BRASÍLIA (S): ESPECIFICIDADES LOCAIS DE UM PATRIMÔNIO MUNDIAL[1]

 

Ana Elisabete de A. Medeiros (*)

 

2007 aproxima-se, trazendo consigo o marco de duas décadas de inserção de Brasília na Lista do Patrimônio Cultural da Humanidade da UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Trata-se de um momento que merece, para além de algumas celebrações, muitas reflexões que permitam melhor situar o processo de construção social do patrimônio cultural da capital federal diante de si mesmo e das demais experiências nacionais e internacionais.

 

Em meio a um cenário local, nacional e internacional aonde o processo de construção patrimonial mais recente se generaliza e se confunde com os projetos de requalificação, reabilitação e/ou revitalização de antigas áreas urbanas centrais, tradicionais, vítimas, em algum momento pretérito, de abandono e esvaziamento, como situar Brasília?

 

Capital Federal, Sede de Representações Nacionais e Internacionais, Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Patrimônio Cultural da Humanidade, cidade moderna, cidade planejada, cidade para o poder: Brasília surge, no Planalto Central, como uma realidade dissonante, única, própria, que se sobressai de um contexto universal que tende à homogeneidade.  Todavia, esse caráter particular que, a princípio, pode ser entendido como uma vantagem competitiva, no contexto do patrimônio cultural encarado como um instrumento de desenvolvimento local e, ao mesmo tempo, de inserção nacional, regional e internacional, pode se revelar, na verdade, como um grande entrave.

 

O que parece se observar no Planalto Central, é uma realidade que exige novos parâmetros de compreensão, construção e intervenção patrimoniais. Entretanto, Brasília permanece, em muitos sentidos, presa a princípios e preceitos gerais que, via de regra, não levam em consideração as especificidades locais.

 

A expansão do quadro cronológico da preservação, permitindo, na década de oitenta, o reconhecimento de bens culturais modernos, inclusive da capital federal a partir da sua qualificação como “representação de uma obra notável do gênio criativo humano” ou como “exemplo destacado de um tipo de construção ou conjunto arquitetônico (...) que ilustre uma ou mais etapas significativas da história da humanidade” (UNESCO, 1997), inaugura uma nova fase no processo de construção patrimonial, que permanece, em muitos aspectos, ainda desconhecida e/ou inadequadamente explorada. De um lado, portanto, tal processo continua desconhecido pelo público, em geral. Nesse sentido, uma enquête rápida, entre parentes e amigos, seria suficiente para perceber o nível de desconhecimento e assombro diante do fato de Brasília ser patrimônio cultural. No imaginário popular, a prática preservacionista ainda se encontra associada à salvaguarda de expressões culturais tradicionais, não havendo espaço para o moderno, o novo. Do outro lado, tal processo parece inadequadamente explorado pelos especialistas locais, nacionais e internacionais da área que tendem a transpor à realidade local parâmetros que lhe são, muitas vezes, alheios.

 

Dentro do perímetro tombado como patrimônio histórico e artístico nacional ou classificado como patrimônio mundial, o que se pretende preservar são as escalas gregária, monumental, bucólica e residencial. É a primeira vez que um bem é classificado/tombado como patrimônio cultural a partir da preservação das suas escalas. Tal procedimento se justifica pelas características singulares do Plano Piloto, na qualidade de “centro histórico”, espaço modernista de encontro, entre outros, de uma multiculturalidade expressa na convergência de pessoas provenientes das mais variadas partes do Brasil e do mundo. Ora, se tal inovação se justifica será que ela não exige instrumentos de intervenção/legislação que lhe sejam próprios?

 

Mas, a preservação na Capital Federal requer que questões, aparentemente primárias, sejam, também, colocadas. Quando se fala em preservação em Brasília, de que Brasília se trata? Em relatório recentemente divulgado, a UNESCO, juntamente com o ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, alerta: “... qual das Brasílias nós deveríamos considerar como referência: a Brasília imaginada por Lúcio Costa em 1957, a cidade inaugurada em 1960 ou a cidade de 1987, quando foi inscrita na Lista do Patrimônio Mundial? Porque elas são todas diferentes. Outra questão é o que nós podemos chamar de Brasília, hoje: o Plano Piloto de Lúcio Costa, a área protegida ou uma aglomeração maior, incluindo a planejada e os subúrbios espontâneos?” (UNESCO/ICOMOS, 2001).

 

Discutir Brasília, em suas especificidades locais de patrimônio mundial, significa desvendar, expor e contrapor Brasílias: Brasília/DF; Brasília – entorno/cidades satélites; Brasília – Plano Piloto; Brasília – Lago Paranoá; Brasília – paisagem do cerrado; Brasília – imaterialidade criadora de uma multiculturalidade local. A partir dessa perspectiva, a preservação do patrimônio local, nacional e mundial, nessa Brasília de múltiplas faces, constitui uma questão cultural, natural, material e imaterial que exige, antes de mais nada, planejamento integrado.

 

Brasília fragmentada gerando Brasílias sobre as quais o instrumento do planejamento urbano poderia incidir recompondo Brasília: inquietações que ainda não buscam respostas definitivas mas se inserem na reflexão mais global em torno da construção de um problema inicial acerca da sobreposição de uma cidade real sobre uma cidade imaginada, no processo de construção do patrimônio cultural e produção do espaço local e regional - Eis o propósito de “Brasília (s): especificidades locais de um patrimônio mundial”.

 

 

Arquiteta, Mestre em Urbanismo, Doutora em Sociologia, Pesquisadora CAPES – ProDoC – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPG) – Universidade de Brasília (UnB) – e-mail: ana@unb.br

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília – Campus Darcy Ribeiro, ICC Norte, Subsolo – CEP: 70.910 – 900 - Asa Norte, Brasília-DF – Tel/Fax (+55) 0 (XX) 61 307 24 54

 



[1] - O presente texto é fruto da pesquisa “Entre o Local e o Regional, Brasília Construindo o Patrimônio”, em fase de desenvolvimento pela autora, no âmbito do projeto de pesquisa “Brasília Revisitada: 1957 – 2007. Arquitetura, Urbanismo e Patrimônio” da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília – FAU/UnB, através do ProDoc, Programa de Inserção de Jovens Doutores, da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Algumas partes do texto são provenientes da Tese de Doutorado da autora.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004