SOBRE A CONTRIBUIÇÃO LINGÜÍSTICA DA COMISSÃO RONDON

 

Aryon Dall’Igna Rodrigues (Universidade de Brasília)

 

 

Uma das características das expedições militares dirigidas ou coordenadas pelo oficial matogrossense Cândido Mariano da Silva Rondon, durante a primeira metade do século XX, foi a preocupação pela documentação científica feita a par dos levantamentos geográficos e da instalação de linhas e estações telegráficas. Assim como procurou associar especialistas em ciências naturais às expedições, procurou também incorporar etnógrafos, que observassem os povos indígenas contactados pelas frentes expedicionárias, como foi o caso de Edgard Roquete Pinto, de F. C. Hoehne e do bacharel João Barbosa de Faria. Numa época em que não existia no Brasil a figura do pesquisador lingüista, foram esses pesquisadores que procuraram registrar dados lingüísticos. Mas também o próprio Rondon contribuiu para a documentação das línguas e, a seu exemplo, alguns dos oficiais que participaram das viagens de exploração ou da administração do Serviço de Proteção aos Índios por ele dirigido. A maioria desses documentos consiste em listas de palavras, umas mais extensas, outras mais curtas, em geral registradas sem recursos técnicos de transcrição. Há, entretanto, alguns registros de textos e alguns ensaios de descrição gramatical. Nesta conferência pretendo dar um balanço valorativo das contribuições da Comissão Rondon para o conhecimento das línguas indígenas brasileiras, mais particularmente das amazônicas.

            O nome Comissão Rondon engloba duas comissões que foram chefiadas por Rondon: a Comissão das Linhas Telegráficas do Estado de Mato Grosso, cujos trabalhos aquele oficial assumiu em 1900, e a Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, cuja chefia ele assumiu em 1907. Mas Rondon já atuava como engenheiro militar desde 1892 na reconstrução da linha telegráfica de Cuiabá ao Araguaia. Todos esses trabalhos de construção das linhas telegráficas, que deviam estabelecer e assegurar as comunicações rápidas entre as regiões ocidentais do Brasil e os centros administrativos no leste, foram realizados nos territórios de vários povos indígenas. Já no final do século XIX Rondon teve de relacionar-se principalmente com o povo Boróro, cuja língua ele declarou ter aprendido a falar. Mas foi sobretudo a segunda comissão a que penetrou em terras de índios ainda não contactados previamente, no noroeste de Mato Grosso, especialmente na parte que depois veio a constituir o Território Federal do Guaporé, mais tarde rebatizado, em homenagem a seu desbravador, como Território Federal de Rondônia e, mais recentemente, promovido a Estado de Rondônia.

            Os trabalhos da Comissão Rondon e de seus colaboradores passaram a confundir-se em grande parte com os de um outro serviço de grande importância que foi atribuído a Rondon pelo Governo da República: o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, criado em 1910, de modo que nem sempre será fácil distinguir se um trabalho é produto daquela comissão ou deste serviço, pois Rondon chamou para este alguns de seus auxiliares de confiança, tanto militares como civis, nas expedições da comissão. Alguns desses auxiliares deram-lhe apoio também em outro encargo oficial, que foi a Inspeção de Fronteiras, especialmente na fronteira com a Guiana Inglesa.

            Das publicações da Comissão Rondon três são de natureza exclusivamente lingüística: Esboço gramatical e vocabulário da língua dos índios Borôro (Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Proteção aos Índios, 1948), Esboço gramatical e vocabulário da língua dos índios Ariti ou Pareci (Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Proteção aos Índios, 1948) e Glossário geral das tribos silvícolas de Mato-Grosso e outras da Amazônia e do Norte do Brasil (Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Proteção aos Índios, 1948). Há, entretanto, uma grande quantidade de documentos inéditos, que foram incorporados aos arquivos do Serviço de Proteção aos Índios e hoje estão guardados no Museu do Índio, no Rio de Janeiro (cf. “Catálogo do material lingüístico da Comissão Rondon”, Boletim do Museu do Índio, Documentação, n° 2, 40 p. Rio de Janeiro, 1982). O único volume publicado (especificado como “tomo I”) do Glossário Geral contém dados de 17 línguas, mas os inéditos incluem mais de trinta outras, elevando a uma cinqüentena o número de línguas registradas pela Comissão Rondon, o que é, independentemente da extensão e da qualidade desses registros, sem dúvida uma contribuição notável. A importância científica desse acervo de dados lingüísticos resulta maior quando se verifica que alguns deles passaram a constituir os únicos testemunhos de línguas que se extinguiram no processo de ocupação extrativista e agropecuária que, apesar das preocupações humanitárias de Rondon, passaram a afetar fortemente os povos indígenas e a exterminar muitos deles. Entre outros, esse é o caso da língua dos Kepkiriwát (Kipkiriuát, Quêpi-quiri-uáte), hoje extintos, mas dos quais o próprio Rondon registrou em 1913 pouco mais de uma centena de palavras e, em outras ocasiões, mais dois pequenos vocabulários; um outro oficial da Comissão  também registrou cento e poucas palavras e o etnógrafo Barbosa de Faria organizou três vocabulários maiores, um deles com cerca de 400 palavras. Tais dados permitiram identificar pequenos detalhes gramaticais da língua e classificá-la como pertencente ao tronco lingüístico Tupi.

            O etnólogo Edgar Roquette Pinto, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, incorporou-se em 1912 a uma das seções da Comissão Rondon, para estudar os índios Paresí ou Arití e os Nambikwára, estes últimos então recém-contactados por Rondon. Em seu livro Rondônia, publicado pela primeira vez em 1917, apresentou um pequeno vocabulário da língua Paresí e listas menores de palavras de quatro dialetos do Nambikwára (Tawité, Tagnaní, Kokozú e Anunzê) e também outra lista desta língua registrada pelo tenente A. Pyreneus de Souza. As transcrições são impressionísticas e utilizam as letras disponíveis no alfabeto português.

            Rondon é o autor de um pequeno volume publicado em 1910 como História Natural – Etnografia (2a. ed., 1947), constituído por dois ensaios: “Índios Parici” e “Índios Nhambiquara”. O primeiro inclui um vocabulário Português-Paresí e pequena coleção de frases soltas, em transcrição impressionística, escrita com as letras do alfabeto português. Transcreve também as letras de quatro cantos e três pequenos textos de lendas: do milho, da mandioca e da origem do homem. O segundo, além de observações feitas no processo de “pacificação”, transcreve “rápidos vocabulários colhidos nas primeiras fases da penetração”, colhidos por Júlio Caetano Horta Barbosa, Severiano de Albuquerque, Celestino Rodrigues e Mário Topin.

            Rondon mesmo colheu também vocabulários de outras língua, alguns publicados, outros inéditos: Karajá, Nambikwára, Pianokotó, Rangu, Takwatép, Teréna, Tikúna, Urumí. Seu nome figura como autor dos dois ensaios gramaticais publicados sobre as línguas Paresí e Boróro, embora haja elementos para considerar que o único autor tenha sido João Barbosa de Faria, que figura como colaborador. Este, que tinha o curso de medicina incompleto e por isso foi qualificado como “doutorando” nessas publicações, faleceu em 1941, antes da publicação dos dois ensaios. Cuidou da edição o então Secretário do Conselho Nacional de Proteção aos Índios, General Amílcar Botelho de Magalhães, e a este é que provavelmente se deve a atribuição da autoria a Rondon. Logo na apresentação do Esboço gramatical... dos índios Ariti (Parici) (1948) é declarado que “A matéria toda foi elaborada pelo saudoso etnógrafo daquela Comissão, o doutorando João Barbosa de Faria” e numa nota de pé de página do Esboço (1948) da língua Boróro é informado que a falta de um número de parágrafo numa seqüência podia dever-se a engano de numeração no original ou podia ter sido esse número reservado para matéria a ser acrescentada, o que não era mais possível esclarecer dado o falecimento do autor.

