A ÉTICA
NA ASSISTÊNCIA DA ENFERMAGEM
SAÚDE MENTAL – ÉTICA E CIDADANIA
Alice Guimarães
Bottaro de Oliveira[1]
A ciência e as práticas de assistência à saúde mental
foram instituídas, no mundo ocidental, sob o pressuposto da razão iluminista.
No final do século XVIII o louco foi considerado alienado – estranho e despossuído de razão. A razão humana,
considerada a possibilidade de construção do saber científico e de explicação
do mundo, encontrava nos alienados a
sua impossibilidade. A Psiquiatria – ciência e assistência –
institucionalizou-se a partir da delimitação conceitual e social de seu objeto,
a loucura, elevada à condição de alienação
(doença mental). O alienismo surgiu
articulando conceitos e práticas das ciências naturais e sociais. A
classificação sistemática das manifestações de alienação mental (com base na
Clínica) aliada a medidas de intervenção social (delimitação do hospício como
local privilegiado de cura e prescrição do isolamento como medida básica da
terapêutica) constituiu a tecnologia pineliana, denominada tratamento moral (Castel, 1978).
A ordem jurídica burguesa que se instaurava tinha como
pressuposto a igualdade. Aos seres humanos iguais e racionais correspondiam
os direitos de cidadania – civis e políticos.
Aos alienados e, portanto, despossuídos de razão, não havia
correspondência de exercício de direitos. A eles, devido à sua impossibilidade
de exercício de direitos, dispensava-se o tratamento moral, fundado numa
pedagogia racional-moral de isolamento social e imposição da ordem disciplinar
do hospício com vistas à recuperação de sua saúde e, conseqüentemente, à
possibilidade de exercício de direitos.
É,
portanto, na intersecção conflituosa resultante do processo de reivindicação e
oferta de direitos sociais especiais aos alienados (assistência nos hospícios)
e na impossibilidade do exercício de direitos civis, que encontramos a
emergência das práticas psiquiátricas. Essas práticas tinham no hospício o seu
local central de tratamento e construção do saber, a partir do princípio do isolamento – isolar para conhecer e
isolar para tratar eram os princípios estruturantes do alienismo.
No
século XX, num cenário mundial de crise pós-guerra, evidenciou-se vários movimentos de contestação ao saber e prática psiquiátricos
instituídos desde os primórdios da tecnologia pineliana (Psiquiatria de Setor
na França, Comunidades Terapêuticas na Inglaterra, Psiquiatria Preventiva nos
EUA, Desinstitucionalização na Itália). No Brasil, a Reforma Psiquiátrica teve
origem no decênio 1970. A Reforma Psiquiátrica é um processo histórico que se
constitui pela crítica ao paradigma médico-psiquiátrico e pelas práticas que
transformam e superam esse paradigma, no contexto brasileiro, embora com
particularidades regionais significativas, no amplo espaço geográfico nacional.
A Reforma Psiquiátrica constitui atualmente o cenário
político-administrativo e teórico-conceitual no qual a assistência à saúde
mental se organiza no Brasil. Nesse processo de Reforma Psiquiátrica, a
cidadania dos doentes mentais é um conceito estruturante. Nos textos das três Conferências
Nacionais de Saúde Mental realizadas (Brasil, 1987, 1992 e 2001) e em inúmeros
textos de articuladores técnico-políticos envolvidos com o processo de Reforma
Psiquiátrica, a cidadania é abordada centralmente.
Destaca-se, nessa produção política e teórica, o objetivo de
“construir uma mudança no modo de pensar a pessoa com transtornos mentais em
sua existência sofrimento, e não apenas a partir de seu diagnóstico” (Brasil,
1992, p.11), contextualizando o processo saúde/doença mental e vinculando o
conceito de saúde ao exercício da cidadania.
Num primeiro momento da Reforma Psiquiátrica observou-se uma
relação de cidadania com o resgate da dívida social para com os loucos/doentes
mentais. Há, na produção teórico-política deste período, a suposição de que,
por terem sido excluídos socialmente ao longo da história, os doentes mentais
haviam perdido os direitos de cidadania. Nesse sentido, a partir do momento em
que a sociedade abolisse as formas institucionais concretas de exclusão – leis
restritivas, manicômios, medidas de contenção física (grades,
camisa-de-força) – e identificasse os
doentes mentais como cidadãos iguais perante a lei, seus direitos de cidadania
seriam garantidos. Essa suposição teórica é comumente identificada nos
discursos dos técnicos imbuídos do esforço de construção cotidiana da Reforma
Psiquiátrica.
Observa-se um primeiro equívoco histórico-conceitual nessa
pressuposição: a negação dos direitos de cidadania dos doentes mentais não foi
resultante dos processos de tratamento que isolaram e excluíram os doentes
mentais do meio social ao longo da história. Ao contrário, a assistência
psiquiátrica (e o saber científico que a sustentou e sustenta) constituiu-se a
partir da constatação de impossibilidade do exercício de direitos pelos doentes
mentais. Por serem considerados despossuídos de razão – condição básica para o
exercício de direitos civis – os alienados/doentes mentais eram isolados do
convívio social. Esse isolamento era a tecnologia necessária para a recuperação
da razão que, por sua vez, era a condição de possibilidade para o exercício de
direitos. Essa foi a concepção estruturante da tecnologia pineliana que funda a
assistência médico-psiquiátrica no mundo ocidental.
Outro aspecto problemático dessa concepção de cidadania para
os doentes mentais que se pauta pela igualdade – exercício pleno dos direitos
civis – está relacionado ao fato de que o princípio da igualdade pode ser
injusto socialmente: ao se tratar a todos igualmente, aqueles que necessitam de
cuidados especiais por um período da vida ou por uma condição constitucional
específica, são negligenciados. Há mais justiça em identificar e respeitar as
diferenças, pois “sempre haverá aqueles para quem a vida é mais difícil, o
sofrimento mais penoso e a necessidade de ajuda mais constante” (Bezerra
Junior, 1994, p.187).
Observa-se, portanto, ao se analisar a condição de cidadania
de doentes mentais, um paradoxo aparentemente instransponível, apontado por
vários autores (Birman, 1992; Bezerra Jr, 1992, e Delgado, 1992): a cidadania,
fundada em princípios liberalizantes, pressupõe a liberdade e a igualdade como
seus atributos básicos, enquanto que a assistência (médica, jurídica) ao doente
mental pressupõe o amparo social do Estado, muitas vezes incluindo a interdição
e a imposição de um tratamento baseado na negação de direitos civis
(liberdade).
Ao se afirmar os direitos de cidadania dos doentes mentais
no contexto da Reforma Psiquiátrica atualmente (refrão insistentemente repetido
nos discursos técnicos e políticos), há necessidade, portanto, de ir além da
aparência de que a reforma necessária relaciona-se à necessidade de novos
equipamentos e dispositivos de assistência (serviços abertos). Trata-se, antes,
de algo anterior, de uma crítica radical ao saber construído a partir do objeto
“doença mental”. Há necessidade de se definir um “novo objeto” de conhecimento
e de assistência: não mais o doente mental que necessita ser isolado para ser recuperado, mas uma pessoa diferente dos padrões culturais e que,
ainda assim, pode ter direitos de cidadania, ou seja, de estar “incluído” como
sujeito de direitos nesta sociedade. Isso implica em alterações profundas nas
relações sociais em geral, muito mais amplas do que modificações nas
instituições que tratam os doentes mentais. Neste sentido, a reforma necessária
não se restringe à criação de serviços abertos (CAPS), mas está relacionada à
crítica do saber médico-psiquiátrico (inclusive da forma de construção desse
saber) que estrutura todas as práticas assistenciais psiquiátricas.
Nesse novo paradigma político-social-científico-assistencial
– Reforma Psiquiátrica – a cidadania é o instrumento central da abordagem
terapêutica e, simultaneamente, a meta a ser atingida. Compreende-se que
serviços abertos e utilização de determinadas técnicas ou recursos terapêuticos
não asseguram direitos de cidadania para doentes mentais. Ao contrário, a
ampliação da autonomia do doente mental para os exercícios contratuais nas três
esferas de relações – habitat, rede social e trabalho com valor social - é a
sua condição de cidadania. Quando se tem como meta a reabilitação psicossocial
(e não mais a cura), a habilidade do indivíduo em efetuar plenamente trocas
nesses três cenários é a medida de exercício de sua cidadania (Saraceno,
2001).
A complexificacão do conceito de cidadania, não mais
restrita ao reconhecimento de direitos, mas ao “processo ativo de ampliação da
capacidade de todos e de cada um agirem de modo livre e participativo” (Bezerra
Jr., 1992, p. 124), permite e compõe a idéia de loucura/doença mental não mais
como defeito, falha ou desqualificação. A isso corresponde uma nova ética no
cuidado: não mais o isolamento e a classificação, mas a inclusão, o
acolhimento, a compreensão e a ampliação da cidadania.
A superação das práticas repressivas e excludentes,
características do modelo de atenção médico-psiquiátrica, em direção ao desenvolvimento
de modos de cuidar/tratar voltados para a atenção psicossocial é algo já
bastante difundido no discurso do movimento de Reforma Psiquiátrica brasileira.
Entretanto, a constituição de uma rede de serviços extra-hospitalares apenas
facilita, mas não garante a execução desse projeto terapêutico inovador.
Para que aconteça a inclusão dos “doentes mentais” como
cidadãos, no processo terapêutico e na sociedade, é necessário ir muito além de
reorganizar a rede de serviços ou substituir técnicas terapêuticas. É
necessário, inicialmente, que trabalhadores da saúde mental reconheçam a sua
condição de cidadania: sujeitos integrantes de um aparato institucional (saber
e práticas psiquiátricas) que representou, na história da civilização
ocidental, um importante mecanismo de controle social. A partir daí, podem se
perceber também como agentes de mudança, na medida em que não se resignarem ao
papel de agentes da opressão e da exclusão. Entretanto, sem essa consciência
das contradições de sua prática, a assistência tenderá a reproduzir essas
práticas, ainda que em contextos aparentemente diferentes do hospício (Oliveira
& Alessi, 2003).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Bezerra Jr B 1994. De
médico, de louco e de todo mundo um pouco, pp. 171-191. In R Guimarães & R
Tavares (orgs.). Saúde e sociedade no Brasil: anos 80. Ed Relume-Dumará, Rio de
Janeiro.
Bezerra Jr B 1992. Cidadania e
loucura: um paradoxo?, pp. 113-126. In B Bezerra Jr & PD Amarante (orgs.).
Psiquiatria sem hospício. Ed Relume-Dumará, Rio de Janeiro.
Birman J 1992. A cidadania
tresloucada, pp. 71-90. In B Bezerra Jr & PD Amarante (orgs.). Psiquiatria
sem hospício. Ed Relume-Dumará, Rio de Janeiro.
Brasil MS 1987. Relatório Final da I
Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília.
Brasil MS 1992. Relatório Final da II
Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília.
Brasil MS 2001. III Conferência
Nacional de Saúde Mental. Caderno de Textos. Brasília.
Castel
R 1978. A ordem psiquiátrica. Ed Graal, Rio de Janeiro, 329 pp.
Delgado PGG 1992. Pessoa e bens:
sobre a cidadania dos curatelados, pp. 99-112. In B Bezerra Jr & PD
Amarante (orgs.). Psiquiatria sem hospício. Ed Relume-Dumará, Rio de Janeiro.
Oliveira AGB & Alessi NP 2003. O
trabalho de enfermagem em saúde mental: contradições e potencialidades atuais.
Rev. Latino-americana de Enfermagem, 11 (3):333-340.
Saraceno
B 2001. Reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio,
pp. 13-18. In A Pitta
(org.). Reabilitação psicossocial no Brasil. Ed Hucitec, São
Paulo.
[1] Enfermeira. Doutora em Enfermagem Psiquiátrica. Professora da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |