SIMPÓSIO: OS SUJEITOS DOS DISCURSOS CIENTÍFICOS E TECNOLÓGICOS EM BUSCA DE SEUS VALORES
O CONHECIMENTO DA LINGUAGEM E A LINGUAGEM DO CONHECIMENTO
Alice Maria Teixeira de Sabóia
Departamento de Letras – ICHS/UFMT/R.
O título
deste texto parece um jogo de palavras. As questões que ele encerra não são
novas... Nos registros mais remotos da existência do homo sapiens na face da terra, elas estão presentes; conhecer e dizer a realidade sempre constituíram temas de discussão e
estão na gênese e na história do pensamento humano. Platão e Aristóteles, no
berço da filosofia ocidental, contemplaram-nas, em suas respectivas obras e,
antes deles os pré-socráticos. Por essa tradição, constante ao longo da
história, com variações decorrentes das cosmovisões
predominantes em cada época, pareceria pacífico seu esvaziamento, até
porque, saindo do âmbito das especulações filosóficas, essas questões
constituem, fundamentalmente, a base da produção e da transmissão do saber,
sistematizado, ou não, destacando-se, portanto, seu caráter eminentemente
pragmático.
Como se
reconhece que essas questões, de fundo filosófico, são anteriores e perpassam
todos os fazeres humanos, primordialmente, os interativos, tem-se em vista,
aqui, um fato identificado na atualidade
educacional brasileira: enquanto as ciências lingüísticas ganham recortes cada
vez mais especializados, decorrentes da evolução do conhecimento científico e
do aprimoramento das tecnologias (como, por exemplo, o advento da Terminologia
e da Terminografia), a formação sistemática básica no
Brasil tem seguido uma trajetória estranhamente inversa.
As ondas
predominantes nas políticas públicas educacionais brasileiras mais recentes
(por exemplo, a dos parâmetros curriculares) têm-se movimentado na direção de
condenar o ensino das metaliguagens, a começar,
inclusive, com o próprio ensino de língua materna, como se os sistemas
lingüísticos não se constituíssem, ao mesmo tempo, de linguagem e metaliguagem, ou mais precisamente, como se a metalinguagem
não fosse própria dos sistemas lingüísticos, não fosse a eles inerente.
Não se
sabe, exatamente, por que a “surpresa” com os dados “alarmantes”, obtidos pelas
pesquisas de avaliação da aprendizagem de conhecimentos de língua portuguesa e
de matemática, entre os estudantes, na sua formação básica. A discussão sempre
descamba para outros fatores, e as “causas” continuam as mesmas de sempre: a má remuneração dos
professores, o desaparelhamento das escolas públicas,
a má formação dos professores; a carência, em face da origem sócio-econômica
dos alunos, etc. Enfim, tudo “contribui” para o fracasso na escola e da escola.
Não se
quer aqui afirmar, categoricamente, que esses fatores não produzam seus efeitos
sobre a realidade educacional que se insere, é óbvio, numa realidade social
maior. Entretanto, não se tem levado em conta, por exemplo, o conteúdo
específico do fazer-saber sistematizado; não se leva em conta o fato de que, no
Brasil, os “modismos” - nunca sob suspeita, porque oriundos de alguns
pensadores que habitam certos “centros” que se denominam de “excelência” e, por
isso mesmo, “detentores de inquestionável credibilidade” - têm um espaço
garantido dentro das políticas públicas, qualquer que seja a linha
político-ideológica predominante nas esferas governamentais.
Um desses
modismos mais recentes, gestado dessa forma e com
essa origem, condena, radicalmente, o ensino da metalinguagem gramatical, por
exemplo, porque se acredita, simplesmente que o objetivo da escola é aquele que
o grupo social e familiar já cumpre com toda competência e sem o concurso de
nenhuma estratégia didático-pedagógica sofisticada, ou seja, levar o sujeito
falante a falar. Dentro dessa perspectiva, reduz-se, dramaticamente, o papel
institucional e educacional da escola, encarregada, assim, não da formação básica
geral e específica e da sistematização da linguagem do conhecimento, mas do
cumprimento de uma missão como um mero coadjuvante de uma formação de senso
comum que dispensa o saber da linguagem do conhecimento.
Certas
decisões políticas mais recentes são próprias dessa “visão educacional”. Por
exemplo, a política de cotas nas universidades, considerando supostas
“diferenças raciais e sócio-econômicas”, como
critérios de priorização de ingresso nas universidades brasileiras, é uma
evidência da ruptura com a própria natureza do conhecimento na sua produção, na
sua renovação, na sua transmissão. Sob essa perspectiva, o domínio da linguagem
do conhecimento passa a ser acessório, contingente; não se considera o fato de
que esse domínio, em última instância, representa o próprio saber.
As
universidades brasileiras, notadamente as ditas periféricas, (porque as de
“excelência” encontraram modos de evitar essa política, preservando sua
tradição voltada para a produção e transmissão de saberes específicos em alto nível) viraram alvos da demogogia
em voga. Diante desse quadro, qualquer apelo ao bom senso e ao conhecimento da
ciência, com consciência, nos seus dois sentidos, no dizer de Edgar Morin, parece inútil.
Por outro
lado, certas decisões têm-se assentado na exploração dos sentimentos e das
frustrações populares, notadamente em períodos eleitorais, com a “politicalização” de
todo e qualquer objeto. Não importa, por exemplo, se o que está em jogo
é a competência para fazeres específicos, de alto nível,
ou não. Alcançados os resultados nas urnas e se essa política não der certo,
quem sabe, não se traça, “politicamente” uma política para “corrigir” os rumos
da produção do conhecimento e, em conseqüência, da sua linguagem, ou sobre a
sua linguagem?
A política
é uma espécie de deus ex-machina
contemporâneo: onisciente, onipresente, onipotente, senhora absoluta da vida e
da morte. Por isso, por intermédio de seus “agentes”, os políticos
profissionais e de seus “tentáculos”, nos Conselhos, Comitês Científicos, etc, decreta
tudo, inclusive, que linguagem deve, ou não deve, ser ensinada.
Ignora-se,
contudo, que a linguagem do conhecimento, qualquer que seja a natureza do
saber, jamais prescinde do conhecimento da linguagem, porque essa questão,
antes de ser uma decorrência de decisão de qualquer ordem, é fundamentalmente
filosófica e diz respeito à própria natureza da linguagem; não pode ser
descartada, por mais se queira. Mesmo aqueles que refutam, rejeitam, abjuram, desprezam uma dada linguagem do conhecimento, paradoxalmente,
utilizam outra. Qualquer opção teórica, ou teórico-metodológica, implica o
domínio da linguagem alternativa: uma pressupõe a outra.
A
linguagem do conhecimento pressupõe o conhecimento da linguagem. Sem o
conhecimento da linguagem, não há que se dominar a linguagem do conhecimento.
Existe conhecimento sem linguagem? Até pode existir, mas, não sendo acessível,
do ponto de vista prático, de sua transmissibilidade e, portanto, de sua de sua
utilidade social, não se efetiva e nem se conforma, eticamente, dentro dos
parâmetros de uma ciência com consciência. Por isso, para suas finalidades
primeiras e últimas, não existe.
Nessa
perspectiva, quando se promovem políticas educacionais e instrucionais que
passam pelo esvaziamento do ensino das metalinguagens, o que se promove, de
fato, é o esvaziamento da linguagem do saber, em qualquer nível.
Surpreendentes
não são os resultados das pesquisas nas escolas, principalmente as públicas, de
primeiro e de segundo graus, no que diz respeito à falta de domínio de
habilidades básicas - como saber ler ou saber as quatro operações fundamentais
- por parte dos estudantes. Surpreendente é a surpresa, porque revela a
desfaçatez com que se encara um problema tão sério como é a educação, ao sabor
das políticas públicas irresponsáveis e traçadas por agentes escolhidos não se
sabe exatamente por quais critérios, além do de serem filiados ou ligados a
grupelhos políticos que se julgam acima do bem e do mal, amigos dos reis, que
fazem tudo, menos refletirem conscientemente sobre a responsabilidade de
dirigir os destinos de uma sociedade.
É legítimo
experimentar novos caminhos, desde que sejam “trilháveis”. Essa travessia não
pode nem deve ser desprovida de suportes que garantam a chegada a um porto
seguro, de preferência melhor, em termos de qualidade de vida. Pelo menos, isso
é o que recomenda a ética. A aventura pela aventura, na educação da sociedade
é, no mínimo, antiética. Os modelos educacionais e instrucionais que, por
exemplo, condenam o ensino da metalinguagem sequer podem ser considerados
produtos de alguma reflexão, porque carecem de fundamento filosófico: são a própria negação do
saber e da linguagem do saber.
Com base
nas reflexões de um dos grandes pensadores da linguagem, no Século XX, Roman Jakobson, em seu clássico artigo sobre a afasia,
pode-se afirmar que, ao renegar e sonegar o ensino da metalinguagem - como se
esta não integrasse o domínio da linguagem e do saber -, notadamente no ensino
fundamental, a escola brasileira contemporânea vem “formando”, sistematicamente,
afásicos. Infelizmente, esse “produto” é decorrência de modismos
teórico-metodológicos que a Educação Brasileira, em suas políticas públicas,
assimila sem a menor resistência e, não raro, com festiva consagração.
Com
certeza, se, por hipótese, indagasse-se ao povo, por plebiscito, se ele (o
povo) quer que se formem afásicos nas escolas, com certeza, desde que se lhe
dissesse o que isso significa, a resposta seria um categórico NÃO. Mesmo sem
uma reflexão mais aprofundada sobre essa questão, o povo, provavelmente, não
dissociaria a linguagem da metalinguagem. Por essa razão, mesmo intuitivamente,
por mais humildes e despreparadas que sejam as camadas populares, quando os
pais reclamam da escola e dizem que seus filhos não estão aprendendo quase nada,
eles assim o fazem pela avaliação informal da linguagem que seus filhos
utilizam, ou não utilizam.
A
avaliação de qualquer tipo de conhecimento, seja ele sistematizado, ou não,
faz-se pela linguagem que o veicula, qualquer que seja o grau ou a natureza do
conhecimento avaliado. Aliás, os professores devem saber disso muito bem, uma
vez que o processo de avaliação faz parte de seu fazer profissional,
didático-pedagógico. Não é outro senão o domínio da linguagem do conhecimento,
ou seja o saber lingüístico e a capacidade metalingüística do aluno, que o
professor avalia. Se esse processo, em
qualquer modalidade, for dispensado, o professor não terá a menor idéia daquilo
que seu aluno provavelmente sabe, ou não sabe. Perder-se-á a finalidade do processo ensino-aprendizagem,
da produção e da tradição do conhecimento sistematizado.
Toda e
qualquer atividade humana, independentemente de sua natureza, faz-se
representar por uma linguagem e/ou desenvolve-se com ela. Da mesma forma que o
homem concebe realidades mais ou menos elaboradas, ele as recobre
lingüisticamente. Como sistema lingüístico dá conta desse processo, nada
autoriza decidir-se que o povo não consegue entender realidades mais complexas,
nem a linguagem que as recobre, a menos que se parta de um princípio, segundo o
qual pessoas comuns são portadoras de limitações, por isso, só podem entender o
senso comum, não alcançando, assim, a consciência filosófica, esta acessível
apenas a seres humanos excepcionalmente inteligentes; desse modo, as pessoas comuns não teriam
capacidade de adquirir conhecimentos específicos e, por conseguinte, de
adquirir a linguagem que rotula esses mesmos conhecimentos.
A
“complexidade” poderia desaparecer com uma linguagem mais simples. Assim, os
“menos capazes” teriam acesso a uma linguagem simples, excluindo a
metalinguagem, a ser dominada apenas pelos “deuses do saber”! Estar-se-ia
diante do preconceito.
A
propósito, toda política “facilitadora” e simplista, partindo de pressupostos
como esses, ou de supostas especificidades de seus “beneficiários”, é fundada
no preconceito e, embora se diga de inclusão social, é, de fato, excludente;
reforça o preconceito porque parte de um ponto de vista filosófico e pragmático equivocado. Falta-lhe a marca do
pensamento dialético: o pensar por contradição. Ou, talvez, menos: uma ligeira
reflexão sobre a natureza humana!
Todo ser
humano normal é capaz de entender o que a humanidade concebe, desde que, para
tanto, a ele se proporcionem oportunidades adequadas. Não é com políticas de exceção,
nem com limitações no ensino da linguagem e da metalinguagem que se vai
facilitar o acesso das camadas populares ao conhecimento científico, ou a uma
profissionalização mais refinada; até pelo contrário, e os dados mais
recentemente veiculados pela grande imprensa, inclusive alguns procedentes do
próprio Ministério da Educação, atestam isso.
As
políticas públicas equivocadas geram uma distorção grosseira que se pode
demonstrar por uma grotesca equação, ao
mesmo tempo, diretamente proporcional à extensão das medidas adotadas
e inversamente proporcional aos supostos benefícios pretendidos. Senão,
vejam-se: a) quanto mais excepcionais forem os critérios, para “inclusão”
social, tanto maior e específica será a discriminação; portanto, se a
discriminação é maior, os benefícios dessas políticas são negativos; b) quanto
mais limitado for o conhecimento da linguagem, tanto mais estreitos serão os
limites impostos ao domínio da linguagem do conhecimento e, obviamente, ao
domínio do conhecimento; portanto, se, como conseqüência, tem-se a ampliação do
contingente de “profissionais” despreparados, ou de “profissionais” mal
formados, os resultados dessa política são diametralmente opostos ao que se
pretende. A quem interessa a manutenção do status
quo? Mas, essa é outra discussão...
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |