Profª Dra Beleni S. Grando
Como expressão da realidade nacional, a sociedade
mato-grossense é constituída por uma diversidade étnica e cultural em
diferentes níveis de acesso aos bens simbólicos e materiais mais amplos da
sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que se apresenta com uma riqueza
simbólica e cultural, na maioria das vezes ignorada e, portanto, desqualificada
nas relações sociais mais amplas que acabam por negar diversas maneiras de ver,
de sentir e de ser homem e mulher dentro do contexto histórico e geográfico
construído em relações de “fronteiras” (BARTH, 1998).
Nesse contexto de fronteiras desterritorializadas onde o diferente é desqualificado e se
constitui de diferentes formas de ser (índio, sem terra, sem teto, sem
direitos, sem cidadania, sem identidade, etc.), promovem-se e reforçam-se
relações etnocêntricas e autoritárias sobre os grupos minoritários (índios e
filhos de trabalhadores rurais ou urbanos que pertencem à classe economicamente
desfavorecida) que resistem a padronização
privilegiada pela cultura hegemônica.
No contexto
complexo, dinâmico e conflitivo, em que se
estabelecem as relações sociais que constituem as diferentes maneiras de ser
brasileiro e brasileira, as identidades coletivas minoritárias são bombardeadas
cotidianamente pelos meios de comunicação de massa, que impõem suas formas de
fazer e de ser que visam a fragmentação dessas coletividades para a
consolidação de uma identidade alienante de consumidores de cultura de massa
que se sustenta no mercado e na mercadorização do
ser, resta-nos o desafio da Educação Intercultural
(GRANDO, 2004).
A cultura é compreendida a partir de
traços que a diferencia nas relações de “fronteiras”
estabelecidas com outras culturas e essas relações possibilitam a constituição
de identidades individuais e coletivas que são marcadas nos tempos e espaços
dos corpos em relação com o meio e com “outros”. As culturas e suas
“fronteiras” são espaços de intercâmbio de sentidos e significados que são
estabelecidos por sensibilidades vivenciadas no corpo e evidenciadas por formas
diversas de trânsito de conhecimentos, tradições, de organizações
habitacionais, familiares, religiosidades, afetividades, etc.. Fronteiras
culturais são, assim, espaços socialmente construídos pelos grupos étnicos em
relação, podendo, em cada fronteira estabelecida, se constituírem espaços
diferenciados dependendo de quem é o “outro” (GRANDO, 2004).
Cada cultura vivida no corpo
explicita nas danças e coreografias, nas rezas e cantigas, nos jogos e
brincadeiras, nos alimentos e na música, etc., formas de fazer e de ser que não
são impostas por estruturas culturais rígidas, mas por padrões que orientam
condutas e com os quais cada grupo se identifica e se
diferencia de outros, mesmo dentro de uma mesma sociedade, pois as referências
que guiam as condutas se constituem sempre num espaço dinâmico, complexo e conflitivo.
Como matriz simbólica na qual a
pessoa tende a ser “fabricada” (VIVEIROS DE CASTRO, 1987)
socialmente, o corpo é “produzido” em momentos específicos geralmente
ritualísticos, como por exemplo, nas festas populares e nos rituais indígenas
(rituais de nominação, de reclusão, etc., que marcam no corpo diferentes fases
da vida e os papéis sociais que cada pessoa assume na comunidade), mas também
nas práticas corporais (técnicas e estéticas corporais, no sentido dado por
Marcel Mauss, 1969; 1974; 1999) cotidianas.
Os momentos festivos são nessa perspectiva, “momentos
sínteses” que explicitam no corpo as formas de transmissão da cultura pelos
grupos minoritários e as formas de se constituírem como grupo. Nesse sentido,
apoiamo-nos para compreendermos a cultura nesses momentos ritualizados
tomamos como referência três eixos que constituem a compreensão da pessoa:
corpo, educação e identidade.
São assim, as práticas corporais que
como práticas sociais associam tecnologias e estéticas específicas para
manifestar no corpo e com o corpo os sentidos e significados da beleza, da
alegria, da religiosidade, da moral, etc., que possibilitam a construção de um
“ideal de pessoa” que se diferencia em cada grupo étnico.
A partir dessas práticas corporais o
processo de “fabricação do corpo” – da fabricação da pessoa – passa pelo
processo de transmissão das formas de fazer e de ser que é efetivado pelos mais
velhos aos mais jovens e que nos momentos ritualizados
são constituídos de significados e sentidos que marcam uma identidade coletiva
que se renova pela eficiência e fortalece o grupo frente a outros, garantindo
sua continuidade nas gerações futuras.
Esse processo de “fabricação da
pessoa” desencadeia uma ação educativa do grupo social ao qual os mais jovens
serão integrados e essa ação geralmente é desenvolvida por peritos qualificados
e reconhecidos como autoridades pelo grupo. Este por sua vez, recorre a
técnicas que são sempre fruto de um processo social e que, portanto, não podem
ser compreendidas fora do contexto que as produziu.
Essas formas de transmissão
perpassam todas as relações sociais e, embora extrapolem a educação escolar, a
escola se constitui, em nossa sociedade, como um espaço em que as fronteiras se
estabelecem e, portanto, num espaço em que se pode privilegiar a reflexão e a
consolidação de uma educação que possibilite o respeito à diversidade e a
aprendizagem com o outro. A escola é assim, um espaço privilegiado para que as
mediações entre as fronteiras culturais e étnicas sejam qualificadas a partir
de uma educação que possibilite qualificar essas relações de fronteiras,
desvelando os valores excludentes que permeiam as práticas sociais cotidianas
visando novas práticas sociais.
Em outras palavras, a escola é um espaço privilegiado para
que se promova a Educação Intercultural. Esta
educação nos remete, como educadores físicos, ao reconhecimento das práticas corporais
evidenciadas nos momentos lúdicos e festivos que são espaços de mediações e
intercâmbios de sentidos e significados específicos para cada grupo social que
deles participam, maneiras de fazer e de ser específicas que constituem
identidades coletivas que reclamam por valorização e diferença.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |