimento
nacional. Por fim, não custa lembrar que “ambiente” é um outro nome para
“condições de existência”; a crítica ambientalista é uma crítica das presentes
condições de existência da população brasileira, na cidade, no campo e na
selva.
Queiramos
ou não, o Brasil se amazonizou, é nesta região que se travam as grandes
batalhas econômicas, políticas e ideológicas do país. Leia-se o presente livro;
aqui se verá como a história dos últimos trinta anos está sendo decidida na
Amazônia: as absurdas estradas da ditadura, as maciças migrações que permitiram
a “modernização” agrária do Sul e a manutenção do arcaísmo oligárquico do
Nordeste, os mega-projetos de mineração e de geração de energia, o
mega-agronegócio, a criação de uma casta de grandes empreiteiras sócias do
Estado, a consolidação do contrabando e do tráfico de drogas, a canalização
estratégica de vultosos empréstimos internacionais, o surgimento de novos
atores e forças políticas — os povos indígenas, os sindicatos rurais —, e
finalmente a entrada do país no cenário ideológico mundial. A selva e a cidade
nunca estiveram tão visceralmente unidas como no presente momento de nossa
história.
* * *
Por
motivos profissionais, os antropólogos “descobriram” a Amazônia muito antes que
esta se tornasse uma preocupação corrente; pelos mesmos motivos, têm sido
testemunhas diretas dos absurdos que ali se cometem em nome do desenvolvimento
do país. Eles estão, sobretudo, em posição de desmentir algumas das falácias
típicas sobre a região, que sustentam o projeto de sua ocupação predatória ou
sua mitificação como paraíso da natureza intocada.
Foram os
antropólogos os primeiros a denunciar o erro grosseiro que consiste em
considerar a selva amazônica como grande vazio demográfico, mata virgem à
espera de gente. A Amazônia é uma região ocupada milenarmente por povos
indígenas, e secularmente por parcelas da população nacional de origem européia
e africana que se adaptaram aos ritmos e exigências da floresta. Antes da enorme
catástrofe que dizimou — dizimou, não exterminou — seus ocupantes originais
(refiro-me à invasão européia), esta era uma região povoada, de modo mais ou
menos denso, por sociedades que modificaram o ambiente amazônico sem destruir
suas grandes regulações ecológicas. A “mata virgem” tem muito de mito: como
hoje começamos a descobrir, boa parte da cobertura vegetal amazônica, sua
distribuição e composição específica, é o fruto de milênios de intervenção
humana; a maioria das plantas úteis da região proliferaram diferencialmente em
função das técnicas indígenas de aproveitamento do território; porções não
desprezíveis do solo amazônico são antropogênicas, indicando uma ocupação
intensa e antiga. Isto que chamamos “natureza” é parte e resultado de uma longa
história cultural.
Não só a
região amazônica foi o cenário de desenvolvimento de numerosas culturas e
civilizações, como continua a ser ocupada pelos índios e demais povos da
floresta — seringueiros, camponeses, pescadores — cuja população, apesar de tudo,
cresce. A tendência a vê-la como vazia é, sobre empiricamente falsa,
politicamente maldosa. Os povos indígenas, em particular, têm ali o cada vez
mais exíguo espaço onde tentam exercer sua autonomia sócio-cultural; seus
direitos sobre os territórios que ocupam são anteriores à formação do país.
Esvaziar retoricamente a Amazônia é desconhecer o direito destes povos à
existência, tratando-os como inimigos que cabe exterminar ou assimilar.
Há tempos,
andava em voga, e não precisa de muito para voltar a andar, a “teoria” de que a
existência de povos indígenas culturalmente autônomos na Amazônia é uma ameaça
à soberania nacional, por se constituir em cabeça de ponte potencial para a
invasão de potências estrangeiras; no mínimo, há o perigo da “balcanização”,
dizia-se há alguns anos atrás. Ora, hoje está mais ou menos claro que o
separatismo, se vier efetivamente a se tornar um tema relevante, não começará
pelos povos indígenas da Amazônia, mas pelo Sul do país; e que ele não se
deverá às diferenças culturais que distinguem os índios dos demais brasileiros,
mas a desigualdades regionais intoleráveis e a uma crise econômica e política
grave, cuja responsabilidade certamente não recai sobre os índios. Quanto a uma
invasão sorrateira da Amazônia por gringos, com a colaboração dos “quistos
étnicos” ameríndios, aqui entramos no domínio da fantasia maliciosa (invasão se
houver não vai ser sorrateira, e não será com a ajuda dos índios), cujo
verdadeiro objetivo parece ser o de legitimar a assimilação forçada dos índios.
Acrescente-se a isto uma vergonha provinciana de se admitir que há índios
dentro de nossas fronteiras, como se fosse este o obstáculo a nosso tão
almejado ingresso no Olimpo da civilização; e complete-se a receita com um
ingrediente essencial: a confessada cobiça pelos recursos naturais que, por
estarem nas terras indígenas, ainda não foram devida e completamente rapinados.
“Amazônia”
e “natureza” evocam na consciência urbana os povos indígenas, antes de mais
nada. Ora, se os índios desempenham para muitos, e poderosos, o papel de
símbolo negativo da nacionalidade — de seu atraso, sua perigosa
heterogeneidade, sua não-europeidade —, a vulgata ecologista contemporânea,
simpática como seja aos ameríndios, equivoca-se por outros motivos. A imagem
geral que se filtra até nós é a de que os povos indígenas estão em uma espécie
de sintonia natural com a natureza. Tal imagem não é privilégio dos leigos; uma
parcela significativa de estudos antropológicos, tributários de um
pseudo-darwinismo reducionista, tende a apresentar os povos amazônicos sob esta
luz, isto é, como populações animais reguladas, em sua composição, distribuição
e atividade, por parâmetros naturais, isto é, parâmetros independentes da
atividade simbólica humana.
Por outro
lado, e de modo parcialmente contraditório com o que precede, a ideologia
ecológico–progressista costuma representar os povos indígenas como possuidores
de uma quantidade de “segredos da floresta” inacessíveis à ciência ocidental.
Mais uma vez, isto tem recebido o apoio bem-intencionado de alguns estudiosos.
O resultado final é que as culturas indígenas são valorizadas por se
constituírem em um reservatório de tecnologias úteis para a exploração adequada
da Amazônia — o que é uma instrumentalização
de nossa relação com os povos indígenas, fruto de uma atitude utilitarista e
etnocêntrica, que parece só admitir o direito à existência dos outros se estes
servirem a algo para nós.
Não há
dúvida que os povos amazônicos encontraram, ao longo de milênios, estratégias
de convivência com seu ambiente que se mostraram com valor adaptativo; que para
tal desenvolveram um saber técnico sofisticado, e infinitamente menos
disruptivo das regulações ecológicas da floresta que as técnicas brutalmente
míopes utilizadas pela sociedade ocidental; que este saber deve ser estudado,
difundido e valorizado urgentemente; que ele poderá ser, em última análise, o
passaporte para a sobrevivência, no mundo moderno, das sociedades que o
produziram. Mas há aspectos problemáticos nas representações evocadas acima, que
residem nas categorias mesmas que as orientam.
Em
primeiro lugar, a “ecologização” dos índios desconsidera as relações
constitutivas entre este saber técnico e suas condições sociais de emergência,
distribuição e exercício. A relação entre os índios e a floresta é mediada
necessariamente por suas formas de organização sociopolítica; a natureza é
natureza para uma sociedade determinada, fora da qual se reduz a uma abstração
vazia. Dessocializar este saber é expropriá-lo, e inutilizá-lo praticamente.
Em segundo
lugar, a relação entre as sociedades indígenas e o ambiente amazônico não é a
de uma adaptação passiva das primeiras ao segundo (que contrastaria assim com a
destruição ativa levada a cabo pela sociedade nacional), mas a de uma história
comum, onde sociedade e ambiente evoluíram em conjunto. Como dissemos, hoje se
constata que a floresta amazônica, em seus aspectos fitogeográficos,
faunísticos e pedológicos, condicionou tanto a vida humana quanto foi
condicionada por esta.
As
relações com a natureza não são assim nunca, tratando-se de sociedades humanas,
relações naturais, mas relações essencialmente sociais. Não só elas se travam a
partir de formas sociopolíticas determinadas, como pressupõem dispositivos
simbólicos específicos, isto é, instrumentos conceituais de “apropriação” do
real, cuja característica distintiva é serem culturalmente especificados, isto
é, relativamente arbitrários, e não determinados univocamente por parâmetros
objetivos.
De certo
modo, este aspecto eminentemente social das relações entre sociedade e natureza
recebe um reconhecimento explícito nas culturas indígenas, em contraste com a
concepção objetivante de natureza entretida pela modernidade ocidental. Com
efeito, se pudéssemos caracterizar em poucas palavras uma atitude essencial das
culturas indígenas — atitude que nos leva (in)justamente a defini-las como
“primitivas”, “animistas” etc. —, diríamos que as relações entre a sociedade e
os componentes de seu ambiente natural são pensadas e vividas como relações
sociais, isto é, relações entre sujeitos. O saber técnico indígena, se está
fundado como o nosso próprio em uma teoria instrumental das relações objetivas
de causalidade, está entretanto imerso em um saber simbólico fundado na
postulação de um universo comandado pelas categorias da agência e da
intencionalidade, isto é, por uma concepção sociomórfica do cosmos. A natureza
não é, absolutamente, “natural”, isto é, passiva, objetiva, neutra e muda — os
homens não têm o monopólio da posição de agente e sujeito, não são o único foco
da voz ativa no discurso cosmológico. Prosseguindo com o contraste, recordemos
que a categoria que comanda as relações
entre homem e natureza é, para a modernidade ocidental, a categoria da
produção, concebida como ato de subordinação da matéria ao desígnio humano.
Para as sociedades amazônicas, a categoria paradigmática neste contexto é a
categoria da reciprocidade, isto é, a
comunicação simbólica entre sujeitos que se interconstituem no e pelo ato da
troca. A reprodução das sociedades indígenas é assim concebida e vivida sob o
signo de uma troca de propriedades simbólicas entre os humanos e os demais
habitantes do cosmos (troca que pode ser violenta e mortal, sem deixar de ser
social), não de uma produção de bens materiais a partir de uma natureza
informe.
Se as
ideologias modernas tendem a ver as sociedades indígenas, para bem ou para mal,
como parte da natureza — mas isto é verdade para toda sociedade humana —, podemos então dizer que as culturas
indígenas tendem a ver a natureza como ela mesma parte da sociedade, ou antes,
como mergulhada, tanto quanto o mundo humano, em um meio universalmente social
— o que não é menos verdade.
Creio,
assim, que a contribuição específica da antropologia ao movimento
ambientalista, em geral e em sua concentração sobre a Amazônia, está na relação
que esta disciplina estabelece entre natureza e sociedade. Os antropólogos não
“aprenderam com os índios a respeitar a natureza” (argumento equívoco e
ligeiramente débil mental); eles aprenderam, isto sim, que não há reflexão
sobre a natureza que não dependa de um arbitrário cultural, e que não há
interação com o ambiente que não passe por uma forma específica de organização
social. Por isto, creio que a proliferação de “quadros” antropológicos no
ambientalismo brasileiro tende a tornar este politicamente mais atento às
dependências mútuas entre a relação dos homens com o mundo e a relação dos
homens uns com os outros. Cada sociedade tem a natureza que merece. Cabe-nos
decidir qual é a nossa.