OS SUJEITOS DOS DISCURSOS CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO EM BUSCA DE SEUS VALORES

 

Publicidade e propaganda nos discursos científico e tecnológico: confrontos éticos e políticos

 

Cidmar Teodoro Pais

(Universidade de São Paulo/Universidade Braz Cubas)

 

0. Introdução

 

          Examinamos facetas da propaganda e/ou da publicidade nos discursos institucionais de Universidades públicas e privadas, como disseminados na mídia, no tocante a microssistemas de valores subjacentes e ao seu impacto na vida acadêmica. A análise fundamenta-se em modelos da sociossemiótica, da semiótica das culturas e da semântica cognitiva.

          Ressalte-se que o poder-fazer-saber do sujeito cognitivo realiza-se por um poder-saber-fazer do sujeito enunciador-enunciatário do discurso, que, manifestando-se, conduz à realimentação e à regulagem do metassistema conceptual e dos processos semióticos dele dependentes. O sujeito cognitivo e o sujeito semiótico produzem um saber sobre o ‘mundo’ e sobre si mesmos e são simultaneamente produzidos num processo, em que são determinantes a racionalidade, a sensibilidade, a intuição, a afetividade e a historicidade.

          Assim, os discursos só significam na interdiscursividade, os textos só significam na intertextualidade, A primeira, concernente à enunciação, ao processo de produção discursiva, a segunda, relativa aos enunciados-textos resultantes. Relações intertextuais definem um arquitexto; relações interdiscursivas, um arquidiscurso

          A partir de determinada experiência, o metassistema conceptual preside o percurso gerativo de enunciação de codificação e de decodificação. Do fazer interpretativo do enunciatário resulta a realimentação desse metassistema e da instância de competência das semióticas-objeto dependentes, numa cultura. Daí decorre a permanente (re)elaboração da ‘visão do mundo’, a incessante (re)construção do mundo semioticamente construído.

 

1. Sujeitos do processo educacional e seus objetos de valor

 

          Os universos de discurso caracterizam-se por suas estruturas de poder. Assim, o discurso científico, da produção do conhecimento, define-se pela modalidade complexa poder-fazer-saber; o tecnológico, da competência), define-se, pelo poder-saber-fazer; o político, por um poder-fazer-querer; o jurídico, por um poder-fazer-dever; o burocrático, por um poder-fazer-fazer; o discurso de sustentação de sistema de crenças, por um poder-fazer-crer.

          O discurso pedagógico, uma estrutura de poder complexa, compreende vários micro-universos de discurso, sustentados em relações intertextuais e interdiscursivas: poder-fazer-saber Þ poder-saber-fazer Þ poder-fazer-querer Þ poder-fazer-dever Þ poder-fazer-crer

Volta-se para a formação e a informação. Propõe-se a criar e transmitir conhecimento, gerar uma competência, despertar uma vocação, instaurar uma ética geral e profissional e estabelecer, assim, um sistema de crenças a propósito dos elementos precedentes.

          Relações estabelecem-se entre o discurso pedagógico e o discurso político (das políticas públicas, da política educacional, sobretudo), o discurso jurídico (da legislação pertinente), o discurso burocrático-administrativo (da gestão das instituições), etc.

          Desse modo, o conceptus lato sensu <<instituição de ensino superior>> semiotiza-se e lexemiza-se em diferentes micro-universos de discurso, de Sujeitos: estudante, professor, funcionário, instituição, mantenedora, legislador, administrador, órgãos governamentais competentes, família do estudante, sociedade como um todo. Sua lexemização, instituição de ensino superior, é polissêmica e polissemêmica.

          Limitamo-nos, aqui, a três Sujeitos de discurso envolvidos: <<estudante>>, <<professor>>, <<instituição/mantenedora>>.

          Reconhecem-se no discurso da publicidade e/ou da propaganda institucionais concepções e valores julgados amplamente consensuais. Quanto à narratividade, observa-se uma constante, a proposta que faz cada Instituição - Destinador-Manipulador – aos Destinatários-Sujeitos, estudantes matriculados ou potenciais, seu público-alvo. Essa proposta estabelece um programa narrativo em que o Sujeito, se aceita o contrato de confiança, pode vir a entrar em conjunção com Objetos de valor, cognitivo, “formação”, e pragmático, “capacitação profissional”.

          Observa-se que esses Sujeitos de discurso têm seus programas narrativos e Objetos de valor específicos. O <<estudante>> busca, em princípio, [+conhecimento], [+capacitação profissional]. [+ascensão social], [+socialização]; o <<professor>> persegue [+salário], [+reconhecimento profissional], [+gratificação psicológica], [+ascensão social]; a <<instituição/mantenedora>> pretende realizar [+prestação de serviços] e alcançar [+reconhecimento público], [+recursos financeiros].

          Tem-se três discursos em que S1 = estudante e S2 = professor acham-se numa relação de destinação recíproca; assim também, S2 = professor e S3 = instituição/mantenedora, S1 = estudante e S3 = instituição/mantenedora, dois a dois.

          Depreende-se dos programas narrativos, dos objetos de valor e da análise semântico-conceptual e semêmica, que os três Sujeitos em tela fazem um recorte diferente do conceptus lato sensu <<instituição de ensino superior>>, privilegiando certas zonas de traços semântico-conceptuais e deixando latentes outras zonas, de modo a definir metaconceptus e metametaconceptus distintos, conquanto se mantenha a intersecção absoluta, arquiconceptus.

            Configuram-se microssistemas de valores sustentados pelos Sujeitos em seus discursos. Os metaconceptus correspondentes compreendem traços semântico-conceptuais culturais, consensos dos segmentos sociais representados e da sociedade. Os metametaconceptus compreendem traços semântico-conceptuais modalizadores, manipulatórios, em função do caráter político dos discursos, que conduzem a uma visão global do ‘sistema’. A análise constitui uma leitura, dentre outras.

 

2. Dos discursos da propaganda e da publicidade institucionais

 

          O discurso da publicidade e/ou da propaganda institucionais, das instituições de ensino superior, públicas e privadas, obedece à regra de qualquer discurso publicitário ou de propaganda. Esse discurso jamais entra em confronto, no modo do parecer, com a axiologia, a ideologia, o sistema de valores e o sistema de crenças do público-alvo, do consumidor efetivo ou potencial. Discurso conservador e conciliador, busca seduzir o Destinatário-Sujeito, oferece-lhe um mundo de prazer, satisfação pessoal, alegria, felicidade, conforto, paz, de atendimento às expectativas e aspirações, detectadas em pesquisas prévias de opinião.

.         Universidades públicas e privadas divulgam em diferentes canais da mídia – ‘folders’, jornais, televisão, internet, outdoors, etc. - discursos de propaganda e/ou publicidade institucional. A distinção clássica entre propaganda e publicidade, segundo a qual a propaganda seria política e a publicidade, de consumo, dificilmente de sustenta. Um mesmo discurso manifestado proclama o nível de excelência da instituição em causa – dirigido, sobretudo, às entidades governamentais e à sociedade como um todo - e oferece seus cursos e serviços como caminhos melhores, mais eficientes, pelos quais o Sujeito-Estudante conquistará determinados objetos de valor.

          A proposta de cada Instituição - Destinador-Manipulador – aos Destinatários-Sujeitos, estudantes matriculados ou potenciais, seu público-alvo, estabelece um programa narrativo em que o Sujeito, aceitando o contrato de confiança, matricula-se num curso da instituição, entra em conjunção com Objetos de valor, cognitivo, “formação”, e pragmático, “capacitação profissional”. Exame mais cuidadoso dos textos mostra que a “formação” e a “capacitação profissional”, Objetos de valor consensualmente aceitos geralmente revelam-se papéis actanciais de um programa narrativo auxiliar. O PN principal, explicitado, insinuado ou subentendido, tem como Objetos de valor “ascensão social”, “status”, “prestígio”. A sociedade pós-moderna, globalizada, tem outras prioridades.

          “Saber” e “competência” são apresentados como instrumentos de “empregabilidade”, de “perspectivas de carreira” e, estas, como conducentes ao “sucesso”, ao “status”, “poder” e “prestígio”, tomados como Objeto de valor, no PN principal do Sujeito-Estudante. Veja-se um anúncio veiculado na televisão.

          Um rapaz e uma moça encontram-se em aconchegante bar da moda. Ela parece alegre, elegante, bem-sucedida, segura de si. O rapaz mostra-se tímido. A moça assume papel maternal de encantadora ajuda ao rapaz, assumindo o discurso do Destinador-Manipulador. É proposto um programa narrativo, uma parte explícita no diálogo, outra em um ‘clip’ projetado concomitantemente. A pergunta-chave é: “Quer tirar o atraso?”

Textos desse tipo afirmam que os Sujeitos têm pressa e querem conquistar vantagens, sem perder muito tempo. Neles, o Sujeito-Estudante é situado como Sujeito-Consumidor dos cursos e serviços.

 

3. Microssistemas de valores subjacentes

 

Em semântica profunda, esses discursos refletem microssistemas de valores e ‘visão do mundo’ da sociedade contemporânea, altamente competitiva. Configura-se uma axiologia. Epicentro de equilíbrio e conflito sociais, sustenta-se uma tensão dialética entre duas tendências contrárias, cooperação x competição. No quadrado semiótico, são contraditórios os metatermos não-cooperação e não-competição. A combinação cooperação x não-competição determina a dêixis positiva, definida como formação solidária. A dêixis negativa, combinação competição x não-cooperação, caracteriza a formação individualista. Não-competição x não-cooperação constituem o termo neutro, marginalização do sistema.

            Percursos dialéticos mostram os processos de inclusão e exclusão do ensino superior e permitem melhor compreensão das ideologias de confronto e cooperação, dos mecanismos da inclusão excludente, a que inclui alguns, para excluir a maioria.

          Quanto ao microssistema de valores examinado, observe-se que os discursos da propaganda e/ou da publicidade institucionais não propõe um equilíbrio na tensão dialética entre os dois contrários, cooperação x competição. Freqüentemente, há uma opção em cada anúncio, por um termo ou pelo outro. Essa escolha parece relacionada ao público-alvo e obedece a critérios de eficácia discursiva.

          Assim, a propaganda política governamental, da União, dos Estados e dos Municípios, de maneira crescente na última década, parece enfatizar em seus anúncios, algo que lembra a formação solidária, como caminho de acesso à cidadania.

          Semelhantemente, há exemplos de Universidades privadas que divulgam anúncios em que se ressaltam serviços gratuitos à comunidade, atendimento a crianças carentes, assessoria a classes de alunos especiais da rede pública, cursos para a terceira idade, apoio à formação de funcionários, preservação do meio-ambiente, gestão de sítios arqueológicos, contribuições da instituição para o desenvolvimento regional, na isotopia da solidariedade e da responsabilidade social.

          A tônica se modifica, quando se trata de atrair estudantes (clientela), para o concurso vestibular ou para os cursos de pós-graduação. Universidades públicas e privadas destacam as possibilidades de cada estudante, individualmente, de “empregablidade”, “ascensão social”, “prestígio”.

Universidades públicas, consideradas “de excelência”, manipulam a idéia de “marca”, no sentido publicitário, convertida, para fins de operações de prestígio, em “griffe”. Essa é transferida, acredita-se, ao alunado. Universidades privadas também exploram as perspectivas oferecidas aos estudantes, quanto ao “sucesso”, como no anúncio: “A Universidade X tem tudo para você se dar bem”.

Desse modo, estabelece-se uma concorrência entre Universidades, quanto à qualidade do produto oferecido, que tem por alvo o imaginário da classe média e da classe média alta, os estudantes e as suas famílias. A ênfase é dada à competividade, à formação individualista. O discurso publicitário institucional busca atender aos desejos, às aspirações difundidas nas classes sociais que têm melhores condições de acesso aos estudos superiores e jamais entra em confronto com essa concepção amplamente compartilhada. Para ser eficaz, precisa dizer sempre o que o público quer ouvir.

 

4. Impactos da concepção publicitária na comunidade acadêmica

 

Estabelecem-se processos de manipulação/sedução, inserção/exclusão, inclusão/proscrição. Configuram-se arquitextos e arquidiscursos que resultam, no período da globalização, desse tipo de produção discursiva. Observam-se certos mecanismos de dominação, processos de conquista e preservação do poder burocrático, formação e consolidação de grupos hegemônicos na comunidade científica e acadêmica. A (antiga) ética científica, a isenção, a dúvida sistemática, a reflexão crítica vêm sendo progressivamente descartadas, por incômodas, e valores fundamentais, como busca da verdade, construção do saber, para a melhoria das condições de vida do homem reduzem-se a programas narrativos auxiliares, retóricos, suplantados pela demanda de objetos de valor (agora) principais, como status, poder e prestígio. Assinalam-se os fortes impactos dos discursos da propaganda e da publicidade na gestão institucional do ensino público e privado, na condução dos discursos do processo educacional. Nesse cenário, suscitam-se tensões, conflitos de interesses, embates entre sistemas de valores.

 

5. Considerações finais

 

          O discurso da propaganda e/ou da publicidade institucionais de Órgãos governamentais, Universidade públicas e privadas tem características comuns e constantes. Os discursos manifestados desse tipo buscam conquistar a aceitação e a legitimidade de sua presença na sociedade, por parte de um Destinatário-Sujeito individual e coletivo, o Sujeito-Consumidor-Contribuinte.

          A concorrência entre Universidades públicas e privadas, pela conquista do Sujeito-estudante-consumidor, tem muito do modo do parecer. A grande operação destina-se a assegurar a cada instituição participante uma fatia de mercado. Obedece, portanto, à lógica do mercado.

          Na axiologia profunda,  o discurso da propaganda e/ou da publicidade institucionais, geralmente, sustenta uma concepção de mundo fundada na competição e no sucesso pessoal a qualquer preço, exacerbada na globalização neo-liberal. Certamente, esse não é o caminho para a construção de uma sociedade mais livre, justa e democrática. A proposta de transformar a sociedade, por meio da educação, exige profundas mudanças políticas nas concepções, no ideário da população e lideranças, quanto à sociedade que se pretende construir e ao modelo de educação que pode ser um dos seus instrumentos.

 

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA:

BARBOSA, Maria Aparecida. Estruturas e tipologia dos campos conceptuais, campos semãnticos e campos lexicais. Acta semiotica et linguistica. São Paulo, v. 7, p. 95-120, 1998.

PAIS, Cidmar Teodoro. Conceptualisation, dénomination, désignation, référence. Réflexions à propos de l’énonciation et du savoir sur le monde. Hommage à Simone Saillard. Textures. Lyon: Université Lumière Lyon 2, p. 371-384, 1998.

--------- Étude comparée de microsystèmes de valeurs des cultures française et brésilienne: essai en sémiotique des cultures. INFO-CREA - Revue du Centre de Recherches et d’Études Anthropologiques. Lyon, v. 6. p. 13-21, 1999.

--------- Conceptualização, interdiscursividade, arquitexto, arquidiscurso. Revista Philologus. Rio de Janeiro, CIFEFIL, ano 8, n.º 23, p. 101-111, 2002.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004