PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL NO FOCO DE UMA NOVA TÉCNICA

 

Dalva Lúcia A. de Faria

 

Laboratório de Espectroscopia Molecular, Instituto de Química, USP

C.P. 26077, 05513-970, São Paulo, Brasil

 

 

Objetos de interesse histórico-cultural vêm atraindo bastante a atenção de pesquisadores ligados às ciências exatas, por se constituírem em fonte de desafiadores problemas científicos. O uso de métodos físico-químicos de análise nesse contexto é relativamente recente e deve-se à necessidade de se ter uma caracterização dos materiais que amplie o conhecimento científico sobre os objetos, que (i) permita a escolha de procedimentos adequados quando se tratar de conservação e/ou restauração de peças e (ii) possibilite uma melhor compreensão dos mecanismos de degradação associados a tais  objetos.

Dessa forma, novas tecnologias vêm sendo cada vez mais empregadas no estudo de problemas ligados a bens de interesse histórico-cultural e, entre elas, a espectroscopia Raman ocupa lugar de destaque por tratar-se de uma técnica não destrutiva e bastante específica, que proporciona uma quantidade muito grande de informações sobre o objeto em análise.

Um número crescente de trabalhos onde a espectroscopia Raman é usada na resolução de problemas ligados à arte e à arqueologia tem aparecido na literatura (EDWARDS 2002) o que faz com que, hoje, essa técnica seja reconhecida como a mais eficaz no estudo de bens culturais, na medida em que é sensível, reprodutível, não-destrutiva e pode ser utilizada para medidas in situ de componentes com dimensões de cerca de 1 mm.

Um dos tipos de investigação no qual a espectroscopia Raman vem alcançando resultados muito satisfatórios é, por exemplo, na determinação da natureza de pigmentos em papiros (BURGIO 2000), manuscritos (EDWARDS 2001), pinturas (BURGIO 2001) e cerâmicas (CLARK 1998). O conhecimento da composição desses pigmentos representa um recurso adicional para a autenticação de obras de autoria duvidosa ou datação imprecisa, além de possibilitar uma melhor compreensão  sobre a metodologia de preparação e uso desses materiais, o que tem inegável valor histórico-cultural.

            Tais pigmentos são geralmente inorgânicos, mas compostos orgânicos como vernizes e aglutinantes também têm sido estudados com sucesso (VANDENABEELE 2000), principalmente com o objetivo de entender melhor os processos de interação com outras substâncias presentes no objeto (como substrato ou outros pigmentos) e de degradação desses materiais. Objetos de resina (EDWARDS 1999a), marfins (EDWARDS 1995), gemas (Andreev 2001), produtos de corrosão (McCANN 1999) e vidros (EDWARDS 1998) também estão entre os vários tipos de problemas que podem ser abordados pela técnica.

            Informações ligadas à composição de determinados componentes do objeto ou de seus  processos de degradação são essenciais à sua conservação devido à progressiva deterioração que sofrem as peças de coleções em museus. Esse conhecimento é também fundamental na determinação dos materiais a serem empregados em restauração, ou mesmo do procedimento a ser adotado para preservação das obras. Nesse sentido, importantes informações têm sido obtidas a partir de estudos por espectroscopia Raman da degradação de biomateriais de uma maneira geral (EDWARDS 1996) e, em particular, de afrescos e murais por liquens (EDWARDS 1999b).

            As vantagens da espectroscopia Raman sobre outras técnicas são diversas: (i) é uma técnica não destrutiva e permite que objetos raros e/ou valiosos sejam estudados diretamente, sem que haja a necessidade de qualquer interferência nos mesmos; (ii) a análise é realizada ao ar e a presença de água não interfere nos espectros obtidos; (iii) em uma mesma análise é possível identificar tanto compostos orgânicos como inorgânicos e (iv) a utilização de um microscópio Raman permite que heterogeneidades de dimensões micrométricas sejam investigadas, permitindo o estudo de problemas de interface e inclusões.

            Quando as amostras apresentam fluorescência, é geralmente necessário utilizar equipamento interferométrico (HIRSCHFELD 1986), o qual é particularmente útil no estudo de biomateriais, como ossos, dentes, resinas, vernizes, fibras etc, assim como de amostras de natureza inorgânica mas que apresentam fluorescência intrínseca ou que ficaram enterradas por longos períodos ou expostos a ambientes ricos em matéria orgânica.

Em nosso grupo de pesquisa a espectroscopia Raman já vem sendo aplicada com sucesso tanto em estudos de objetos de interesse artístico quanto arqueológico (DE FARIA 2001,  DE FARIA 2002, Rosalie David 2001), seja na investigação de pigmentos e substratos, quanto de biomateriais. Alguns exemplos envolvendo problemas ligados a bens  do patrimônio histórico-cultural brasileiro dizem respeito à identificação de pigmentos em telas, pinturas rupestres e fragmentos cerâmicos. Ossos pigmentados encontrados em sambaquis e objetos de resina também foram objeto de investigação, mostrando a potencialidade da espectroscopia Raman também em arqueometria.  Serão ainda mostrados resultados recentes nos quais essa técnica é utilizada conjuntamente com balanças de quartzo, visando o desenvolvimento de sensores para monitoramento de processos de degradação de resinas em ambientes internos de museus.

 

 

 

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Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004