ALGUMAS NOTAS SOBRE DIVERSIDADE LINGÜÍSTICA

E ESTADO NO BRASIL

 

Aryon Dall’Igna Rodrigues (UnB)

 

            Até meados do século XVIII a monarquia portuguesa aparentemente não se preocupou com a diversidade lingüística nas suas duas colônias da América do Sul – o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão Pará. No primeiro, cuja colonização começou na quarta década do século XVI, embora houvesse uma língua indígena com grande extensão territorial ao longo da costa atlântica, a língua Tupinambá, então denominada Língua Brasílica, mas agora mais conhecida pelo nome Tupi, esta logo perdeu sua vitalidade devido ao extermínio maciço de seus falantes, seja por ação militar dos governantes, seja pelos efeitos fatais das grandes epidemias de varíola e outras infecções introduzidas com os colonizadores. Das numerosas outras línguas, das quais em 1584 o P. Fernão Cardim relacionou sessenta e oito entre o rio São Francisco e o Rio de Janeiro, os colonizadores praticamente não tomaram conhecimento. A língua dos mamelucos de São Paulo, Língua Geral Paulista, herdeira da língua indígena predominante na Capitania de São Vicente, foi progressivamente cedendo terreno ao Português, de leste para oeste, até ser completamente suplantada no decorrer do século XVIII, sem que tivesse preocupado os governantes.

            Diferente foi a situação do Estado do Maranhão e Grão Pará, onde também se constituiu uma língua de mamelucos ou caboclos amazônicos, a Língua Geral Amazônica. Esta língua, em meados do século XVIII, já se tinha tornado a língua comum de toda a população não indígena e da indígena dominada pelos europeus e seus descendentes, em detrimento da portuguesa, que só era praticada com exclusividade pelos portugueses recém chegados. Foi diante dessa situação que o ministro do Reino, o Marquês do Pombal, que atribuía aos jesuítas a propagação da Língua Geral, promoveu a proibição de seu uso e o privilegiamento absoluto da língua portuguesa. Tal medida legislativa e as ações Dela decorrentes não afetaram substancialmente o uso generalizado da Língua Geral Amazônica, que, mesmo após a expulsão daqueles missionários, continuou a propagar-se até meados do século XIX, quando começou sua recessão provocada por outros fatores, que não as medidas proibitivas governamentais.

            A atitude de favorecimento oficial exclusivo da língua portuguesa foi, entretanto, a que prevaleceu na constituição do estado brasileiro independente, atitude que vigorou durante mais de um século e meio. Só na Constituição de 1988 é que se reconheceram direitos específicos das minorias indígenas, inclusive quanto a suas línguas. Não obtiveram sucesso, porém, entre os constituintes os apelos em favor das línguas minoritárias não indígenas – as européias e as asiáticas, que continuam sem nenhum programa de apoio governamental. Antes de 1988 o Ministério da Educação não tinha nenhum setor voltado para os problemas educacionais das minorias étnicas e lingüísticas, da mesma forma como o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, responsável pelos censos nacionais, não indagava, e até hoje ainda não indaga, sobre as línguas faladas no país. As regulamentações sobre comunicação radiofônica ainda inibem, senão proíbem, transmissões em línguas indígenas.

            A diversidade lingüística no Brasil atual é da ordem de 200 línguas, perto de 180 indígenas e cerca de 20 alienígenas, isto é, provenientes da Europa e da Ásia. Das diversas línguas africanas que foram introduzidas desde o final do século XVI até o século XIX, nenhuma sobreviveu no decorrer do século XX. Das línguas minoritárias que subsistem no país, a eu tem maior contingente de falantes é a japonesa. Dada a falta de recenseamentos sistemáticos é, entretanto, muito difícil compilar os dados demográficos relevantes, seja para o Japonês, seja para as demais línguas minoritárias. Na verdade, temos um conhecimento mais certo sobre os números de falantes das muitas línguas indígenas do que sobre os das poucas línguas não indígenas. Isto se deve aos pesquisadores lingüistas e antropólogos que estudam os índios e, em boa parte à Fundação Nacional do Índio, a FUNAI. Assim, temos dados demográficos sobre a maioria das línguas indígenas, embora com imprecisões devidas a fatores vários, um dos quais é a falta de distinção entre a população global de uma área indígena e as línguas distintas nela faladas.

            Estima-se que o número de línguas indígenas hoje existentes no Brasil, embora considerável, representa apenas 15% da diversidade lingüística que havia em nosso território há 500 anos. Devido à falta de reconhecimento político das minorias indígenas e de suas línguas, o processo de extinção continuou afetando os povos e seus idiomas durante todo o período imperial e republicano. Só agora, graças ao espírito liberal que prevaleceu na nova Constituição, é que começam a ser propostas tendentes a interromper esse processo. Embora alguns órgãos governamentais, tanto no nível federal, como no âmbito de algumas administrações estaduais e municipais já se sintam encorajados, senão obrigados, a apoiar tais ações, estas partem ainda, sobretudo, de organizações não governamentais e, o que é muito importante, de algumas organizações dos povos indígenas.

            Quando o Brasil se tornou independente, propostas de consideração especial das minorias indígenas, como as de José Bonifácio, não foram acolhidas na carta constitucional do Império. No início do período republicano foi dado importante passo à frante co a criação em 1910, no Ministério da Agricultura, do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, confiado à organização e administração do General Rondon, que já se havia destacado no trato respeitoso com os povos indígenas. Mais tarde esse serviço se livrou do encargo de estabelecer trabalhadores rurais nas áreas “pacificadas”, tendo prevalecido só o objetivo protecionista dos índios, compatibilizado nos textos constitucionais pela classificação desses povos como juridicamente incapazes e, por isso, tutelados pelo Governo Federal. Apesar dessa tutela e, às vezes, em nome dela, muitos povos indígenas continuaram a ser explorados, espoliados e mantidos à margem da sociedade majoritária, como não cidadãos. O direito constitucional brasileiro não abriu espaço para cidadanias diferenciadas, com línguas, culturas e organizações sociais próprias, mas coordenadas harmonicamente com o poder central.

            Um outro aspecto da questão da diversidade lingüística no Brasil tem a ver com a língua majoritária, o Português. Este é a língua maciçamente majoritária, falada por cerca de 170 milhões de pessoas (em contraste com a segunda língua, que é a japonesa com uns 500.000 falantes e com a língua indígena mais falada, a Tikúna, com cerca de 32.000 falantes no Brasil). Entretanto, como toda a língua difundida por uma grande área, o Português não é uniforme, mas consiste num grande mosaico de variedades dialetais, que divergem entre si e se interpenetram, segundo não só o seu distanciamento geográfico, mas também em função de diversidades sociais e culturais. De um ponto de vista estritamente científico, cada uma dessas variedades é uma manifestação legítima da língua portuguesa do Brasil. Entretanto, embora o único aspecto do uso lingüístico regulado por nossa legislação federal seja a ortografia, grande parte dos cidadãos sofre sanções nas escolas e fora delas pelo uso das variedades lingüísticas que adquiriram. Se é verdade que esse tipo de discriminação é em parte devido a preconceitos de um segmento social e relação a outros, não é menos verdade que boa parte de tais preconceitos tem acolhida no sistema oficial de ensino e de seleção para o serviço público. É o Estado patrocinando, por ação ou por omissão, a discriminação entre cidadãos de regiões geográficas diferentes ou de meios sociais distintos.

 

 

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004