            João Barbosa de Faria, além de elaborar esses dois ensaios gramaticais, que são acompanhados de vocabulários e de outros dados de interesse lingüístico e cultural, inclusive de textos com tradução, colheu vocabulários de maior ou menor extensão de uma vintena de línguas de Mato Grosso, Rondônia e Roraima, filiadas a diversas famílias genéticas: Apiaká, Ipotewát, Pawatê e Takwatép (fam. Tupi-Guaraní), Arikém (fam. Arikém), Kepkiriwát (fam. Tuparí?), Bakairí do Rio Novo, Bakairí do Rio Xingu, Mayongóng, Makuxí, Nahukwá e Taulipáng (fam. Karíb), Boróro (fam. Boróro), Karipúna (fam. Pano), Máku (isolada), Mehináko, Wapixána e Waurá (fam. Aruák), Nenê e Tagnaní (fam. Nambikwára), Eloé ou Karipúna (fam. Pano).

 

            Nem Rondon, nem qualquer de seus colaboradores estava preparado para trabalhar cientificamente com as línguas faladas pelos povos indígenas. Aliás, no início do século XX só tivemos no Brasil um intelectual que soube documentar adequadamente essas línguas. Foi João Capistrano de Abreu, o grande historiador, que, além de contribuir para a documentação da língua Bakairí de Mato Grosso, produziu um excelente trabalho sobre a língua dos Kaxinauá do Acre. Capistrano de Abreu aprendeu a fazer lingüística descritiva estudando o trabalho do notável etnólogo alemão, Karl von den Steinen, sobre a língua Bakairí. Entretanto, num país em que não havia universidades e em que o ensino da lingüística só na década de 40 iria começar a estabelecer-se e a ter seu objeto desvinculado dos estudos filológicos da língua Portuguesa, a obra lingüística de Capistrano, publicada em 1914, foi vista apenas como uma excentricidade de um historiador e não teve nenhum efeito estimulante para o encaminhamento de pesquisas análogas. Dos colaboradores da Comissão Rondon, João Barbosa de Faria é o que mais se dedicou à documentação lingüística e essa era provavelmente uma de suas funções como “etnógrafo” da comissão. Não conheço, porém, nenhuma indicação de que tivesse tido contacto com Capistrano de Abreu. De qualquer modo, os conceitos lingüísticos que revela nos ensaios sobre as línguas Paresí e Boróro são apenas os que se encontravam implícitos nas gramáticas tradicionais da língua portuguesa.

            Também Roquette-Pinto, que publicou seu Rondônia em 1917, não fez nenhuma referência a Capistrano de Abreu, assim como não deve ter conhecido o trabalho descritivo de línguas indígenas que já vinha sendo feito na América do Norte sob orientação e estímulo de outro grande antropólogo alemão, Franz Boas, que já em 1911 havia publicado o primeiro volume do Handbook of American Indian Languages, com sua famosa introdução que orientou a pesquisa lingüística nos Estados Unidos e no Canadá durante muitos anos. É interessante notar que, com respeito à transcrição dos sons lingüísticos, Roquette-Pinto escreveu o seguinte: “Embora existam diversos sistemas fonéticos para representação das línguas primitivas – (alfabeto Kosmos, de Schmidt, etc.) – julguei preferível usar as letras do alfabeto latino, acrescidas de algumas especiais notações (ü) ao alcance de qualquer leitor”. E a isso acrescentou em nota: “O Padre W. Schmidt (“Anthropos”, 1907) expõe minuciosamente a evolução histórica da fonética e os diferentes sistemas que têm sido propostos. Acrescenta no seu trabalho o seu sistema, que tem tido grande aceitação” (Roquette-Pinto 1950:264). Estava referindo-se, como se vê, ao que ficou mais conhecido como “Anthropos-Alphabet”, o alfabeto fonético da revista Anthropos, publicação periódica de antropologia e lingüística criada pelo padre Wilhelm Schmidt em 1906 e ainda viva, sistema esse de notação fonética que foi usado por Curt Nimuendajú e por Theodor Koch-Grünberg na maikor parte dos dados de línguas brasileiras que publicaram, pelos padres franceses Constant Tastevin para a Língua Geral Amazônica e Antônio Maria Sala para a língua Kayapó, por frei Chrisostomus Strömer para a língua Mundurukú e por outros que publicaram dados lingüísticos do Brasil nas décadas de dez, vinte e trinta do século XX. Não só Roquette-Pinto renunciou a esse recurso, mas nenhum dos outros colaboradores de Rondon serviu-se dele ou de outros sistemas de notação fonética mais precisa.

            É interessante notar, ainda, que Roquette-Pinto dispôs em campo de uma máquina de cilindro para gravar som, com a qual fez várias gravações de música dos índios Paresí (e de sertanejos cuiabanos), inclusive com textos cantados – e nesse uso ele foi notável pioneiro no Brasil –, mas parece que não lhe ocorreu a conveniência de gravar textos em prosa ou simples listas de palavras. Sobre a dificuldade que devia ter para registrar dados lingüísticos, e que certamente era comum aos outros participantes da Comissão Rondon, note-se a seguinte observação que ele fez a propósito da língua Paresí: “Exixte grande dificuldade para boa tradução dos textos. Os índios dão o significado dos vocábulos com bastante precisão; mas o valor das frases sofre, consideravelmente na versão que efetuam, a pedido, do pareci para o português. Aparecem, continuamente, termos, palavras, radicais, que eles mesmos não sabem dizer donde vieram, todas as vezes que se manda um pareci traduzir uma frase brasileira para seu idioma.” (Roquette-Pinto 195):135-136). Diante disso, ele avalia altamente o trabalho publicado por Rondon sobre essa língua e há pouco referido por mim: “A língua desses índios acha-se hoje documentada em léxico abundante, que Rondon enriqueceu prodigiosamente nos últimos oito anos, duante os quais tem sido a pessoa mais influente no meio pareci.” (idem, 135). O vocabulário publicado por Rondon compreende 609 palavras da língua Paresí e é acompanhado de três pequenos textos, o maior deles com doze linhas impressas.

            Concluindo estas minhas observações ainda mal concatenadas, devo dizer que, apesar da falta de conhecimento lingüístico científico, a Comissão Rondon produziu extensiva documentação das línguas de Mato Grosso e Rondônia. Essa documentação foi realizada com persistência durante mais de vinte anos, com a consciência de que era necessário registrar as línguas de todos os povos indígenas. A falta de conhecimentos especializados para analisar as línguas não era uma característica daquela comissão, mas o era do próprio Brasil e de toda a América do Sul naquelas primeiras décadas do século XX. Lembre-se que só na década de 1960 foi possível começar a formar lingüistas motivados para o estudo da realidade lingüística de nosso país, com a criação do primeiro programa de pós-graduação em lingüística na Universidade de Brasília em 1963. Entretanto, por precária que tenha sido em vários aspectos técnicos, a documentação produzida salvou para o conhecimento científico línguas de povos que já desapareceram, como é o caso já mencionado dos Kepkiriwát, cujo idioma só foi registrado pela Comissão Rondon.

Referências:

Abreu, J. Capistrano de. 1914. Rã-txa hu-ni-ku-ĩ, a lingua dos Caxinauás do rio Ibuaçú, affluente do Murú (Prefeitura de Tarauacá). Rio de Janeiro. 630 p.

Rondon, C. M. da S. 1910. Ethnographia. Commissão de Linhas Telegraphicas Estratégicas de Matto Grosso ao Amazonas. Annexo n. 5, historia natural. Rio de Janeiro. 57 pp.

 _____ & J. Barbosa de Faria. 1948a. Esboço gramatical e vocabulário da língua dos índios Borôro. Algumas lendas e notas etnográficas da mesma tribo. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Proteção aos Índios. 211 p.

_____ & J. Barbosa de Faria. 1948b. Esboço gramatical, vocabulário, lendas e cânticos dos índios Ariti (Parici). Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Proteção aos Índios. 110 p.

Roquette-Pinto, E. 1950. Rondônia. 5a. edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 395 p.

Steinen, K. von den. 1892. Die Bakaïrí-Sprache: Wörterverzeichnis, Sätze, Sagen, Grammatik. Leipzig: K. F. Koehler’s Antiquarium. 404 p.

 

 

 

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004