SABER ESCOLARIZADO – ESPAÇO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LÍNGUA

Claudia Castellanos Pfeiffer*

Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb/Unicamp)

 

A partir de minha inserção no projeto História das Idéias Lingüísticas (Capes/Cofecub) coordenado no âmbito da Unicamp, USP e École Normale Superieure de Lyon-Fr, proponho refletir sobre o espaço da escolarização enquanto relações de sentidos que investem nos sujeitos formas e gestos de interpretação muito específicos que conformam suas relações sociais, em uma sociedade que se funda pelo efeito da escrita.

O espaço escolarizado tem sido objeto de meu percurso de reflexão, em que tenho tentado compreender o modo como o sujeito de linguagem se constitui em uma sociedade historicamente marcada pela inscrição da escrita como lugar de visibilidade de eficácia e capacidade de ser homem: discernível e uno.

Este meu caminho de reflexão – calcado no vasto trabalho desenvolvido pela Análise de Discurso no Brasil de filiação francesa (remeto-me, sobretudo, aos trabalhos de Pêcheux (1975, 1982, 1984) e Orlandi (1988, 1990, 1992, 1996, 2001, 2002)) – levou-me à relação contrapartícipe do processo de urbanização e de escolarização, no interior do processo de gramatização – definido por Auroux (1992:65) como “o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber matalingüístico: a gramática e o dicionário” – pelo qual passou a língua nacional brasileira.

Os trabalhos desenvolvidos por Guimarães e Orlandi têm mostrado que a gramatização no Brasil - momento em que os instrumentos tecnológicos sobre a língua se instalam - inicia-se fortemente na segunda metade do Século XIX, levando em conta que o movimento de sentidos que lhe formava uma base estabelece-se no Século XVIII. Guimarães (1994) mostra que o processo de gramatização brasileiro se dá em torno de uma busca pela especificidade do português do Brasil em relação ao de Portugal – é um movimento pela diferenciação, através da busca pela unidade. Marca-se, especialmente, a diferença de ritmo de fala e do léxico, estabelecendo categorias como brasileirismos, africanismos e indigenismos. Orlandi (1997a) considera o acontecimento da gramatização como caracterizado pela “passagem discursiva dita na diferença desses dois enunciados ‘língua Portuguesa do Brasil// língua Portuguesa no Brasil’.” (op.cit.:5). Passagem subsumida à própria possibilidade de poder ser autor de gramática no Brasil, no movimento de sentidos que acompanham a República em que “não basta que o brasileiro saiba sua língua, é preciso que, do ponto de vista institucional, ele saiba que sabe. A gramática, desta perspectiva, é o lugar em que se institui a visibilidade desse saber legítimo para a sociedade.” (idem ibidem). Assim, tratar da história das idéias lingüísticas, de nossa perspectiva, implica em trabalharmos com filiação de sentidos, filiação discursiva.

No interior dessas considerações teórico-analíticas, penso a relação da questão do processo de autorização – compreendido como o lugar da legitimação, que se dá na evidência do lugar da autoria, entendida em meu trabalho como o lugar do bem-dizer – no espaço discursivo da escolarização. O espaço da escolarização é aqui compreendido, por sua vez, como espaço de relações de sentidos que investem nos sujeitos formas e gestos de interpretação muito específicos que conformam suas relações sociais. Relações sociais, pois, calcadas nestes sentidos e formas de uma sociedade que se funda, como já disse, pelo efeito da escrita.

Trato especificamente, no presente artigo, de um acontecimento discursivo (cf. Pêcheux, 1990) no processo de gramatização (cf. Auroux, 1992) pelo qual passou a língua portuguesa no Brasil que se configura sob o efeito de uma coincidência histórica: o efeito de equivalência entre a designação (cf. Guimarães, 2002) ‘língua materna’ e a ‘língua nacional’. Mostro, ao descrever esse processo, dois atravessamentos:

a)      uma relação litigiosa – entre um saber pedagógico e um saber científico – que atravessa, historicamente, essas designações, e

b)      uma relação constitutiva entre a instituição escolar e a urbanização da língua.

 

Compreendo, assim, que o lugar do dizer escolarizado (cf. Pfeiffer, C. Bem Dizer e retórica: um lugar para o sujeito. Doutorado. Campinas, 2000.), ou seja, o lugar específico que se produz na relação de construção de um sujeito e língua nacionais, perpassa a relação do sujeito de linguagem com sua língua materna, fundamentalmente no efeito de coincidência entre língua nacional e materna acima descrito.

Como retorno para a própria reflexão sobre os processos de institucionalização de um saber, proponho que o espaço pedagógico se estabeleça na diferença entre ensinar a língua e ensinar sobre a língua, o que implicaria, aí sim, saber sobre as outras línguas que circula (r)m no espaço brasileiro. Trabalhando na diferença, a língua gramatizada apresenta-se como efeito de uma unidade construída pelo gesto de interpretação inscrito em uma metalinguagem específica, isto é, essa língua poderia ser outra, em outras condições de produção.

* Doutora em Lingüística – na área de análise de discurso – pela Unicamp, realiza suas pesquisas no Labeurb/Unicamp em torno dos processos de escolarização e de urbanização. Docente credenciada no Programa de Pós-Graduação em Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004