O DESAFIO ÉTICO DE UM DESENVOLVIMENTO COM
DIVERSIDADE
Carlos Lopes[1]
Definida
de forma vária a transformação do mundo, a que assistimos desamparados, provoca
uma gravitação dos processos econômicos, sociais e culturais, fazendo-nos
perder referências familiares e sentimentos confortáveis. Mudanças
significativas na nossa noção de espaço e tempo questionam premissas
históricas, agora invadidas por um acúmulo de informação, acesso mais fácil a
comunicações e uma revolução nos métodos quantitativos. A globalização é vista
como um processo de riscos e oportunidades, desenhada em função de uma
capacidade de inserção e aproveitamento da economia mundial, caracterizada por
desafios novos e fortes, e uma acentuação da polarização e heterogeneidade.
A falta de
preparo para enfrentar este admirável mundo novo pode resultar em formas novas
de exclusão, provocadas, por exemplo, pela grande mobilidade de capital, bens e
serviços, enquanto se restringe a livre mobilidade da mão de obra, ou seja, das
pessoas. É assim natural que os mecanismos de regulação global reflitam estas
prioridades assimétricas. Eles não garantem uma coerência na utilização dos
preceitos de mercado, já que tendem a privilegiar políticas macroeconômicas que
obtenham uma adequada rentabilização e tributação do capital financeiro, o
capital dominante.
Vão-se,
entretanto, gerando tensões palpáveis, nas outras formas de equilíbrio
necessárias para expandir as oportunidades de todos. Estas deficiências
repercutem nas formas de governabilidade dos problemas mundiais. E assim
floresce um crescente apelo a formas de cidadania global. Trata-se de um
cardápio complexo que obriga a refletir sobre a relação desenvolvimento e
ética.
A
globalização é um fenômeno multidimensional que se inscreve na internacionalização
da economia mundial. Pretender que o seu lócus se limita ao comércio e
investimento, finanças ou regimes macroeconômicos, não faz sentido. As
assimetrias que cria mudam os comportamentos e instituições e tem um impacto
direto na vivência cultural.
A ética e
sua releitura da moral podem ajudar a melhor definir o novo papel do
desenvolvimento. A adoção de políticas que respeitem a multi-identidade e
multiculturalidade é a única abordagem sustentável de desenvolvimento.
Contrariamente às teses sobre o choque de civilizações (Huttington, 1996) o
mundo precisa reconhecer que não existem identidades puras e o caminho a seguir
é o reconhecimento de uma dimensão singular a todas as manifestações de caráter
identitário (Ribeiro, 2003). A resistência xenófoba à diversidade cultural
sustentou-se no passado pela defesa da autenticidade e caráter nacional. Hoje
ela se esconde em políticas de intolerância glorificadoras de tradições
herdadas, ou versões ortodoxas de catequeses religiosas. O desenvolvimento
humano, definido como uma constante expansão das oportunidades dos indivíduos e
sociedades, merece e precisa da defesa das liberdades culturais de todos e de
cada indivíduo.
Para
melhor entender esses desafios imaginemos seis perguntas que nos ajudem a
caminhar para um melhor entendimento do mundo atual.
1. Qual o
legado histórico da globalização?
O homem
inteligente atribui um valor singular aos acontecimentos de sua época. Podemos
observar que os dilemas humanos se repetem, apresentando-se, ao longo da
história, de forma mais abrangente.
A sensação
de vivermos num momento paradigmático decorre do fato de que o poder de
destruição não é mais privilégio dos mais fortes. O terrorismo contemporâneo
introduziu o medo nas sociedades ocidentais. O medo como conseqüência da
desigualdade e de uma concentração de riqueza sem precedentes.
O projeto
civilizatório ocidental é ineficaz diante da revolta dos que não tem nada a
perder, refugiando-se na intolerância e recusa dos valores democráticos. A
globalização causou uma crise de valores!
O homem vai
sempre questionar os valores. O comportamento moral se encontra na natureza do
homem. Já a moral muda e avança conforme as sociedades se desenvolvem (Vasquez,
2003)
Neste
mundo de fácil acesso a recursos violentos, urge entendermos qual o desafio
moral. Existiria uma relação entre a crise de segurança e a nossa crise de
solidariedade? Não estarão os nossos princípios de liberdades individuais
distorcidos no básico respeito à diferença? Qual o limite ao individual? E,
ainda, são tais questões realmente novas?
A evolução
do conceito de desenvolvimento está na essência de tais questões. Nos últimos
sessenta anos, o fortalecimento de um regime internacional baseado na justiça e
no direito criou expectativas enormes na comunidade mundial.
A
telescopagem histórica é compreensível, sendo que dá a falsa impressão de que a
difusão de instituições implica em universalização de princípio éticos, mas
também é desprezível, pois a atitude do establishment,
impossibilitando a aplicação da mesma receita de crescimento usada pelos países
desenvolvidos, não se justifica. Até onde a “sociedade do conhecimento” irá
olvidar o seu legado histórico?
2. Uma
sociedade do conhecimento ou da ignorância?
Podemos
definir conhecimento como a organização da informação para solucionar
problemas. Pode ser um fluxo ou atividade, quer como estoque dos produtos do
fluxo. Enquanto o primeiro se relaciona com a dimensão criativa, o segundo é o
resultado da acumulação de atos criativos de estruturação das idéias.
Aprendizagem seria assim o acesso ao conhecimento. (Murteira, 2004).
O foco do
saber não é mais o ser, mas o ter e o fazer. O conhecimento se transformou num
mercado, com regras próprias. E aqui está o paradoxo: embora a informação mundial
nunca tenha circulado tanto, também houve um fortalecimento das regras de
estruturação do acesso.
Está de
moda propor às corporações e entidades públicas uma gestão do conhecimento.
Presume-se que existe um nivelamento internacional e institucional que
permitiria utilizar as mesmas técnicas de forma estandardizada. Na realidade, a
assimetria no acesso a informação tem repercussões na valorização do
conhecimento. O conhecimento sobrevalorizado corresponde aos indivíduos e
sociedades com maior poder econômico. O subvalorizado, aos indivíduos e
sociedades com fraco acesso a divulgação.
A maioria
das pessoas não tem idéia da velocidade dos avanços na ciência e tecnologia,
que terão progressos espetaculares nos próximos 25 anos (Glenn, 2003). A
produtividade será tão rápida que provocará novas interpretações éticas e
morais. A fronteira dos conhecimentos entre estes grupos e uma maioria de
marginalizados será grande.
A dimensão
polarizante do conhecimento demonstra os limites da difusão do conhecimento. Por
exemplo, deve-se olhar com cuidado a interface entre o negócio de jornalismo e
a ética de reportar. Uma cultura de mercado substitui uma cultura de notícias. Haverão
argumentos de que isso é a democratização das escolhas, mas estas diminuem. As
concentrações do conhecimento e da informação permitem a grandes conglomerados
decidir sobre o que divulgar, para quem e a que custo. Essa ignorância moral só
pode ser corrigida através de princípios éticos comuns.
3. Que
comunidade internacional?
Ouve-se
muito falar de comunidade internacional. Entretanto, pouco se sabe sobre seu
conteúdo e prioridades.
Na mídia a
expressão é usada para projetar uma entidade imaginária que sustenta um
consenso ou opinião preponderante (Cravinho, 2002). Apresentada como a opinião
de um grupo majoritário de países, pode tratar-se do interesse de alguns, com
influência mundial.
Tal sociedade
internacional precisaria ter regras para existir. Ela deveria reger-se por
comportamentos e princípios equivalentes à norma social: a preservação da vida
e do bem estar. Caso contrário, não haveria incentivos para se cumprir normas. Essa
previsibilidade traça distinções entre a anarquia e a sociedade (Cravinho,
2002).
Estando
esta previsibilidade seriamente ameaçada, tanto do ponto vista da segurança
humana (a sociedade) como da pública (o indivíduo), faz-se urgente a releitura
do papel da estrutura mais próxima de sociedade internacional: as Nações
Unidas.
Inúmeras
Conferências globais têm tentado mapear os déficits de previsibilidade. Tendo
seu ápice em 2000, a Assembléia do Milênio aprovou uma declaração que define
parâmetros de convívio para o futuro. Definiu-se um conjunto de objetivos, que
visam a redução do fosso entre ricos e pobres. Em função dos resultados
alcançados até 2015 - a data de referência para atingir esses Objetivos -
poderá se introduzir uma previsibilidade que talvez permita uma nova segurança.
Trata-se de uma proposta moral, que será julgada igualmente. Para tanto, é
vital entender as bases que legitimarão as novas hegemonias.
4. Que
legitimidade emergirá no futuro próximo?
A análise
neo-realista nas relações internacionais argumenta que a manutenção do poder
hegemônico é sustentada pela propagação de uma ordem política internacional. Além
de permitir certa estabilidade no cenário mundial, também sustenta o poder do
Estado hegemônico. Nada impede, portanto, que o conceito de estabilidade
hegemônica[2]
- introduzido por Kindleberger - possa servir para revisar a própria
globalização.
O
alargamento do conceito de hegemonia se traduz “no conjunto de pressões que
define os limites aceitáveis para decisões autônomas e que produz, por
conseguinte, padrões repetidos de comportamento no plano internacional”
(Cravinho, 2002).
A evolução
do conceito do foco econômico para algo substancialmente mais vasto indica que
hegemonia, atualmente, promove a estabilidade sustentando-se no conhecimento.
As comunidades constituem-se em blocos de interesses epistémicos[3]
a jusante da hegemonia. Uma vez definidas novas normas, essas comunidades legitimam-se.
