SOBRE AS
LÍNGUAS INDÍGENAS DO MATO GROSSO
Ana
Suelly Arruda Câmara Cabral (Universidade de
Brasília)
O coração de uma língua são os seus falantes nativos.
Em geral, a causa mais direta da morte de uma língua (a qual é em si resultado
de outros fatores) é que em algum momento os falantes nativos param de falá-la
como seu principal meio de comunicação. Na maior parte dos casos, o parar de
falar uma língua não é devido a nenhuma decisão consciente. É mais parecido com
o parar do bater do coração: quando trauma, doença ou deterioração estressa o
corpo além do que a vida pode tolerar, o coração pára de bater e segue-se a
morte. Do mesmo modo, o estresse e as demandas da sociedade e da língua
dominantes eventualmente acarretam o cessar do uso de uma língua ameaçada...
Para uma pessoa que está morrendo, a primeira tarefa dos médicos é fazer o
coração bater de novo. Para uma língua ameaçada, a primeira tarefa é fazer com
que os falantes nativos a falem de novo. (Leanne Hinton, 2001:13)1
O
Estado do Mato Grosso é a segunda mais importante região do Brasil em termos de
diversidade lingüística, perdendo, nesse aspecto, apenas para o Estado do
Amazonas. Nele são faladas línguas dos quatro maiores
agrupamentos genéticos da América do Sul - o tronco Tupí,
o tronco Macro-Jê, a família Aruak
e a família Karíb. São também faladas as
línguas da família Nambikwára, uma família menor da
Amazônia brasileira, três línguas isoladas, – a língua Trumai,
a língua Mynký/Irantxe e a língua Chikitano
–, e uma língua não identificada geneticamente até o presente, falada por
índios ainda não contactados, referidos na literatura
como os Arára do Aripuanã
ou Arára do Beiradão. Das
12 famílias do tronco Macro-Jê (Rodrigues 1986,
1999), excluídas três famílias cujas línguas são agora extintas (Karirí, Purí e Kamakã), línguas de quatro outras famílias são faladas no
Mato Grosso: Boróro (família Boróro),
Rikbáktsa (família Rikbáktsa),
Karajá (família Karajá), Kayapó, Panará ou Kreen-akarore, Suyá e Tapayúna ou Beiço de Pau (família Jê).
O Tronco tupí se faz representar por falantes de
quatro de suas dez famílias: família Tupí-Guaraní – Tapirapé (ramo IV), Apiaká, Kayabí (ramo VI), Kamayurá (ramo VII), Jurúna (Yudiá ou Jurúna), família Awetí (Awetí), família Mondé (Zoró ou Pageýn e Cinta-larga). Da família Karíb,
são faladas 7 das 8 línguas meridionais – Bakairí, Ikpéng ou Txicão, Kalapálo, Kuikúro, Matipú, Nahukuá ou Nafuquá e Naruvoto; da família Aruák são faladas as línguas Mehinako,
Paresí, Haliti, Yawalapití, Enawenê-Nawê ou Salumã e Waurá ou Wauja; e da família Nambikwára
são faladas línguas de dois dos seus ramos – Nambikwára
do Norte e Nambikwára
do Sul.
Dados
como esses, indicadores de significativa diversidade lingüística, são à
primeira vista, animadores, mas, na realidade, a vitalidade da maioria dessas
línguas encontra-se seriamente abalada, e algumas delas já podem ser
consideradas extintas, visto que não são mais usadas como meio de comunicação
pelos grupos que as falavam originalmente, sobrevivendo apenas na memória de
seus últimos lembradores, já de idade bastante avançada. Estes são os casos do Guató (Adair Palácio, comunicação pessoal), uma língua
isolada do tronco Macro-Jê, que hoje está limitada à
lembrança de cinco indivíduos, três mulheres e dois homens, todos com mais de
cinqüenta anos; do Umutína, língua da família Boróro, que sobrevive na memória de um único indivíduo; e
do Apiaká, língua do ramo VI da família Tupí-Guaraní, que possivelmente se encontra no mesmo estado
moribundo da língua Guató.
Além
da lamentável morte dessas línguas, várias outras ainda faladas no Estado do
Mato Grosso estão progressivamente caminhando para a extinção, pois já não são
mais faladas por todos os membros das comunidades e já não são mais
transmitidas de pais para filhos. A língua Rikbáktsa é
uma dessas línguas, cuja interrupção na transmissão para as novas gerações já
ocorreu na maioria das comunidades. O quadro geral da língua Rikbáktsa é o seguinte: muitas crianças não entendem a
língua nativa; outras são conhecedoras passivas, entendem, mas não a falam; e
poucas são as que nela são fluentes (Léia de Jesus
Silva, comunicação pessoal). Situação análoga é a dos Índios Boróro, e também provavelmente a dos Parecí,
que, como os Rikbáktsa, vêm progressivamente
substituindo a língua nativa pelo Português.
O
quadro torna-se mais assustador quando considerada a maioria das línguas do
Mato Grosso. Apesar dessas línguas continuarem sendo o único ou principal meio
de comunicação em suas comunidades, as populações que as falam são
numericamente reduzidas[1].
Estes são os casos das línguas faladas pelos Tapayúna,
58 indivíduos (1995), dos Naruvoto, 78 indivíduos
(2003), Minký, 78 indivíduos (2000); Nahukuá, 105 indivíduos (2002); Trumái,
120 indivíduos (2002); Awetí, 138 indivíduos (2002); Matipú, 199 indivíduos (2002); Panará,
202 indivíduos (2000); Yawalapití, 208 indivíduos
(2002); Jurúna, 278 indivíduos (2001); Ikpéng, 319 indivíduos (2002); Enawenê-Nawê, 320 indivíduos (2000); Waurá
321 indivíduos (2002); os Irántxe 326 indivíduos
(2000); Suyá, 334 indivíduos (2002); Kamayurá, 355 indivíduos (2002), Zoró,
414 indivíduos (2001); Kuikúro, 415 indivíduos
(2002); Kalapálo, 417 indivíduos (2002); Tapirapé, 438 indivíduos (2000). Em suma, das 33 línguas
ainda faladas no Estado do Mato-Grosso, apenas o Kayapó
possui um número de falantes que chega a pouco mais de 2.500. Esses dados
mostram que as línguas do Mato Grosso estão todas, de uma maneira ou de outra,
ameaçadas de extinção.
Acima
de tudo, a perda de uma língua é a perda da principal referência étnica e
cultural de um povo. Vários grupos indígenas brasileiros que perderam sua
língua nativa, sofrem por não poderem mais recuperá-la, sobretudo porque sabem
que com ela perdeu-se também parte muito importante do conhecimento tradicional
do seu povo.
Para
o lingüista, a morte de uma língua é tão lamentável como é a extinção de uma
espécie animal para o zoólogo ou de uma planta para o botânico. E para nós, que
além do trabalho descritivo e documental das línguas indígenas desenvolvemos
estudos comparativos, os quais têm entre os seus maiores propósitos contribuir
para o conhecimento de fases pré-históricas das línguas e das culturas de seus
falantes, a morte de uma língua sempre corresponde ao desaparecimento de uma
peça chave do quebra-cabeça que, se montado, ajudaria a contar, da historia de
um povo ou de um conjunto de povos, importantes aspectos de sua diversificação
lingüística e cultural, de seus movimentos migratórios e de seus contatos
passados com outros povos. Este é apenas um dos significados da morte de uma
língua para o lingüista. Muitos fenômenos de importância para o avanço de
teorias lingüísticas poderiam ter sido observados em línguas que hoje estão
extintas. A língua Kirirí, por exemplo, outrora
falada no nordeste da Bahia (até início do século XIX), extinta antes de ter
sido plenamente documentada, tem sido considerada a partir dos estudos de
Rodrigues (1993, 2004), baseados nos escritos do Jesuíta Mamiani
(século XVII), como um dos raros exemplos de línguas puramente ergativas, característica até agora não encontrados em
nenhuma das línguas que sobrevivem em nosso continente.
Nesta
comunicação vou considerar a importância de um levantamento da situação efetiva
das línguas indígenas do Mato Grosso, tendo em vista ações que promovam sua
preservação ou sua revitalização, bem como a necessidade urgente de pesquisas
lingüísticas sistemáticas voltadas tanto para a descrição das línguas, quanto
para a aplicação do conhecimento resultante nos programas educacionais
indígenas.
Referências
Bibliográficas
HINTON, Leanne & HALE, Ken. 2001. The Green Book of Language
Revitalization in Practice. Berkeley: Academic Press.
MAMIANI, L. V. 1699. Arte de Grammatica
da lingua brasilica da naçam Kiriri. Lisnonne, 2e édition, 1877, Rio
de Janeiro, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
RODRIGUES, A. D. 1986.
RODRIGUES, A. D. 1986. Línguas Brasileiras: para o conhecimento das línguas
indígenas. São Paulo: Edições Loyola.
RODRIGUES, A.D. 2003. Ergativité dans le nord-est brésilien:
fa famille kariri. Em Faits de langues: Méso-Amérique, Caraïbes, Amazonie, 2:71-75,
org. par Jon Landaburu
& Francesc Queixalós.
Paris: Ophrys.
RODRIGUES, A.D. 1999. Macro-Jê, pp. 164-206 de The
Amazonian Languages,
org. por R. M. W. DIXON & A. Y. AIKHENVALD. Cambridge:
Cambridge University Press.
[1] Os dados populacionais apresentados a seguir foram extraídos do site www.isa.org, Povos indígenas no Brasil > Quem, onde, quantos > Quadro geral, atualizado em setembro de 2003).
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |