JUVENTUDE E POBREZA: DISCRIMINAÇÃO E SALVAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS

 

Delma Pessanha Neves

 

            A exacerbada pobreza de grande parte da população brasileira foi recentemente erigida em questão fundamental do dilema político frente aos (assim reconhecidos) problemas sociais. Por isso, este segmento da população tem sido objeto de atenção em termos das carências, neste jogo escandalizadas, mas também objeto de intervenção diante dessas modalidades de  construção de problemas sociais. Muitos destes são definidos ou redefinidos em termos jurídicos e, por consequência, em termos de políticas repressivas que, atribuindo aos pobres uma potencialidade para atos ilícitos, permitem a colocação  em prática de medidas discriminatórias; ou encurralam esta parte da população ao requerimento das desqualificações como forma de obtenção de direitos a recursos e serviços públicos.

             Este é o caso dos modos de gestão da inserção geracional, valorizados como fatores importantes para a reprodução da sociedade, mas secundarizados em termos de investimentos que possam alcançar o estatuto de política pública, isto é, cujo horizonte temporal da projetada sociedade desejada deva ser objeto de enunciação e, assim, de construção social. São definidos como beneficiários porque situados na condição de jovens, mas reconhecidos negativamente sob a ótica da discriminação que lhes associa à imputada e à pressuposta situação de risco: qualidade que se sustenta no fato de serem pobres,  residirem em favela ou na rua. Quase todos os recursos que para eles se dirigem são vangloriados pela emergência das medidas que venham a salvar as novas gerações da adesão ao consumo ou tráfico de drogas. Tomando a parte pelo todo, tanto os casos de recrutamento de jovens para o tráfico de drogas, como o de jovens que tomam a rua como espaço de construção de modos de vida são considerados paradigmáticos para elaboração de políticas públicas. Neste sentido, a esmagadora maioria dos jovens que adotam outras formas de inserção, orientados especialmente pelo valor-trabalho, é devedora dos jovens excepcionais, pensados pelo desvio comportamental ou moral. As ações de prevenção  a esta inserção norteiam a política de atendimento a todos os jovens pobres. A legitimidade desta ação preventiva assegura então a transferência de recursos para a gestão da inserção geracional, tal como demonstra o amplo quadro de organizações governamentais, mas especialmente não-governamentais, para além das instituições internacionais de defesa dos direitos humanos.

            Todo um processo de enquadramento institucional se encontra em curso, objetivado pela proliferação de instituições, de agentes sociais e profissionais formados sob este quadro de crenças coletivas. Novas profissões e habilidades vão sendo criadas ou requeridas  e funções, antes marginalizadas no mercado de trabalho, tal como aconteciam com  os artistas ou profissionais da educação  artística, vêm sendo redefinidas. Esta redefinição deriva da importância integradora e disciplinadora atribuída às atividades lúdicas, esportivas  e artísticas.

            Não se questiona, neste contexto de minimização dos custos financeiros das atividades educativas,  o papel da escola e que domínios ela deveria açambarcar. Pelo contrário, aceita-se sua especificidade ou conformam-se suas limitações, fazendo emergir múltiplas invenções sociais, legitimadas como próprias à intervenção educativa. Complementares ao papel da escola, esta pode cada vez mais se limitar à redução  aos aspectos de transmissão de saberes precisos e básicos.[1]

            Valorizando as ações justapostas e a adesão ao exército de combate à fácil integração dos jovens ao recrutamento  para ações incivis, ilegais e criminais, os que se arrogam educadores e gestores da inserção geracional dos jovens reconhecidos pobres são inquestionavelmente laureados. E os jovens que, assim definidos, têm acesso a outras formas de socialização, devem se reconhecer como beneficiários  dos investimentos educativos e preventivos organizados para incidirem sobre os genericamente chamados jovens em situação de risco. Portanto, da condição de pobres e do reconhecimento das escassas alternativas de inserção social diferenciada, os jovens em situação de risco  foram evocados pelo direito a uma educação especial. Na prática, esta proposta educativa,  por um lado visa  controlar o tempo antes dedicado ao trabalho infantil (pervertido); e, por outro, propõe incluir, enquanto sujeitos de direitos a práticas recreativas,  os jovens que, por esta ação, se sintam prestigiados. Para tanto, são  redefinidos positivamente os instrumentos de recriminação e discriminação, desde que incorporados a  noções mágicas, aceitas sob perturbador consenso: a conquista da cidadania e o sentimento de auto-estima.

            Nesta comunicação, desejo, antes de tudo, estimular a reflexão em torno dos riscos sociais que estamos construindo, ao aceitarmos que a inclusão desses jovens seja precária em face de carências materiais e institucionais; e seja discriminatória em face de sua fundamentação pela  alegada potencialidade à adesão a práticas desviantes e ilegais.  Quero chamar a atenção para o fato de  esta proposta corresponder à ausência  de um quadro institucional correspondente ao projeto de redefinição da inserção social das novas gerações; isto é, diante da desconcertante imprevisão enfrentada por  todos nós quanto ao  horizonte que contemple  os modos de organização de sociedades, cujas mudanças se orientam pelo caráter seletivamente excludente e hierarquizante. Para enfrentar estes caminhos nebulosos, para suportar os resultados de integração social fundada em critérios intensificáveis de concorrência, pressupomos que, (exatamente) os jovens devam ser capazes de desenvolver sentimentos de auto-valorização, tão interiorizados que relativizem os efeitos da hetero-desqualificação. Por isto, a auto-estima eregiu-se como valor fundamental, como princípio construtor  de um ethos para o futuro adulto. Este adulto, a despeito da imprevisão, mas pelas certezas reafirmadas pela expectativa de que realize sua  condição de trabalhador, deverá então ser capaz de resistir às tentações aos atos desviantes,  gerindo frustrações acumuladas diante de consecutivas crises de desemprego.

            Para que a reflexão por mim proposta possa avançar, para que haja tomada de consciência  diante desta forma dissimulada de oferta de serviços e de definição dos beneficiários de políticas públicas, mais que tudo calcadas no salvacionismo emergencial dos jovens pobres, algumas questões devem ser contempladas. Diante da pluralidade de situações individuais e de oportunidades, fatores que impedem a generalização classificatória da juventude pobre pelo risco,  o todo indiferenciado não pode ser definido por uma das partes ou pela exceção. Torna-se necessário  considerar as diversas situações de vida e a qualidade e a temporalidade dos investimentos das instituições socializadoras; avaliar o modo com que elas  se fazem presentes e seu alcance. E, inclusive, o papel da escola  enquanto instituição pública fundamental na socialização das novas gerações, complementar ao papel reservado aos pais.

             Todos sabemos que as sociedades modernas redefinem  os padrões de conquista da independência e de autonomia dos jovens frente aos pais, padrões muito distanciados da outrora valorização da idade média para constituição de nova família e para a entrada no mercado de trabalho. Levando em conta  tais recursos e formas de acesso e redistribuição, faz-se necessário então  avaliar, não a incidência dos riscos inerentes a uma essencializada juventude, porque essa atribuição, assim aceita, é efeito e não causa. Mas é preciso levar em conta as formas institucionalizadas de imposição de vulnerabilidades aos segmentos populares, isto é, aos pais e aos filhos. Será, de fato, este o ciclo de vida familiar mais vulnerabilizado  em relação à gestão da reprodução dos filhos. Outros momentos podem ser cruciais, como é, por exemplo, a fase inicial da vida familiar, por vezes mais difícil em termos do alcance do equilíbrio  entre consumo e orçamento. Além disso, deve-se considerar que quadros institucionais oferecem recursos para as famílias enfrentarem esta desproporção entre membros produtivos e consumidores.

            Admitindo a ausência de condições para enfrentamento da individualização ou considerando que este processo ocorra sob o quadro institucional da  auto-destruição (sob diferentes formas: absorção de álcool e drogas, auto-piedade de si mesmo e resignação depressiva, isolamento social e cultural etc), os que se arrogam gestores da salvação dos jovens sob situação de risco os culpabilizam, inclusive pelo investimento na constituição de disposições que referenciem  sentimentos suficientemente fortes, capazes de dotá-los  de uma orientação de vida eminentemente positiva, para suportar constrangimentos que inviabilizam os contextualmente  desejados projetos de inserção.

            Para além das ambigüidades, da historicidade e da diversidade dos critérios que definem o que é ser jovem, momento do ciclo de vida do qual a juventude  é parte inerente para também demarcar e articular, o importante é se entender a disputa quanto ao monopólio do discurso que visa à delimitação e à diferenciação de atributos sociais incidentes sobre segmentos ideologicamente subordinados. Enfim, para efeitos de análise, o que se torna importante é entender como emerge a construção dos atributos comportamentais que segmentam os ciclos de vida, mas principalmente a que significados contextuais correspondem esses atributos? Que tipos de passagens eles problematizam e que tipos de problemas eles dissimulam? Que instituições são chamadas ao reconhecimento dessa passagem sob termos desqualificantes?

            No empreendimento social para reconhecimento da salvação de uma juventude sob situação de risco está em jogo o prolongamento da passagem da infância à vida adulta, mas numa sociedade fechada à recepção produtiva da nova geração, porque desprovida de postos de trabalho para os que devem se ver como reprodutores do valor-trabalho. Para os que,  inclusive nesta etapa da vida, devem internalizar os controles de comportamentos  articulados ao desempenho produtivo e à conquista da autonomia familiar e filantrópica. Por esta razão, investindo na formação do ethos do trabalhador, os representantes das instituições assistencialistas e filantrópicas concorrem pela ação complementar à escola, através do reforço à escolarização, mas também ampliando o raio de ação das instituições de enquadramento social,  pela constituição de indivíduos capazes de, emocional e socialmente, suportarem o desprestígio e a desqualificação social, visto que não conseguem a desejada autonomia pelo acesso a um posto de trabalho. Por isso, à juventude considerada em situação de risco, porque reconhecidamente carente de recursos materiais e alternativas de inserção valorativa no mercado de trabalho, os auto-designados educadores sociais (profissionais constituídos neste mesmo campo de ações salvacionistas e, por vezes, voluntárias e voluntaristas) respondem com atividades e demonstração de valores que venham a valorizar a auto-estima dos jovens. Está-se assim diante de uma equação de aplicação complexa:  o enquadramento dos jovens pobres, isto é, a incorporação desta questão por agentes institucionais,  baseia-se numa desqualificação que sobre os jovens (re)incide. Eles são objetos de atenção porque são portadores de potencialidades indesejadas pela sociedade e, desta posição, submetem-se a exercícios para que se vejam auto-valorizados e, assim, positivamente integrados.

            Como a concepção de juventude é historicamente situada, os atributos colocam em questão as condições de reprodução da sociedade. Eles problematizam a função básica da integração e as condições de transmissão de valores para novas gerações. Como colocar em prática processos de socialização em que determinados valores considerados básicos não podem ser transmitidos, porque não podem ser positivamente interiorizados? Como redefinir alguns dos sentidos mais importantes para uma sociedade, em que nada mais foi inventado para substituir a legitimidade da atividade e do valor trabalho no que tange às camadas populares?  A sociedade aparece assim como empreendimento pouco viável e, portanto, ela própria sob situação de risco.       Nesses termos, os investimentos na problematização da juventude como problema em si, devem ser entendidos como forma de denúncia de problemas sociais outros, mesmo que formulados às avessas.



[1] As idéias desenvolvidas nesta comunicação se baseiam em dados obtidos  a partir de pesquisa empírica, em desenvolvimento junto a instituições assistencias e filantrópicas vinculadas ao Conselho Tutelar sediado na cidade de Niterói (RJ). Para este investimento, conto com a participação de alunos do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense, e com recursos financeiros sob a forma de bolsas e auxílio básico concedidos pelo CNPq, para o projeto O legado da pobreza e a inserção geracional.

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004