As novas
formas de hegemonia e legitimação vão definir as fronteiras demográficas, outras
maneiras de encarar o papel do gênero em relação ao trabalho e poder, os
limites da exclusão, o combate ao efeito estufa ou ao desmatamento florestal, a
luta pelo acesso a água potável ou a definição da luta contra o terror.
Para
entender estes desafios, devemos ultrapassar a visão tradicional do
imperialismo, como nos lembra Ribeiro (2003). Segundo o autor, só o
reconhecimento de novas cosmopolíticas, para cuja articulação a rede é
fundamental, permitirá construir discursos contra-hegemónicos em contraponto a
uma certa forma de globalização excludente.
5. Que
papel para as elites no mundo de hoje?
A elite
tem uma liderança natural nos processos de transformação. Elas operaram a
transformação do poder público através do alargamento da participação, a
construção de valores de interesse público e tradições de humanismo cívico
(Bignotto, 2002). Formas aglutinadoras de identidade nacional foram abaladas
com um conjunto de desenvolvimentos políticos que mudaram, em prejuízo dos
valores democráticos. Novos movimentos criaram uma sociedade civil ativa e
participante. Apesar disso, os novos liberais celebram a apatia política como
uma demonstração da falta de entusiasmo com o papel do Estado (Bignotto, 2002).
Embora se
trate de um processo complexo, precisamos estar conscientes de que o controle
do conhecimento e das redes normativas outorga às elites poder para definir os
novos valores morais que legitimarão as escolhas.
6. Que
quadro ético se esboça?
Do grego, ethos significa estudo dos limites entre o certo e o errado; dos costumes,
obrigações e valores morais de conduta coletiva; e a homogeneidade de
comportamento sociais.
A ética racionaliza a experiência humana na
sua totalidade e diversidade, também teoriza o comportamento moral dos homens
em sociedade. Precisamos, então, constantemente revisar nossos valores morais.
O
desenvolvimento provém de muitos fatores. A existência de uma ética própria
serve para aumentar o sentido de comunidade e de auto-estima, fatores entre os
mais valorizados na capacitação dos indivíduos, instituições e sociedades. O
recurso à discussão ética é sinal de valorização e auto-estima.
A
globalização tem exacerbado o discurso ético. Nas sociedades ocidentais, a
tendência será de uma individualização tamanha que acabará provocando uma
auto-ética[4].
Em muitas outras regiões do mundo a tradição irá erguer-se em barreira contra
essa possibilidade. As lutas de hoje são contra poderes hegemônicos de vários
campeonatos. As hegemonias regionais ou epistémicas como as de um líder
religioso ou de um grupo terrorista são exercidas também pelo medo de perder
influência. A concentração da nossa atenção pode ofuscar redes contra-hegemónicas
menos visíveis. Mas nenhuma sociedade está imune a mudanças provocadas pelas
novas formas de protesto e cidadania. Nem mesmo a Arábia Saudita.
Conclusão
O mundo
não vive um choque de civilizações. O mundo vive uma civilização humana diversa
e plural. Entender este mundo requer uma abertura à diversidade e liberdade
cultural. Essa atitude não pode ser entendida, e muito menos defendida, sem uma
atualização da moral e da ética. Essa atualização deve comportar as cautelas
aqui evocadas. Nada é mais redutível a unidades celulares. Descobrimos com o
genoma humano a complexidade do que somos. Descobrimos com a física quântica a
gama de atributos do universo. Mas paradoxalmente os seres humanos não admitem
que não existe identidade tão finamente definidas e classificadas. O desafio
ético de hoje, esse passatempo dos filósofos, é admitir estas diferenças e
considerá-las enriquecedoras.
[1] Formado em economia do desenvolvimento e sociologia pela Universidade de
Genebra e com PhD em História da Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne, e
atualmente o Representante da ONU e do PNUD no Brasil. As opiniões expressas
apenas engajam o autor.
[2] Esta teoria muito debatida em relações internacionais
é bastante controversa. Não é oportuno entrar aqui em todos os méritos ou críticas
desta teoria, pois, apenas estamos fazendo recurso a ela para elaborar um
argumento conexo. Para uma leitura sucinta dos pontos de vista de Kindleberger
e os seus críticos ver Cravinho (2002).
[3] Comunidades epistémicas é um conceito muito
utilizado em relações internacionais, popularizado por Peter Haas em 1990, numa
análise sobre cooperação ambiental no Mediterrâneo, onde demonstrava a relação
causa e efeito que une certos grupos de interesse em volta de uma mesma grelha
de análise.
[4] Expressão de Edgar Morin (2000), segundo o
qual “as nossas finalidades não vão inevitavelmente triunfar, e a marcha da
História não é moral. Devemos visualizar seu insucesso possível e até mesmo
provável. Justamente porque a incerteza sobre o real é fundamental, é que somos
conduzidos a lutar por nossas finalidades. A ecologia da ação não nos convida a
inação, mas ao desafio que reconhece seus riscos, e a estratégia que permite
modificar a ação empreendida”.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |