Os direitos humanos que merecemos

 

Claudia Fonseca, UFRGS

SBPC 2004

 

1.  A hierarquia dos mais e menos humanos

Brasília, capital federal. Numa noite de sábado, abril de 1997, quatro jovens abastados, para exorcizar o tédio, fazem sua escolha medonha de diversão: interromper o sono de algum mendigo, encharcá-lo com gasolina e acender um fósforo. Que espetáculo poderia ser mais gratificante para os seus olhos lerdos do que uma figura em chamas gesticulando e rolando desesperadamente, tentando em vão extinguir o fogo? Acontece que, para infelicidade dos rapazes, o “mendigo” que escolheram era um índio pataxó, recém chegado à capital para uma comemoração especial: o Dia Nacional do Índio. E, assim, a história deles – que nós leitores de jornal soubemos posteriormente não ser nada incomum (em média, um mendigo por mês é incendiado na maioria das grandes cidades brasileiras) – terminou mal. Confrontados pela opinião pública com a gravidade de sua “brincadeira”, os rapazes esboçaram o que, evidentemente para eles, era uma desculpa plausível: “A gente não sabia que era um índio, pensamos que era um mendigo qualquer.”

            O que nos interessa neste episódio não é tanto a violência. Esta já se encontra amplamente representada no histórico brasileiro. Nomes como Carandiru, Candelária e Diadema tornaram-se nos últimos anos sinônimos da brutalidade institucionalizada contra os fracos. O incidente de Brasília, todavia, é um dos poucos em que tivemos acesso às atitudes expressas por cidadãos comuns para justificar tais barbaridades. Ao apresentar tudo como um mal-entendido – como se fosse permissível, ou em todo caso menos condenável, atear fogo num mero mendigo – os rapazes trazem à tona um sistema de classificação que separa os humanos dos não-humanos.

            Para melhor entender os processos de exclusão – objetivo desse artigo – seria útil, como preâmbulo, refletir sobre como uma categoria, neste caso “o índio”, conseguiu alcançar seu status de mais humano.

            Os antropólogos brasileiros desempenharam historicamente um importante papel neste processo enquanto militantes da causa indígena apoiando as reivindicações destes grupos nas instâncias políticas adequadas. Hoje, acrescentam uma contribuição de outra ordem – desconstruindo conceitos naturalizantes de identidade étnica, dando claras demonstrações de como a política indigenista e outros fatores contextuais determinam nossa maneira de olhar para esses “outros”. O trabalho de M. Arruti (1997) é exemplar. Aprendemos com este autor que no final do século dezenove os colonos e seus legisladores, ávidos por novas terras, já tinham declarado os “índios” uma coisa do passado: “Extintos os aldeamentos e libertos os escravos, aquelas populações deixam de ser classificadas, para efeito dos mecanismos de controle, em termos de índios e negros, passando a figurar nos documentos como indigentes, órfãos, marginais, pobres, trabalhadores nacionais.” (Arruti 1997:17, ênfase nossa).  A modificação de termos teve por objetivo constatar uma versão conveniente da realidade. Do ponto de vista dos mecanismos de controle, a repressão do “pobre” é mais facilmente justificada do que a repressão do “índio” e, certamente, essa aniquilação semântica dos povo indígenas teria surtido efeito em pouco tempo se as formas de classificação, sob novas leis, não tivessem mudado. 

Devemos nos perguntar, no entanto, o que acontece com os direitos humanos daqueles sujeitos que permanecem nas categorias menos defensáveis:  os velhos (em vez de crianças), os homossexuais, os presos ou simplesmente “os pobres”?  A pergunta é: será possível, por causa de estereótipos negativos, classificar essas pessoas como “não-prefenciais” na proteção contra discriminação, na luta por direitos fundamentais?    É mais chocante matar um indígena do que um mendigo?  É menos terrível bater num preso comum do que bater num preso político (ver também Ribeiro 2004)?  É moralmente permissível criar uma categoria de indivíduos que são consideradas  (mesmo sendo “levemente”) menos dignos dos direitos humanos?

 

2.  Indivíduos e individualidade

            Joan Scott, no seu livro Only paradoxes to offer (1998), tenta entender como os autores da revolução francesa – os primeiros a pregar os direitos universais do homem – podiam guilhotinar mulheres que tentavam incluir compatriotas de seu sexo nos termos da declaração. Abraçando a “virada lingüística” nas suas análises históricas, Scott mostra como a discriminação era parte integrante das categorias lógicas dos filósofos de então. O nó do problema se encontrava na justaposição problemática de duas noções: a de indivíduo abstrato – base da unidade humana – e a de individualidade – princípio que realça a diferença entre as pessoas. A tentativa de juntar o “indivíduo” à “individualidade” resultou num “indivíduo abstrato definido por um certo conjunto de traços de tendências psicológicas invariantes” (1998: 23). Por causa de sua racionalidade e seu sentido moral, o homem branco era, evidentemente, a figura exemplar do indivíduo humano. “O indivíduo político era reputado ser universal e homem; a mulher não era um indivíduo e isto por dois motivos: ela não era idêntica ao ser humano, e ela era este outro que confirmava a individualidade do indivíduo (masculino).” (1998: 25-6).

            Apesar de Scott centrar suas atenções na luta feminista, é evidente que seu argumento pode ser estendido a todas as categorias que se afastam – por sexo, raça, ou idade… do “ser humano exemplar”. Scott não nega que a filosofia das luzes tenha aberto o caminho para a elaboração de uma reflexão sobre a igualdade política, social e econômica. Entretanto, ela mostra como a mesma preocupação pelos direitos do indivíduo abstrato também podia servir para “excluir aquelas pessoas que não possuíam as características exigidas” (23-24).  Temos aqui as bases filosóficas, presentes na própria acepção dos direitos do homem, para uma classificação dos indivíduos em mais e menos humanos.

            Bobbio nos lembra que, depois da Segunda Guerra Mundial, a discussão sobre direitos humanos seguiu dois rumos: ao mesmo tempo em que consolidou-se o aspecto universal destes direitos, tornou-se aparente uma multiplicação dos sujeitos que, em função de suas particularidades, passam a ser vistos como dignos de um tratamento legal específico. Agora vêm à tona critérios de diferenciação (sexo, idade, condição física…) correspondentes a diversos status sociais, “cada um dos quais revela diferenças específicas, que não permitem igual tratamento e igual proteção” (1992: 69). Seguindo neste rumo, temos hoje no Brasil organizações para a promoção dos direitos das categorias mais diversas. Além das mais tradicionais – trabalhando em prol de grupos indígenas, afro-brasileiros, mulheres e meninos de rua – temos associações promovendo a cidadania de moradores de rua, homossexuais, presos civis, donas de casa … enfim uma série quase infinita de categorias que representam a vasta gama de individualidades da espécie humana. Podemos perguntar se essa multiplicação de categorias resolve o paradoxo levantado por Scott.

            Não há dúvida que as atividades desse Terceiro Setor têm surtido efeitos positivos. Gostaríamos de sugerir no entanto que essa proliferação de categorias não deixa de ter seus perigos. Como lembra Scott, a idéia da individualidade é construída por contraste. Há uma tendência de pensar “direitos’ e “cidadania” nos mesmos termos: assim, se existem pessoas mais merecedoras de direitos, devem existir pessoas menos merecedoras. É evidente que nenhum militante formula reivindicações nesses termos. Os ganhos de uma categoria deveriam idealmente ser um avanço para o campo inteiro. No entanto, a composição do campo – os pesos relativos atribuídos às diferentes categorias – não é inocente. Quando certas categorias avançam, outras são designadas para ficar para trás. Neste artigo vimos diversos exemplos – do índio em relação ao mendigo, do adolescente em relação ao jovem adulto, dos filhos “abandonados” em relação aos seus pais “negligentes”, do homem em relação à mulher. Ao todo, parece que muita gente – uns mais, outros menos marginais – cai pelas fendas da retórica filantrópica. Para essas pessoas, a própria multiplicação de categorias, cunhadas ostensivamente para remediar problemas de pobreza, arrisca servir como um muro de contenção, fazendo mais para excluir do que para incluí-los.

Sugerimos, por fim, que os modelos descontextualizados de direitos humanos – aqueles simulacros do “índio hiperreal”  (Ramos 1991), o “quilombola folclorizado” (Leite 1999) e a “criança absoluta” (Fonseca 1999) arriscam não somente reforçar os mecanismos de exclusão mas, pior ainda, negar toda e qualquer apreensão da alteridade.  Afinal as individualidades que existem na sociedade contemporânea não são tão facilmente domesticadas; nem tampouco cabem necessariamente nos rótulos das ciências jurídicas. E, no entanto, qualquer política pública voltada para a garantia dos direitos humanos há de levar em consideração a diversidade social. Geertz (1999) nos lembra : “O sentimento de ser estrangeiro não começa à beira d’água mas à flor da pele”. O episódio que ele cita do índio bêbado sugere que as diferenças “culturais” mais relevantes no mundo contemporâneo são aquelas que moram na esquina.  Não se trata das diferenças receitadas pelos estereótipos do “multiculturalismo enciclopédico” (Turner 1994) – ou pelo menos não são essas as mais relevantes à discussão sobre direitos humanos. As alteridades que precisam ser enfrentadas são aquelas que menos queremos ver – a dos jovens infratores, por exemplo, ou dos pais dos “abandonados”.  São “individualidades” que apontam dimensões de nossa realidade que preferiríamos esquecer.

 

Ao retomar o título desse pequeno ensaio, podemos perguntar quais “os direitos humanos que merecemos”?   É evidente que não podemos abrir mão da utopia... não podemos considerar que nós (ou qualquer outro) “merecemos” menos do que o máximo.  O problema é que esse ideal não se realiza (nem chaga-se perto) sem trabalho.  Não basta ficar no domínio de idéias abstratas e princípios legais.   É preciso formular esquemas de ação para intervir na realidade sem deixar de refletir criticamente sobre os resultados dessa intervenção.  Um plano de direitos humanos, sem garantir mecanismos para uma avaliação honesta dos resultados, é um plano capenga.   Um projeto de cidadania que não admita uma auto-reflexão crítica é fadado a perder-se em retórica promocional.  São muitas as perguntas a serem colocadas?  Quais são os estereótipos ocultos que nos induzem a organizar programas que reproduzem em vez de combater a discriminação?  Quais são as circunstâncias específicas do lugar em que estamos atuando?  Como que nossas políticas dialogam (ou não) com as atitudes e valores de seres sociais concretos?   

Os papers que seguem nessa mesa redonda, de Delma Pessanha Neves, Guita Grin Debert e Roger Raupp todos lidam com essas questões, considerando exemplos de discriminação no cotidiano da vida brasileira: contra jovens pobres, contra mulheres e idosos em Delegacias Especiais, contra homossexuais.    No conjunto, apresentam uma importante contribuição, no âmbito da Associação Brasileira de Antropologia, de promover o debate interdisciplinar.  Trazem o olhar analítico da antropologia para pensar nossa realidade, apontando para falhas e fraquezas em políticas existentes de direitos humanos, na esperança de contribuir para os processos que nos levam mais perto dos direitos humanos que queremos.

 

BOBBIO, Norberto. 1992. A era dos direitos. Rio de Janeiro, Campus.

FONSECA, Claudia. 1999 "O abandono da razão:  discursos colonizados sobre a família". In Psicanálise e colonização:  leituras do sintoma social no Brasil  (Edson André Luiz de Souza, org.).  Porto Alegre:  Artes Médicas.

FONSECA, Claudia e Andrea Cardarello. 1999.  “Direitos dos mais e menos humanos”.  Horizontes Antropológicos 10: 83-122.

GEERTZ, Clifford.  1999.  “Os usos da diversidade”.  In Horizontes Antropológicos (PPGAS-UFRGS) 10: 13-34.

LEITE, Ilka Boaventura.  1999.  “Quilombolos e quilombolas: cidadania ou folclorização?” Horizontes Antropológicos (PPGAS-UFRGS)10: 123-150.

RAMOS, Alcida, 1991.  “A hall of mirroirs” . Critique of Anthropology 11 (2): 155-169.

RIBEIRO, Gustavo Lins.  2004.  “Cultura, direitos humanos e poder, mais além do império e dos humanos direitos, por um universalismo heteroglóssico”.  In Antropologia, diversidade e direitos humanos (C. Fonseca, V. Terto e C.F. Alves, orgs.).  Porto Alegre: Editora da UFRGS.

SCOTT, Joan W. 1966. La citoyenne paradoxale: les féministes fançaises et les droits de l’homme. Paris, Albin Michel.

TURNER, Terence.  1994. “Anthropology and multiculturalism: what is anthropology that multiculturalists should be mindful of it?” In GOLDBERG, David T. (org.) Multiculturalism:  a critical reader.  Oxford, Basil Blackwell,

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004