O QUE TEMOS DE APRENDER PARA ENSINAR CIÊNCIAS SOCIAIS?

Amaury Cesar Moraes

FEUSP

 

            O recurso à experiência histórica das demais comunidades científicas pode ser para nós, cientistas sociais, algo bastante esclarecedor. Assim, percorrendo alguns exemplos no exterior e no Brasil, e comparando-os ao comportamento de nossa comunidade científica, podemos perceber o que nos falta, ou “o que temos de aprender”, para que o ensino de ciências sociais rompa preconceitos internos e com isso se alarguem suas fronteiras e conquiste legitimidade para além dessas fronteiras. Tomamos como exemplo, vindo do exterior, o caso, já paradigmático, que constitui per se um exemplo histórico revolucionário para educação, da surpresa, verdadeira estupefação que foi, o lançamento do satélite Sputnik pelos soviéticos em 1957. Os cientistas americanos assumem a liderança do movimento de reforma do ensino de ciências, resultando daí grandes projetos, abrangendo os currículos de Biologia, Física, Química e Matemática da escola básica. Há uma expectativa  nesse processo de que se pudesse melhor formar os jovens, preparando-os para a vida numa sociedade tecnológica e preparar bem aqueles que iriam para as universidades. Aparentemente, os progressos científicos americanos dos anos 1960 e 1970, teriam sido resultado dessas mudanças operadas, senão diretamente na educação secundária, ao menos na legitimação dessa orientação da educação geral. Isso não só ampliou o grau de legitimação social para os programas do governo, como o “espacial”, como também as reformas educacionais, além de ampliar e renovar o mercado de consumo interno dos Estados Unidos.

            No caso brasileiro, dois componentes devem ser levados em consideração, o contexto nacional – o nacional desenvolvimentismo  como forma nova da eterna busca de modernização do Brasil nos anos 1950 e 1960 – e o contexto universitário. De um lado, a necessidade de implementar o modelo de substituição de importações, como mudança da orientação econômica do País, de agrário para industrial. Duas preocupações se destacam no processo de inovação ocorrido nesse nível de: atualização e eficiência dos currículos das disciplinas científicas e “recrutamento de talentos”. Surgiram, então, “movimentos destinados a melhorar o ensino de Ciências” que “eram liderados por cientistas preocupados com a formação dos jovens que entravam na universidade, dos quais emergiriam os futuros cientistas

            Desde então, temos tido uma presença bastante forte da comunidade científica no que se refere à renovação de currículos e métodos no ensino básico brasileiro. Podemos dizer que se foi constituindo um grupo intermediário entre aquilo que poderíamos caracterizar como ciências puras e educação, que muitas vezes atendem pelo nome de educação em ciências (science education), ocupando um espaço que antes se abria e distanciava, hierarquizando, pesquisa e ensino.

            O mesmo vem ocorrendo com a Matemática, nos Estados Unidos e no Brasil, recentemente todo um debate entre partidários do “ensino de matemática” e os partidários da “educação matemática”, e ainda os defensores da “etnomatemática”.

            Na passagem do século, a expressão “alfabetização científica” (scientific literacy)

ganha força, embora estivesse presente desde muito tempo, como leitmotiv daqueles anos 1950 em diante. Na verdade, hoje se pretende tanto mais “fomentar um maior nível de alfabetização científica e tecnológica para todos como prioridade educacional”. Mas desde os anos 1980 e 1990, o ensino de ciências tem assumido uma perspectiva crítica, ou melhor, autocrítica, incorporando uma critério “ético” como elemento extra-científico ao debate sobre os “usos e abusos” das ciências.

            Quando observamos o campo das humanidades, a situação é mais complicada. Aí o que persiste é um conflito entre concepções “tradicionais” e “progressistas.Por exemplo, no ensino de língua portuguesa, o que temos é um infindo debate entre gramáticos e lingüistas; no caso da literatura, o que predomina é um ensino de “história da literatura”.

            No ensino de geografia, a inovação se deveu mais, talvez não pudesse ser diferente, a uma perspectiva marxista conjugada com a ampliação do espaço da geografia humana no currículo secundário. A intervenção atual da comunidade de geógrafos é em vista de uma revisão desses dualismo – físico X humano – e uma valorização do “subjetivo” como elemento central do debate sobre o espaço geográfico. (PCNs)

            O ensino de história, e, particularmente, de história do Brasil, sempre teve um caráter ambíguo. Marcadamente tradicional na educação básica – de memorização, de uso  de questionário como recurso instrucional, baseado em “manuais” -, mantinha-se,  em nível superior, uma comunidade em efervescente debate historiográfico. A ANPUH vem marcando presença nessas tentativas de mudança e redução da distanciamento teórico e prático entre o nível superior e a educação básica, promovendo encontros em que congrega historiadores “que pesquisam” e “que ensinam”.

            Chegamos, enfim, à comunidade de cientistas sociais. Apenas destacarei alguns pontos que podem esclarecer, ao mesmo tempo que provocar, a cômoda posição em que se encontram os membros dessa comunidade. Observe-se, antes de tudo, que enquanto nas outras comunidades foi havendo um “reencontro” entre “pesquisadores-professores” e “professores”; entre cientistas sociais, a tendência tem sido a separação: pesquisadores em ciências e professores de sociologia do ensino médio estão em mundos diversos: aqueles bem postos, legitimados no âmbito acadêmico; estes, desgarrados, vivendo uma ambigüidade crônica.

            Doutra parte, o que vemos no interior do campo das humanidades é uma incorporação, por outras disciplinas, dos discursos, conceitos, métodos e resultados específicos das ciências sociais. Como falar de crítica literária ou de pesquisa em literatura brasileira sem levar em conta as contribuições que a sociologia trouxe para essas atividades.

            O estranho é como essa presença das ciências sociais na cultura brasileira não produziu uma necessidade entre os cientistas sociais de conquistarem um espaço definitivo no ensino médio e criarem um canal com os professores desse nível de ensino.

            Mais estranho ainda é que as ciências sociais dominaram o discurso econômico e político dos anos 1950 e 1960, como suporte teórico-ideológico do nacional- desenvolvimentismo; dos anos 1970, como referência crítica ao modelo econômico e ao autoritarismo oficiais; dos anos 1980 e 1990, como construção de alternativas econômicas e políticas; durante os últimos 50 anos, como base teórica de todo o debate sobre democratização do ensino, da crítica aos meios de comunicação de massa; e têm sido fonte de organização e ao mesmo tempo caixa de ressonância da voz das minorias – mulheres, negros, índios -, senão do próprio povo – a grande maioria formada pelas minorias.

            Mas nada disso era estranho, no entanto, a uma voz quase isolada que desde pelo menos os anos 1950 e 1960 se levantou para, com o mesmo espírito das outras comunidades científicas, alertar aos cientistas sociais quanto à necessidade de intervenção na escola secundária, com aqueles mesmos objetivos dessas comunidades: era urgente dar aos jovens um ensino mais atualizado e mais eficiente e era necessário preocupar-se com a formação dos jovens que entravam na universidade, dos quais emergiriam os futuros cientistas.

            Essa voz dizia no começo dos anos 1960:

            “Quando ingressei na FFCL da USP, como aluno da seção de ciências sociais em 1941, encontrei um ensino universitário de alto nível acadêmico. Para falar francamente, de nível excessivamente alto para as possibilidades intelectuais médias do aluno brasileiro, recém-egresso de um ensino secundário assaz medíocre. (...) Só por acaso jovens aptos para a carreira científica na sociologia chegam aos cursos de ciências sociais e os concluem. E, o que é pior, só por acaso eles são aproveitados produtivamente, ao terminarem os cursos.” (FERNANDES, F.,  “A sociologia como afirmação”, in A Sociologia numa era de revolução social, São Paulo: Nacional, 1963).

            Mas já dizia no começo dos anos 1950:

            “ (...) o ensino de ciências sociais na escola secundária brasileira se justifica como fator consciente ou racional de progresso social. (...) qualquer que seja a razão que fundamenta a inclusão das ciências sociais no currículo do ensino de grau médio no Brasil, é impraticável a preservação de técnicas pedagógicas antiquadas. (...) a idéia de introduzir inovações no currículo da escola secundária brasileira ganha outra significação, quando examinada à luz da própria influência construtiva da educação pelas ciências sociais em um país em formação como o Brasil. (...) esse ensino possui um interesse prático-específico, que hoje ainda não é evidente. É que ele poderá contribuir para preparar as gerações novas para manipular técnicas racionais de tratamento dos problemas econômicos, políticos, administrativos e sociais, as quais dentro de pouco tempo, presumivelmente, terão que ser exploradas em larga escala no país.” (FERNANDES, F., “O ensino de sociologia na escola secundária brasileira”, comunicação apresentada ao I Congresso Brasileiro de Sociologia (1954), reproduzido em FERNANDES, A sociologia no Brasil, Rio de Janeiro: Vozes, 1977)

           

            O que está em discussão é a formação do pesquisador, do professor de nível superior e da educação básica, do técnico e do administrador público que os cursos de ciências sociais vêm efetivando. Mas essa formação não passa apenas por esses cursos, depende também da presença do ensino de ciências sociais no nível médio. Devemos entender a função desse nível de ensino marcada pelo slogan ou enigmático truísmo “formar o cidadão crítico” ou podemos reconhecer sua potencialidade para a produção de talentos ou revelação de vocações? A intervenção da comunidade científica mais ampla na explicitação dos objetivos do ensino médio, e dentro desta, os cientistas sociais, é condição para que os cursos superiores ultrapassem dois limites de sua democratização: o elitismo e a evasão.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004