APRENDIZADO E MEMÓRIA EM ANIMAIS
SUBMETIDOS À ISQUEMIA CEREBRAL EXPERIMENTAL: PLASTICIDADE E RECUPERAÇÃO
FUNCIONAL
Carlos
Alexandre Netto (*)
A memória é uma
das funções cognitivas mais complexas que a natureza produziu, e as evidências
científicas sugerem que o aprendizado de novas informações, bem como seu
armazenamento, causam alterações estruturais no sistema nervoso. A memória
aguça o interesse e a imaginação do homem desde a Antigüidade, contudo os
primeiros estudos científicos foram realizados há pouco mais de um século.
Hoje, graças aos avanços das ciências biomédicas, adquirimos uma razoável
compreensão acerca dos mecanismos da formação da memória.
Os neurônios são células especializadas, cuja principal
função é comunicar-se com outros neurônios e com os órgãos que realizam as
ações (como os músculos e o coração); em conseqüência do processamento de uma
fantástica quantidade de informações, a atividade integrada dos neurônios
determina e modula o comportamento dos indivíduos. A capacidade dos neurônios
de se transformar e de adaptar sua estrutura em resposta as exigências
ambientais (externas) ou internas é chamada de plasticidade neural.
A experiência é o fator que mais estimula a plasticidade, em espécies
tão diversas quanto insetos e humanos. Em mamíferos de laboratório a
experiência produz mudanças estruturais e funcionais no cérebro, como aumento
no tamanho e ativação da função dos dendritos (as regiões terminais dos
neurônios), formação ou eliminação de sinapses e aumento da atividade metabólica;
tais mudanças estão correlacionadas com alterações funcionais dos neurônios e
do comportamento do indivíduo. Este repertório de mudanças demonstra que a atividade neural resultante da interação do organismo com o meio
externo pode modificar a estrutura do sistema nervoso em qualquer
período da vida, mesmo após a maturidade. Assim, aprendizado e plasticidade são
inter-dependentes e se pode concluir que a
experiência, ao modificar o comportamento, está modificando algumas sinapses no
sistema nervoso, ou vice-versa.
A evocação da
memória, por sua vez, não é simplesmente a reativação de fragmentos
distribuídos que constituem o engrama, representação
da informação no sistema nervoso. Pode acontecer que apenas alguns fragmentos
do engrama sejam ativados, ou podemos confundir
pensamentos e associações provocados diretamente pela mesma dica. Estudos têm
demonstrado que lembrar implica num processo ativo de reconstrução e não se
assemelha a assistir a uma fita de vídeo do passado.
As doenças vasculares
cerebrais apresentam elevada incidência e graus importantes de morbidade
neurológica. Tanto a hipóxia, comum em recém-nascidos
com problemas no período peri-parto, como a isquemia
cerebral que ocorre em adultos, causam morte neural em áreas relacionadas ao
processamento da memória, como o hipocampo e o estriado. A conseqüência de tais
lesões se expressa na forma de deficiências de memória. Na série de trabalhos
que descrevemos, nosso laboratório investigou a hipótese de que procedimentos
capazes de produzir neuroproteção e neuroplasticidade revertem as
deficiências de memória causadas pela isquemia experimental.
Nos experimentos de isquemia
no adulto, utilizamos o modelo de isquemia cerebral global transitória,
ISQ, pela oclusão dos quatro vasos, produzido pela eletrocauterização
das artérias vertebrais e pela oclusão temporária das artérias carótidas
comuns, em ratos Wistar adultos. Dez minutos de ISQ
causaram perda de 30 a 50 % do volume total do hipocampo, demonstrado por
técnicas estereológicas, associada a deficiências de
memória de referência e de memória de trabalho no labirinto aquático. Animais
submetidos a um episódio de dois minutos de ISQ, realizado 24 h antes do evento
de 10’ ISQ, apresentaram tolerância induzida, também chamada de
pré-condicionamento: houve redução da lesão hipocampal
e recuperação dos déficits cognitivos (neuroproteção),
em comparação aos ratos que receberam apenas 10 minutos de ISQ.
Já nos experimentos de isquemia
neonatal, utilizamos o modelo de hipóxia-isquemia
neonatal unilateral, HIP, produzido pela ligação permanente da artéria carótida
comum esquerda associada à atmosfera hipóxica (8% de
oxigênio, durante 1h30 min ou 2h 30 min) em ratos Wistar
com 7 dias de vida. A HIP causa deficiência de memória em tarefas aversivas,
como a esquiva ativa, e em tarefas espaciais no labirinto aquático. O animais HIP que foram tratados com estimulação tátil, do 8º ao 21º
dia de vida apresentaram recuperação cognitiva e diminuição da lesão hipocampal e cortical, medidas através de técnicas estereológicas.
Assim, demonstramos que dois procedimentos terapêuticos
experimentais não farmacológicos têm ação neuroprotetora
morfológica e funcional, nos dois modelos de isquemia utilizados. Ainda, a
ocorrência de neuroplasticidade após ambos
tratamentos também é sugerida.
Embora o sistema nervoso
central (SNC) dos mamíferos seja reconhecido por sua capacidade limitada de
auto-reparo, as evidências de recuperação funcional indicam que a plasticidade
neural pós-lesional é substancial. Essa plasticidade acontece, obviamente, no
tecido remanescente, tanto em áreas adjacentes à lesão quanto em áreas remotas, que de alguma forma são
recrutadas.
A tolerância induzida e o efeito protetor da estimulação
tátil admitem dois fenômenos não excludentes: 1 – neuroproteção:
os neurônios destinados a morrer são protegidos, provavelmente pela ação trófica dos tratamentos; 2 – neurogênese:
os neurônios mortos pela isquemia são substituídos por novas células neurais.
Em tecidos que podem se auto-reparar, tais como pele e
fígado, as células perdidas podem ser substituídas pela proliferação de células
vizinhas ou pela ativação de células-tronco - células
indiferenciadas com potencial de gerar muitos tipos diferentes de células -
existentes neste tecido. O cérebro, aparentemente, não tem esta capacidade de
regeneração, característica que o torna particularmente vulnerável às lesões e
às doenças.
Células com propriedades de célula-tronco ocorrem provavelmente em todo SNC adulto, mas
elas normalmente dão origem a neurônios, fenômeno chamado neurogênese, apenas em áreas
restritas. Essas células podem representar uma capacidade latente para o reparo
no SNC adulto, desde que elas possam ser mobilizadas para gerar neurônios
funcionais e integrados aos circuitos existentes. Em cérebros adultos, a neurogênese ocorre apenas em duas regiões. Uma delas é a
zona sub-ventricular (SVZ), localizada nas paredes dos
ventrículos laterais; essa região gera novos interneurônios para o bulbo olfatório, os quais são funcionalmente recrutados. A outra
é a zona sub-granular do giro denteado, que dá origem
a um tipo diferente de neurônio: a célula granular, ou granulosa. Nestas áreas
existe, aparentemente, um contínuo turnover fisiológico de neurônios, indicando que novas
células substituem as que estão morrendo. Porém, ainda não está claro se a neurogênese realmente ajuda a reparar os circuitos
danificados pelos processos patológicos.
Nosso laboratório tem
realizado estudos morfológicos e bioquímicos para dissecar os mecanismos
envolvidos nos fenômenos aqui relatados; seus resultados serão oportunamente
apresentados.
O cérebro é uma estrutura em permanente construção, assim
como o são repertório comportamental e as memórias do indivíduo. Demonstramos
que tratamentos não farmacológicos – a tolerância induzida e a estimulação
tátil - são capazes de produzir plasticidade funcional expressa pela neuroproteção morfológica e comportamental, i.e.,
recuperação da memória, em animais submetidos a eventos isquêmicos cerebrais
experimentais na infância ou na idade adulta. A memória e a plasticidade estão,
sem dúvida, entre as mais interessantes e enigmáticas fronteiras das
neurociências. (Apoio financeiro: Pronex e CNPq).
(*)
Departamento de Bioquímica, ICBS, UFRGS
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |